29 de mar. de 2025

Os dias felizes :: Cecília Meireles



Fernando Igor

Os dias felizes estão entre as árvores, como os pássaros:

viajam nas nuvens,

correm nas águas,

desmancham-se na areia.

 

Todas as palavras são inúteis,

desde que se olha para o céu.

 

A doçura maior da vida

flui na luz do sol,

quando se está em silêncio.

 

Até os urubus são belos,

no largo círculo dos dias sossegados.

 

Apenas entristece um pouco

este ovo azul que as crianças apedrejaram:

 

formigas ávidas devoram

a albumina do pássaro frustrado.

 

Caminhávamos devagar,

ao longo desses dias felizes,

pensando que a Inteligência

era uma sombra da Beleza.

 

24 de mar. de 2025

Tenho dó das estrelas :: Fernando Pessoa


miró

Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo,

Há tanto tempo...

Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço

Das coisas.

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não a morte, mas sim

Uma outra espécie de fim,

Ou uma grande razão —

Qualquer coisa assim

Como um perdão?

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). 

 - 204.

1ª publ. in Mensagem , nº 1. Abr. 1938.

22 de mar. de 2025

Ilustração:: Loré Pember












 




































Eu queria cantar :: Rainer Maria Rilke.

Eu queria cantar para dentro de alguém,

sentar-me junto de alguém e estar aí.

Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente

e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres.

Queria ser o único na casa

a saber: a noite estava fria.

E queria escutar dentro e fora

de ti, do mundo, da floresta.

Os relógios chamam-se anunciando as horas

e vê-se ao fundo o tempo.

E em baixo ainda passa um estranho

e acirra um cão desconhecido.

Depois regressa o silêncio. Os meus olhos,

muito abertos, pousaram em ti;

e prendem-te docemente e libertam-te

quando algo se move na escuridão.



Tradução de Maria João Costa Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.

10 de mar. de 2025

os menores carregam o mundo :: Mar Becker

em todas as espécies, os menores suportam-no

com seus braços poucos

e seus humilhados ombros 


como algumas flores breves

como as que não duram mais que um dia

e nesse tempo urgentemente sonham 


assim os menores sonham no mundo, e

avançam com um lírio amarelo perfurando-lhes

o pensamento

e se erguem contra a noite longa

dentro de sua vida que é um sopro


quando por cinco vezes a terra cedeu a

pesadelos de fogo e de água

(naquela que tem sido a história das grandes extinções)

foram os frágeis que se alastraram tão quietos ─

e porque não tinham nome nem rosto

esconderam-se sem que os percebessem


foram para o escuro fundo, em

mares inconsoláveis

foram por entre cidades de ossos, para fazer morada nas

carcaças dos que não suportaram

foram morar na última fenda

do último tronco ─

como se tudo insistisse num último coração ─

dentro da sequoia


são os vencidos que têm arrastado o mundo

são lobas que há dias emagrecem, regurgitando suavemente

em bocas de ninhadas cegas

são pássaros de asa quebrada, que

estremecem nas mãos

são algum pulso

e alguma lua

são homens e mulheres sem lugar, recurvados sobre

si como pendendo

a uma pergunta sem pronúncia


os pequenos é que rompem ao meio 

o medo

e suspendem a vida num claríssimo fio de seda em que

a morte não toca


---


mar becker 

em: notas do caderno de caminho (em trabalho, devo mexer neste material), 2024 .

1 de mar. de 2025

Cinco Elegias :: Hilda Hilst


Eugene Boudin


Não te espantes da vontade

Do poeta

Em transmudar-se:

Quero e queria ser boi

Ser flor

Ser paisagem.

Sentir a brisa da tarde

Olhar os céus, ver às tardes

Meus irmãos, bezerros, hastes,

Amar o verde, pascer,

Nascer

Junto à terra

(À noite amar as estrelas)

Ter olhos claros, ausentes,

Sem o saber ser contente

De ser boi, ser flor, paisagem.

Não te espantes. E reserva

Teu sorriso para os homens

Que a todo custo hão de ser

Oradores, eruditos,

Doutos doutores

Fronte e cerne endurecido.

Quero e queria ser boi

Antes de querer ser flor.

E na planície, no monte,

Movendo com igual compasso

A carcaça e os leves cascos

(Olhando além do horizonte)

Um pensamento eu teria:

Mais vale a mente vazia.


