MODOS DE OLHAR
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
1 de jul. de 2025
30 de jun. de 2025
Único sabor :: António Ramos Rosa
Sabor, sabor oculto,
submerso,
sabor adormecido, ó rosas, ó antes, primaveras,
sabor só abruptamente surto
na queda do sono, no fulgor de um relâmpago,
surto, submerso,
ó sabor antes da consciência, antes de tudo,
ó sabor só nascido sobre a paz última de tudo para além de tudo,
sabor da terra ainda antes dos olhos,
sabor a nascer, sabor-desejo, antes do beijo, sabor de beijo,
sabor mais lento, mais fundo, mais de dentro,
sabor a marulhar, cálido, denso, como a cor,
sabor de estar, sabor de ser,
ó tranquila degustação sem mandíbulas,
sabor de dentro como de um cheiro imemorial presente,
ó colinas esparsas, ó veios de águas sussurrantes,
somente ouvidos, nem sequer ouvidos, mas presentes, esparsos,
ó presença da terra nas pálpebras, num sabor acre da garganta,
ó estrelas, ó verdadeiras estrelas da infância,
ó sabor do escuro, do ventre, da espessura da noite,
ó profundo sono de raízes,
ó água bebida ao rés da terra, ó sono da vida,
ó som de bichos, de tudo e nada, num só obscuro silêncio,
ó terra junto a mim, ó grande e estranha terra,
ó perdida proximidade, ó perdida longinquidade,
ó enorme som de búzio do mar,
ó tranquilos jardins, ó sabor de cansaço,
ó sabor antes de mim,
ó quando eu não sabia e tudo em mim sabia,
ó noite, ó espessura, ó outra vez a noite,
outra vez esse sabor submerso, esse sabor do fundo,
esse sabor bem longe, esse sabor total,
esse sabor onde eu sinto a terra num só gosto,
esse sabor original, fonte de todo o sabor,
surto submerso,
ó único sabor.
27 de jun. de 2025
SAUDADE ::João Guimarães Rosa
Saudade
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...
João Guimarães Rosa, no livro 'Magma'. Nova Fronteira
24 de jun. de 2025
Atração :: Líria Porto
são joão tão bonito
naquela bandeira
e eu tão aflita
entrei na fogueira
a vida era boa
tirei tal proveito
subi no seu colo
deitei no seu leito
pedi-lhe um beijo
o primeiro da fila
dos seus olhos verdes
bebi clorofila
agora meu santo
não sei de mais nada
paixão é veneno
caixão e mortalha
* líria porto
21 de jun. de 2025
Respingos :: Líria Porto

Jessie Dodingt
e quando a chuva caía
eu ia com a enxurrada
beirava rente a calçada
descia junto da flor
e ria a risada d'água
aquela alegria d'água
brincava que era a flor
mas depois sentia frio
lembrava-me então do rio
da flor que o rio levou
e os meus olhos choviam
:
eu era como a enxurrada
fui ficando poça d'água
que o tempo chorou
chorou
* líria porto
12 de jun. de 2025
Aos Namorados do Brasil :: Carlos Drummond de Andrade
Dai-me, Senhor, assistência técnica
para eu falar aos namorados do Brasil.
Será que namorado algum escuta alguém?
Adianta falar a namorados?
E será que tenho coisas a dizer-lhes
que eles não saibam, eles que transformam
a sabedoria universal em divino esquecimento?
Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa,
quando perdem os olhos
para toda paisagem ,
perdem os ouvidos
para toda melodia
e só vêem, só escutam
melodia e paisagem de sua própria fabricação?
Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados
enquanto namorados. Antes, depois
são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia.
Mas quem foi namorado sabe que outra vez
voltará à sublime invalidez
que é signo de perfeição interior.
Namorado é o ser fora do tempo,
fora de obrigação e CPF,
ISS, IFP, PASEP,INPS.
Os códigos, desarmados, retrocedem
de sua porta, as multas envergonham-se
de alvejá-lo, as guerras, os tratados
internacionais encolhem o rabo
diante dele, em volta dele. O tempo,
afiando sem pausa a sua foice,
espera que o namorado desnamore
para sempre.
Mas nascem todo dia namorados
novos, renovados, inovantes,
e ninguém ganha ou perde essa batalha.
Pois namorar é destino dos humanos,
destino que regula
nossa dor, nossa doação, nosso inferno gozoso.
E quem vive, atenção:
cumpra sua obrigação de namorar,
sob pena de viver apenas na aparência.
De ser o seu cadáver itinerante.
De não ser. De estar, e nem estar.
O problema, Senhor, é como aprender, como exercer
a arte de namorar, que audiovisual nenhum ensina,
e vai além de toda universidade.
Quem aprendeu não ensina. Quem ensina não sabe.
E o namorado só aprende, sem sentir que aprendeu,
por obra e graça de sua namorada.
A mulher antes e depois da Bíblia
é pois enciclopédia natural
ciência infusa, inconciente, infensa a testes,
fulgurante no simples manifestar-se, chegado o momento.
Há que aprender com as mulheres
as finezas finíssimas do namoro.
O homem nasce ignorante, vive ignorante, às vezes morre
três vezes ignorante de seu coração
e da maneira de usá-lo.
Só a mulher (como explicar?)
entende certas coisas
que não são para entender. São para aspirar
como essência, ou nem assim. Elas aspiram
o segredo do mundo.
Há homens que se cansam depressa de namorar,
outros que são infiéis à namorada.
Pobre de quem não aprendeu direito,
ai de quem nunca estará maduro para aprender,
triste de quem não merecia, não merece namorar.
Pois namorar não é só juntar duas atrações
no velho estilo ou no moderno estilo,
com arrepios, murmúrios, silêncios,
caminhadas, jantares, gravações,
fins-de-semana, o carro à toda ou a 80,
lancha, piscina, dia-dos-namorados,
foto colorida, filme adoidado,,
rápido motel onde os espelhos
não guardam beijo e alma de ninguém.
Namorar é o sentido absoluto
que se esconde no gesto muito simples,
não intencional, nunca previsto,
e dá ao gesto a cor do amanhecer,
para ficar durando, perdurando,
som de cristal na concha
ou no infinito.
Namorar é além do beijo e da sintaxe,
não depende de estado ou condição.
Ser duplicado, ser complexo,
que em si mesmo se mira e se desdobra,
o namorado, a namorada
não são aquelas mesmas criaturas
que cruzamos na rua.
São outras, são estrelas remotíssimas,
fora de qualquer sistema ou situação.
A limitação terrestre, que os persegue,
tenta cobrar (inveja)
o terrível imposto de passagem:
"Depressa! Corre! Vai acabar! Vai fenecer!
Vai corromper-se tudo em flor esmigalhada
na sola dos sapatos..."
Ou senão:
"Desiste! Foge! Esquece!"
E os fracos esquecem. Os tímidos desistem.
Fogem os covardes.
Que importa? A cada hora nascem
outros namorados para a novidade
da antiga experiência.
E inauguram cada manhã
(namoramor)
o velho, velho mundo renovado.
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