Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
6 de nov. de 2011
5 de nov. de 2011
Antes de morrer :: Maria Rita Kelh
Muitos anos antes de morrer já estou convencida de que finjo que a vida é literatura. Não vou mudar isso justo antes de morrer. Quem sabe, no máximo, melhorar o enredo. E transitar melhor entre os gêneros.
1) Viver a vida de uma outra mulher, muito diferente de mim. Uma mulher da roça, como eu gostava de brincar na infância. Das que acorda antes do sol, trabalha na horta, dorme ao escurecer, sem luz e sem televisão. Fogão de lenha, bichos no quintal, solidão sem abandono. A mulher que nunca fui na roça que não há.
2) Descobrir, em qualquer parte do Brasil, uma reserva de escuro e silêncio absolutos. Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira. Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
3) Gravar um CD cantando, sozinha, músicas das que mais gosto de cantar. Ou, radicalizando, mudar de profissão. Virar cantora. De boate, se é que ainda existem.
4) Ficar amiga do Chico Buarque. Só amiga. Andar a pé pelo Rio conversando com ele, horas a fio. Recordar letras de música, sambas antigos. Contar e ouvir coisas da vida.
5) Conhecer um compositor (não precisa ser o Chico Buarque) que me peça letras para as músicas dele. Virar parceira, ouvir nossos sambas no rádio.
6) Virar artista plástica. Trocar a noite pelo dia em um atelier enorme, brincando com os materiais, com as tintas, com o peso e a densidade da matéria. Encontrar o estranho silêncio da matéria. Desintoxicar a mente do excesso de palavras.
7) Virar escritora de ficção. Acordar todos os dias com saudades de meus personagens, ansiosa para entrar mais uma vez na vida deles.
8) Queimar – isso é urgente – todos os meus diários, dos quinze aos quarenta e cinco anos. Uma fogueira e tanto.
9) Ir a um pai ou mãe de santo para iniciar-me no Candomblé; virar mãe de santo também, receber entidades, aprender a jogar búzios. Gostaria de ter acesso à experiência do inconsciente pré freudiano – o inconsciente revelado a contrapelo da psicanálise.
10) Saber como é a morte. Ficar acordada até o fim. Despedir-me de tudo. Dizer a meus filhos, como o Coelho, do John Updike: “não é tão mau assim”.
4 de nov. de 2011
Pensamento musical
Belle, bonne, sage, plaisante et gente,
A ce jour cy que l'an se renouvelle,
Vous fais le don d'une chanson nouvelle
Dedans mon cuer qui a vous se presente.
De recevoir ce don ne soyés lente,
Je vous suppli, ma doulce damoyselle;
(Belle, bonne, sage...)
Car tant vous aim qu'aillours n'ay mon entente,
Et sy scay que vous estes seulle celle
Qui fame avés que chascun vous appelle:
Flour de beauté sur toutes excellente.
(Belle, bonne, sage...)
3 de nov. de 2011
O bom marido
Nunca vou esquecer a palavra ingrediente
no plural.
À tarde, Arabela conversava
com Tereza na sala de visitas.
Passei perto, ouvi:
- Custódio tem todos os ingredientes
para ser um bom marido.
- Quais são os ingredientes ?
a outra lhe pergunta.
Arabela sorri, sem responder.
Guardo a palavra com cuidado,
corro ao dicionário:
continua o mistério.
Carlos Drummond de Andrade
2 de nov. de 2011
Tenhamos paciência, andorinhas curtas
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
Mário de Andrade
1 de nov. de 2011
31 de out. de 2011
Do intraduzível
.... Numa das matérias, sobre flores (estava a primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente, que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se, criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas – gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso “amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar muito tempo pensando!
Ana Vieira Pereira
Amor - O Interminável Aprendizado
...
Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão.
O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina.
Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.
O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final.
Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não.
E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.
Absurdo.
Como pode o amor não coincidir consigo mesmo?
Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente.
Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente.
Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado.
Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado.
O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado.
Optou por aceitar a sua ignorância.
Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado.
E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.
Affonso Romano de Sant'Anna, In "21 Histórias de amor", Francisco Alves Editora – Rio de Janeiro, 2002, pág.11.
Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão.
O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina.
Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.
O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final.
Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não.
E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.
Absurdo.
Como pode o amor não coincidir consigo mesmo?
Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente.
Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente.
Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado.
Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado.
O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado.
Optou por aceitar a sua ignorância.
Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado.
E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.
Affonso Romano de Sant'Anna, In "21 Histórias de amor", Francisco Alves Editora – Rio de Janeiro, 2002, pág.11.
30 de out. de 2011
28 de out. de 2011
Orquídeas
Desenho com lápis patel seco, usando o lápis Conté.
Senta que lá vem explicação:
En 1795 Nicholas Jacques Conté inventó un método para endurecer el grafito pulverizado mezclándolo con arcilla y horneándolas convenientemente. Variando la proporción de grafito/arcilla se obtenían diferentes durezas de la mina. Este método de fabricación, que había sido descubierto anteriormente por el austriaco Josef Hardtmuth de Koh-I-Noor en 1790, sigue funcionando hoy.
27 de out. de 2011
Olhar de Livia Garcia Roza
foto: Clarinda
Foi preciso passar muito tempo
para que despertasse no meu olho
para que despertasse no meu olho
o olhar que me é próprio.
26 de out. de 2011
Efêmera
" A vida sempre me pareceu uma planta, que vive de sua raiz.
Sua verdadeira vida é invisível, escondida na raiz.
A parte que desponta acima do solo dura somente um único verão.
Depois fenece .... uma efêmera aparição.....”
Carl Gustav Jung
25 de out. de 2011
Todos os sonhos
Imagem: Stina Persson
O poeta não será mais que memória fundida nas memórias, para
que um adolescente possa
dizer-nos que tem em si todos os sonhos do mundo, como
se ter sonhos e declará-lo fosse primeira invenção sua. Há razões para pensar
que a língua é, toda ela, obra de poesia.
José Saramago Diário
de Notícias (2009)
24 de out. de 2011
Loucura razoável
imagem: Clara na praia do Lido
“Solução melhor é não enlouquecer mais do que já enlouquecemos, não tanto por virtude, mas por cálculo. Controlar essa loucura razoável: se formos razoavelmente loucos não precisaremos desses sanatórios porque é sabido que os saudáveis não entendem muito de loucura. O jeito é se virar em casa mesmo, sem testemunhas estranhas. Sem despesas.” Lygia Fagundes Telles
23 de out. de 2011
Caminhar de Chico Buarque
Imagem: Sebastião Salgado
Mas à terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
Funeral de um Lavrador, Chico Buarque
22 de out. de 2011
Distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...
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