E sendo boi, sou ternura.

 Aunque pueda parecer

            Que del poeta

                              Es locura.


Hilda Hilst


24 de fev. de 2025

Os Ninguéns ::Eduardo Galeano

Sonham as pulgas em comprar um cão como sonham os Ninguéns em sair da pobreza: que em algum dia mágico a boa sorte chova de repente, que caia a diluviar a boa sorte; mas não chove boa sorte nem ontem e nem hoje, nem amanhã e nem nunca, nem chuviscando ela cai do céu, por mais que peçam os Ninguéns, até mesmo se lhes coça a mão esquerda, ou se levantam com o pé direito, ou começam o ano trocando de vassoura.


Os Ninguéns: filhos de ninguém, donos de nada.


Os Ninguéns: os nenhuns, os ningueneados, a correr atrás da lebre, a morrer a vida, fodidos e refodidos:


Que não são, mesmo sendo.


Que não falam idiomas, e sim dialetos.


Que não professam religiões, mas superstições.


Que não fazem arte, e sim artesanato.


Que não praticam cultura, e sim folclore.


Que não são seres humanos, e sim recursos humanos.


Que não têm rosto, mas braços.


Que não têm nome, mas número.


Que não estão na história universal, mas na crônica avermelhada da imprensa local.


Os Ninguéns, que custam menos que a bala que os mata.


Tradução: Roy Sollon

.....


Los nadies


SUEÑAN las pulgas con comprarse un perro y sueñan los nadies con salir de pobres, que algún mágico día llueva de pronto la buena suerte, que llueva a cántaros la buena suerte; pero la buena suerte no llueve ayer, ni hoy, ni mañana, ni nunca, ni en lloviznita cae del cielo la buena suerte, por mucho que los nadies la llamen y aunque les pique la mano izquierda, o se levanten con el pie dere-cho, o empiecen el año cambiando de escoba.


Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada.


Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos:


Que no son, aunque sean.


Que no hablan idiomas, sino dialectos.


Que no profesan religiones, sino supersticiones.


Que no hacen arte, sino artesanía.


Que no practican cultura, sino folklore.


Que no son seres humanos, sino recursos humanos.


Que no tienen cara, sino brazos.


Que no tienen nombre, sino número.


Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local.


Los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.


Eduardo Galeano, Los nadies, El libro de los abrazos (1989).




22 de fev. de 2025

Lugares comuns :: Ana Luísa Amaral ,1956.

 


 

Entrei em Londres

num café manhoso (não é só entre nós

que há cafés manhosos, os ingleses também,

e eles tiveram mais coisas, agora

é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas

ilhotazinhas, mais adiante)


Entrei em Londres

num café manhoso, pior ainda que um nosso bar

de praia (isto é só para quem não sabe

fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era

mesmo muito manhoso,

não é que fosse mal intencionado, era manhoso

na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha

suja. Muito rasca.


Claro que os meus preconceitos todos

de mulher me vieram ao de cima, porque o café

só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate

(se fosse em Portugal era sandes de queijo),

mas pensei: Estou em Londres, estou

sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses

até nem se metem como os nossos

e por aí fora...


E lá entrei no café manhoso, de árvore

de plástico ao canto.

Foi só depois de entrar que vi uma mulher

sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me

mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.

Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e

depois eu


Lá pedi o café, que não era nada mau

para café manhoso como aquele e o homem

que me serviu disse: There you are, love.

Apeteceu-me responder: I'm not your bloody love ou

Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois

pensei: Já lhes está tão entranhado

nas culturas e a intenção não era má, e também

vou-me embora daqui a pouco, tenho avião

quero lá saber


E paguei o café, que não era nada mau,

e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta

a ver a tribo toda a comer ovos e presunto

e depois vi as horas e pensei que o táxi

estava a chegar e eu tinha que sair.

E quando me ia a levantar, a mulher sorriu

Como quem diz: That's it.


e olhou assim à sua volta para o presunto

e os ovos e os homens todos a comer

e eu senti-me mais forte, não sei porquê,

mas senti-me mais forte

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,

que em toda parte

as mesmas coisas são

Os dias felizes :: Cecília Meireles

Fernando Igor Os dias felizes estão entre as árvores, como os pássaros: viajam nas nuvens, correm nas águas, desmancham-se na areia.   Todas...