6 de mar. de 2017

CANTO DA POBREZA :: Murilo Monteiro Mendes (Juiz de Fora, 13 de maio de 1901 - Lisboa, 13 de agosto de 1975)

Sentas-te à beira da noite
para fazer este poema,
este poema não é teu,
é da tinta e do papel.
Mas o que é teu, afinal?
Idéia de propriedade!
Nada é teu, nem de ninguém.
Teu passado não é teu,
nem sabes o que ele é.
Na neblina do passado
quase cego tu navegas,
mas um braço te pegou, 
te agarra, não larga mais.
- Este braço não é teu. -
O presente não é teu,
presente já é passado,
tu falaste, voz sumiu,
ah! nem o eco ficou.
Mas o futuro? é de Deus,
e Deus não é de ninguém.
Também não és de ninguém.
Tudo vês e tudo tocas,
tudo cheiras, tudo ouves,
nada fica nos teus olhos,
nada fica na tua mão,
no teu ouvido, nariz.
Levaste a noite ao altar,
sei que a noiva não é tua,
sei que ela também não é
do noivo que a possuiu,
ela não é de ninguém;
nem é de ti que conheces
os encantos dessa noiva
muito melhor que seu noivo.
Coisa alguma te pertence,
também não és de ninguém,
viste o mundo do telhado,
cheiraste o mundo, viraste
o namorado do mundo,
namorado eternamente:
é melhor ficar assim,
casar dá muito trabalho,
põe um número na gente,
põe um título na gente,
não se pode mais andar
desenvolto como antes,
a gente tem que prender
toda atenção num objeto,
a gente fica pensando
que é dono dalguma coisa,
que possui móvel de carne...
Mas eu não sou de ninguém.

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