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24 de abr. de 2015

Amor feliz :: Wislawa Szymborska

Amor feliz. Será normal,
será sério, será útil? —
que tem o mundo a ver com duas pessoas
que não vêem o mundo?

Erguidos ao céu sem mérito nenhum,
os melhores entre milhões e convencidos
que assim tinha que ser — a premiar o quê? Nada;
de algum ponto cai a luz —
e porquê logo sobre estes e não outros?
Ofenderá isto a justiça? Sim.
Perturbará os princípios estabelecidos com cuidado?
Derrubará do seu púlpito a moral? Perturba e derruba.

Olhem-me bem estes felizardos:
se ao menos se mascarassem um pouquinho,
fingissem melancolia dando assim algum ânimo aos amigos!
Ouçam bem como se riem — é um insulto.
A linguagem que usam — entendivel, pelos vistos.
E aquelas cerimónias, etiquetas,
obrigações rebuscadas um para o outro —
parece mesmo um acordo nas costas da humanidade.

É difícil até de prever no que daria
se um tal exemplo pudesse ser seguido.
Com que é que poderiam contar as religiões, a poesia,
de que nos recordaríamos, de que desistiríamos,
quem quereria pertencer ao círculo?

Amor feliz. Assim terá que ser?
Tacto e bom senso mandam omiti-lo
como a um escândalo nas altas esferas da Existência.


in:  Paisagem com Grão de Areia. Relógio d’Água,1998.

21 de dez. de 2014

PREVIAMENTE :: Ester Naomi Perquin (Utrecht em 1980)

 Marc Chagall

Na primeira existência aprendes logo o formato,
célula após célula desenrola-se em meadas organizadas, planta membros,
és reduzido lentamente a um conceito de seis letras.

Esqueces-te de como era ser perfeito. Permaneces assim brevemente,
reconheces as oportunidades no decorrer do tempo, roças-te à
coincidência, armas-te com a razão e o tempo,
até demarcas uma vida anterior.

No momento em que te divides
desapareces simultaneamente
em dois amantes.

Muitas vezes é esse o fim, vêem-se demasiado tarde,
é como se houvesse um estranho obstáculo ou
as suas míseras vidas se desenrolassem em cidades incompatíveis.

Por vezes, revelas-te contumaz, encontras com exactidão
a fenda, deixas-te repentina e imprevisivelmente
voltar a fundir-te num só.

 tradução de Maria Leonor Raven-Gomes

9 de jul. de 2014

O Que Viveu Meia Hora (A Paixão Medida) de Carlos Drummond de Andrade,

Emanuel Tanjala

Nascer para não viver 
só para ocupar
estrito espaço numerado
ao sol-e-chuva
que meticulosamente vai delindo
o número
enquanto o nome vai-se autocorroendo
na terra, nos arquivos
na mente volúvel ou cansada
até que um dia
trilhões de milênios antes do Juízo Final
não reste em qualquer átomo
nada de um hipótese de existência.

27 de mar. de 2014

Alquimista de Clarice Lispector


EU, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus.
fonte: Um Sopro de Vida

6 de mar. de 2014

Tem aqueles que :: Wislawa Szymborska


Olga Rozanova

Tem aqueles que cumprem a vida com mais eficácia.
Põem ordem em si mesmos e a seu redor.
Têm resposta certa e jeito para tudo.
Logo adivinham quem a quem, quem com quem,
com que objetivo, por onde.
Batem o carimbo nas verdades únicas,
atiram ao triturador fatos desnecessários,
e a pessoas desconhecidas
de antemão destinam fichários.
Pensam só o quanto vale a pena,
nem um instante mais,
pois depois desse instante espreita a dúvida.
E quando recebem dispensa da existência,
deixam o posto
pela porta indicada.
Às vezes os invejo
-- por sorte isso passa.

19 de out. de 2013

Eu não existo sem você de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim

Munch 

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim 
Que nada nesse mundo levará você de mim 
Eu sei e você sabe que a distância não existe 
Que todo grande amor 
Só é bem grande se for triste 
Por isso, meu amor 
Não tenha medo de sofrer 
Que todos os caminhos me encaminham pra você 

Assim como o oceano 
Só é belo com luar 
Assim como a canção 
Só tem razão se se cantar 
Assim como uma nuvem 
Só acontece se chover 
Assim como o poeta 
Só é grande se sofrer 
Assim como viver 
Sem ter amor não é viver 

Não há você sem mim
E eu não existo sem você

14 de jul. de 2013

Das finalidades supremas da existência e da nossa dignidade como homens - Anton Tchekhov



“Em Oreanda, sentaram-se num banco perto da igreja e ficaram calados, olhando o mar embaixo. Mal se avistava Ialta através da névoa matutina, e nos cumes das montanhas nuvens brancas pairavam imóveis. A folhagem das árvores estava quieta, cigarras cantavam e o ruído surdo e monótono do mar, vindo de baixo, falava de repouso, do sono eterno que nos espera. Esse barulho já se fazia ouvir ali quando não havia Ialta, nem Oreanda; ele se faz ouvir agora e será assim também no futuro, surdo e indiferente, quando nós não mais existirmos. E nessa constância, nessa completa indiferença em relação à vida e à morte de cada um de nós, esconde-se, talvez, a garantia de nossa salvação eterna, do incessante movimento da vida na terra, do seu contínuo aperfeiçoamento. Sentado ao lado de uma jovem mulher, que no amanhecer parecia tão bela, tranqüilizado e enfeitiçado pela visão desse panorama fantástico – o mar, as montanhas, as nuvens, o amplo céu -, Gúrov pensava que no fundo, se refletirmos bem, tudo neste mundo é maravilhoso; tudo, exceto aquilo que nós mesmos pensamos e fazemos quando esquecemos das finalidades supremas da existência e da nossa dignidade como homens.”.

Tchekhov, Anton. A dama do cachorrinho. In: A corista e outras histórias. LP&M.

2 de mai. de 2013

A velhice de Leonardo Boff

Henri Matisse, 1939. foto de Gyula Halasz

Ao completar 70 anos, Boff escreveu um texto intitulado Oficialmente velho, no qual comenta o que é a velhice:

[...] A velhice é a última etapa do crescimento humano. Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades e ao moldar o nosso destino.

Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer, vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer. Então entramos no silêncio. E morremos.

A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e finalmente terminar de nascer. (...) A velhice é uma exigência do homem interior. 

Que é o homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Esta identidade devemos encará-la face a face.

BOFF, Leonardo. Oficialmente velho. 2008. Disponível em:

19 de dez. de 2012

Pão é amor entre estranhos de Clarice Lispector




Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.

in: “Felicidade Clandestina”. Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)