Mostrando postagens com marcador Cozinha. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cozinha. Mostrar todas as postagens

27 de jun. de 2020

Por que é importante aprender a cozinhar? Clarice Reichstul




Quando eu era criança, ia à casa da minha avó uma vez por semana. Comíamos sempre a mesma comida: frango assado, cogumelos refogados, batata na manteiga e, de sobremesa, strudel de maçã (um tipo de torta) com creme de leite.
De vez em quando, tinha um peixe frito, mas o forte mesmo era esse menu descrito aí. Nunca mais comi cogumelos refogados como os da casa da minha avó, mas esses momentos que passávamos por lá são inesquecíveis (talvez porque ela deixava a gente tomar guaraná, e a minha mãe não).
Eu aprendi a cozinhar com minha avó. Primeiro foram biscoitinhos amanteigados. Ela fazia a massa e a gente ficava cortando com os cortadores de estrela. Depois foi um estrogonofe de peixe, que ela havia ensinado ao meu pai, quando ele era pequeno.
Na época, ele precisou de uma receita para uma competição de culinária no grupo de escotismo (passou anos reclamando por ter ficado em segundo lugar). O que eu não percebia naquele momento e só fui reconhecer adulta é o quanto aprender a cozinhar é libertador.
Libertador porque não dependemos de outros para ter a nossa comida, porque eu não tenho medo de receita nenhuma e porque, quando fui morar sozinha, não passei pelo aperto de comer miojo todos os dias. Eu já sabia fritar um ovo e fazer arroz. O básico.
A formação de indivíduos independentes se faz de diversas maneiras, algumas bem comuns, como pela cozinha. Como diria a mestra Nina Horta, cozinhar é um modo de se ligar.

13 de jul. de 2015

Às coisas sou blasé :: ANA ESTAREGUI


finjo não ver beleza
nas pequenas xícaras
disfarço
a ternura
pelas as estampas
de frutas tropicais
na toalha
de plástico
da mesa da cozinha
[por fora lisinha
por dentro manta - que nem carpete]
dissimulo
indiferença às casquinhas
craqueladas
espalhadas
de pão francês
e ao tom marrom caramelo escuro
dos pratos duralex.

20 de nov. de 2014

O Arroz de Palma :: Francisco Azevedo

Frida Kahlo, 1936

Eu aqui na fazenda. Eu aqui na cozinha, quatro e pouco da manhã. Isabel ainda dorme, o sol ainda demora. Eu aqui, um velho de 88 anos. Para os mais novos, o avô é eterno, o que não teve começo nem terá fim, o que já veio ao mundo com esta cara enrugada. Eu aqui, de avental branco, picando o tempero verde. Preparo o almoço de família. Terei forças? 88: dois infinitos verticais. É boa idade, será uma bela festa, Tenho prática. Tia Palma me ensinou a cozinhar. eu era jovem. Por onde andará Tia Palma? Às vezes, fica tempo sem aparecer. Às vezes, vejo-a perambulando pela casa com mamãe e papai e nem preciso dos óculos. Chegam com diferentes idades, alegres ou preocupados, falantes ou silenciosos. Depende do dia, da hora em que os vejo. Imaginação? Senilidade? Perco noção. Perco? Me pego conversando com esse menino que era eu. Ou escrevendo alto comigo mesmo. Falo com meus queridos já distantes no tempo e no espaço. Às vezes, sinto medo, assobio no escuro. De repente, luz. Cinema! Me projeto histórias. Revejo meus irmãos na infância, nítidos, pulando uns nos outros, correndo e voltando para embolar feito cachorro novo. Revejo aquela minha Isabel apaixonada. Revejo meus filhos quando ainda estavam perto e eram meus. Lembranças vivas em todos os sentidos: paladar, olfato, audição, visão e tato. Sigo em frente. Para o hoje - que eu amo! - e depois para onde o nariz aponta e a vista alcança e para mais além, aonde só a esperança vai. Sou passado, presente, futuro - três pessoas distintas reunidas numa só, mistério da terreníssima trindade. Confio em você, que agora me faz companhia e me lê os pensamentos.
Velho sente saudade de mãe e de pai. Tudo faz tanto tempo! Velho quer colo, quer colher na boca vindo de longe com motor de aviãozinho, quer - banho tomado - que lhe ponham na cama, lhe aconcheguem com lençol limpo e travesseiro macio. Uma história conhecida, uma cantiga de ninar, um beijo de boa-noite. a porta do quarto um pouquinho aberta, com a luz do corredor acesa - o ponto de referência é sempre bom. Velho sente falta de instância superior. Quem o julgará com isenção e sabedoria? Quem, melhor que ele, saberá, imparcial, examinar o mérito da questão? Velho é criança de fôlego diferente. Já não lhe interessam as correrias nos jardins, o sobe e desce das gangorras, o vaivém dos balanços. É tudo muito pouco. O que ele quer agora é desembestar no céu, soltar os bichos que colecionou a vida inteira. Os bichos todos - domésticos, selvagens, úteis e nocivos. Os pesados répteis que ainda guarda no coração e as borboletas, peixes e passarinhos, tudo solto lá em cima! Tia palma dizia que velho na horinha da morte conhece o máximo e o mínimo de si mesmo. É ao mesmo tempo elefante e louva-deus. É sequóia e flor-do-campo, oceano e poça de chuva, cordilheira e grão de sal. Ela garantia que a gente sabe direitinho quando acontece a transformação. A alma começa a emitir todos os sons da natureza: ventos, águas, passos de gente no cascalho, fogo que arde, madeira que estala, respirações variadas e, de repente, um bater rápido de asas. Aí entra o coral - as vozes dos animais. A alma do velho rosna, ameaçadora - segundo movimento do concerto. A alma urra, uiva, grita, relincha e muge. Depois zumbe, trina e gorjeia. A alma se liberta rumo ao infinito e, aí sim - soprano, tenor, contralto e baixo - canta a mais bela ária da mais bela ópera! Eu, criança, piamente acreditava. Depois, homem feito, achava graça. Faz algum tempo voltei a acreditar.
É na cozinha que eu desembesto e solto os bichos. É na cozinha que eu viajo sem passaporte, sem bilhete, sem revista em aeroportos. As autoridades querem minhas digitais? Elas estão na massa do pão. Querem minha foto? Tenho várias, de frente e de lado com meus pais e irmãos e com os que vieram depois. Retratos falados - em voz alta, a família toda ao mesmo tempo. Destrambelhada família. Sagrada família...
Preciso me concentrar. É essencial. Por quê? Ora, que pergunta! Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema - principalmente no Natal e no Ano-Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Ás vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida - azeitona verde no palito - sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano - quem diria? - solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este, o mais gordo e generoso, farto, abundante. Aquele o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente. 
E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero ou do grau comparativo. Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e a cebola. Não se envergonhe se chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.
Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, essas especiarias - que quase sempre vêm da áfrica e do oriente e nos parecem estranhas ao paladar - tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa. Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto, é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada. 
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe "Família à Oswaldo Aranha", "Família à Rossini", "Família à Belle Meunière" ou "Família ao Molho Pardo" - em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é "À Moda da Casa". E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. 
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras, apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada - seriam assim um tipo de "Família Diet", que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Há famílias, por exemplo, que levam muito tempo para serem preparadas. Fica aquela receita cheia de recomendações de se fazer assim ou assado - uma chatice! Outras, ao contrário, se fazem de repente, de uma hora para outra, por atração física incontrolável - quase sempre de noite. Você acorda de manhã, feliz da vida, e quando vai ver já está com a família feita. por isso é bom saber a hora certa de abaixar o fogo. Já vi famílias inteiras abortadas por causa de fogo alto. 
Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia-a-dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente, na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.

"O Arroz de Palma", de Francisco Azevedo. Editora Record, 2014 

13 de nov. de 2013

As armadilhas do tempo - Eduardo Galeano


Sentada de cócoras na cama, ela olhou-o longamente, percorreu seu corpo nu da cabeça aos pés, como se estudasse as sardas e os poros, e disse:
- A única coisa que eu mudaria em você é o endereço.
E a partir de então viveram juntos, foram juntos, se divertiam brigando pelo jornal no café-da-manhã, e cozinhavam inventando e dormiam feito um nó.
Agora este homem, mutilado dela, quer recordá-la como era. Como era qualquer uma das que ela era, cada uma com sua própria graça e seu próprio poderio, porque aquela mulher tinha o espantoso costume de nascer com frequência.
Mas não. A memória se nega. A memória não quer devolver a ele nada além desse corpo gelado onde ela não estava, esse corpo vazio das muitas mulheres que ela foi.


Bocas do tempo.  L&PM, 2012

18 de set. de 2013

A verdade Histórica :: Ana Luísa Amaral



A minha filha partiu uma tigela

na cozinha.

E eu que me apetecia escrever

sobre o evento,

tive que pôr de lado inspiração e lápis,

pegar numa vassoura e varrer

a cozinha.

A cozinha varrida de tigela

ficou diferente da cozinha

de tigela intacta:

local propício a escavação e estudo,

curto mapa arqueológico

num futuro remoto.


Uma tigela de louça branca

com flores,

restos de cereais tratados

em embalagem estanque

espalhados pelo chão.


Não eram grãos de trigo de Pompeia,

mas eram respeitosos cereais

de qualquer forma.

E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,

mas das Caldas,

daqui a cinco ou dez mil anos

devia ter estatuto admirativo.


Mas a hecatombe

deu-se.

E  escorregada de pequeninas mãos,

ficou esquecida de famas e proveitos,

varrida de vassouras e memórias.


Por mísero e cruel balde de lixo

azul

em plástico moderno

(indestrutível)

22 de dez. de 2012

Casamento de Adélia Prado

                                             Matizes - Mandala peixes

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

   

28 de jan. de 2012

A bela adormecida de Adélia Prado

Van Gogh 
Estou alegre e o motivo
beira secretamente a humilhação,
porque aos 50 anos
não posso mais fazer curso de dança,
escolher profissão,
aprender a nadar como se deve.
No entanto, não sei se é por causa das águas,
deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,
ou se é por causa daquele que volta
e põe tudo arcaico como matéria da alma,
se você vai ao pasto,
se você olha o céu,
aquelas frutinhas travosas,
aquela estrelinha nova,
sabe que nada mudou.
O pai está vivo e tosse,
a mãe pragueja sem raiva na cozinha.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom !
Namorar quem ?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
Quando ele fala roreja,
quando ele vem eu sei,
porque as hastes se inclinam.
Eu fico tão atenta que adormeço
a cada ano mais.
Sob juramento lhes digo:
tenho 18 anos. Incompletos.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)