19 de fev. de 2012

Versos de otoño de Rubén Dario

Van Gogh 

Cuando mi pensamiento va hacia ti, se perfuma; 
tu mirar es tan dulce, que se torna profundo. 
Bajo tus pies desnudos aún hay blancos de espuma, 
y en tus labios compendias la alegría del mundo. 

El amor pasajero tiene encanto breve, 
y ofrece un igual término para el gozo y la pena. 
Hace una hora que un nombre grabé sobre la nieve; 
hace un minuto dije mi amor sobre la arena. 

Las hojas amarillas caen en la alameda, 
en donde vagan tantas parejas amorosas. 
Y en la copa de otoño un vago vino queda 
en que han de deshojarse, primavera, tus rosas.

18 de fev. de 2012

Compassado de Débora Siqueira Bueno


Relógio de Salvador Dalí

No estacionamento da Faculdade de Medicina 
em Belo Horizonte 
(lugares muito amados têm seus nomes), 
entre os imensos fícus não acho, 
lugar nenhum, meu carro. 
Caminho incessante noite adentro – 
o que procuro? 
Talvez não busque nada ou, quem sabe, 
só queira descansar nesse cenário. 
Compassado caminho, luz e sombra, 
o sol penetra a ramagem densa. 
Escuto os meus passos sobre as folhas, 
ninguém a habitar aquele espaço. 
Carrego em minhas mãos pequenos seixos, 
meus dentes se quebraram em pedaços. 
E vago, desdentada, labirinto, 
as mãos bem juntas, para que não caia 
pedaço algum que possa ser colado. 
Súbito percebo, não são dentes – 
um brilho de metal faísca à vista. 
Pequenas engrenagens de relógio 
aguardam, impossível, o conserto 
do tempo que se foi, já desmontado.

17 de fev. de 2012

Narradores e escreventes de Elias Canetti


Os mais concorridos são os narradores. À sua volta formam-se as rodas mais apinhadas e mais constantes. As récitas duram muito tempo, no círculo mais próximo os ouvintes se acocoram e não se levantam mais. Os demais, em pé, formam um segundo círculo; esses também mal se mexem, fascinados pelas palavras e gestos do narrador. Às vezes são dois que se revezam na récita. Suas palavras vêm de longe e pairam mais tempo no ar do que as do homem comum. Eu não entendia nada e mesmo assim ficava preso a suas vozes. Eram palavras sem nenhum significado para mim, proferidas com arroubo e ardor: faziam a delícia do homem que as pronunciava e se orgulhava delas. Ele as ordenava segundo um ritmo que sempre me parecia muito pessoal. Quando fazia uma pausa, o outro se adiantava, ainda mais impetuoso e sublime. Eu podia notar a solenidade de muitas palavras e a perfídia de outras. As lisonjas me tocavam como se fossem dirigidas a mim; sentia-me em perigo. Tudo estava sob o império do narrador, as palavras mais poderosas voavam precisamente até onde ele quisesse. A atmosfera entre os ouvintes estava carregada, e mesmo eu, que entendia tão pouco, sentia sua vida que se agitava.
Para ficar à altura de suas palavras, os narradores vestiam-se de forma vistosa. Os trajes eram sempre diferentes do usual dos ouvintes. Preferiam tecidos mais suntuosos; às vezes, um deles vinha vestido em veludo castanho ou azul. Pareciam personagens importantes, mas de carochinha. Mal de dignavam a olhar a gente que os cercava. Olhavam para os seus heróis e criaturas. Quando seu olhar caia sobre alguém do público, o sujeito devia se sentir tão opaco quanto os demais. Os estrangeiros nem existiam para eles, não tinham lugar no reino de suas palavras. De início, não conseguia acreditar que se interessassem tão pouco por mim, era insólito demais para ser verdade. E eu ficava mais tempo ainda, por mais que já me sentisse atraído por outros sons naquela praça transbordante de sons, mas não repararam em mim nem mesmo quando já começava a me sentir à vontade naquela grande roda. É claro que o narrador me notara, mas para ele eu seguia sendo alheio a seu círculo mágico, uma vez que eu não o entendia.
Muitas vezes teria dado tudo para entender o que diziam, e espero que chegue o dia em que eu possa fazer justiça a esses narradores ambulantes. Mas também ficava feliz de não entendê-los. Seguiam sendo para mim um enclave de vida antiga e intocada. Sua língua lhes era tão cara quanto a minha para mim. As palavras eram seu alimento, e ninguém os seduziria a trocá-lo por algum outro melhor. Eu tinha orgulho do poder narrativo que eles exerciam sobre seus conterrâneos. Pareciam meus irmãos mais velhos e mais experientes. Nos melhores momentos, eu me dizia: eu também sei juntar pessoas à minha volta quando narro uma história, também a mim elas dão ouvidos. Mas, em vez de ir de um lugar para o outro, sem nunca saber quem vou encontrar pela frente, quais ouvidos vão se abrir para mim, em vez de viver da plena confiança no que tenho a narrar, eu me entreguei ao papel. Vivo agora sob a proteção de portas e escrivaninhas, um sonhador covarde, enquanto eles vivem no tumulto do mercado, entre cem rostos desconhecidos, mudando diariamente, livres do fardo de um saber frio e supérfluo, sem livros, ambição ou nomeada. Poucas vezes me senti bem entre os homens das nossas terras que vivem de literatura. Eu os desprezei porque desprezo alguma coisa em mim mesmo, e creio que essa alguma coisa é o papel. E de repente estava entre poetas que eu podia olhar com admiração, pois deles não havia nada que ler.
fonte: Canetti, Elias.  As vozes de Marrakech.  Cosac Naify, 2006.

16 de fev. de 2012

Receita de casa de Lya Luft


Matisse - collioure interior (1906)

Uma casa deve ter varandas
para sonhar, cantos para chorar,
quartos para os segredos
e a ambivalência.

Um amor precisa espaço de voar,
liberdade para querer ficar,
alegria, e algum desassossego 
contra o tédio. 

Não se esqueçam os danos a cobrir,
o medo de partir, e o dom de surpreender
- que é a sua essência.


In Para Não Dizer Adeus

15 de fev. de 2012

Como no céu de Fabrício Carpinejar



O riacho é um cavalo líquido,
a pedra é um cavalo preso.
As borboletas são flores com abelhas dentro.
Liberdade é apenas mudar a forma,
o que não diminui a solidão
do nascimento.

In Como no Céu

14 de fev. de 2012

TENTAÇÃO de Clarice Lispector


Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
   Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
   Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
   Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
   A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
    Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
    Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
   Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
   No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
   Mas ambos eram comprometidos.
   Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
   A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
   Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
__________________
Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Toada da esquina de Mário de Andrade



Pouco antes do meio-dia
Senti que vinha. Esperei.
Veio. Passou. Foi assim
Como se a Lua passasse
Por essa picada estranha
Que viajo desde nascer.

A redoma toda verde
Do meu peito escureceu.
Noite de maio bondoso.
Lá vai a Lua passando.
Há mesmo essa refração
Que me bota no pescoço
O cachecol da Via-Látea
E a Lua na minha mão.

Mas quando quero gozar
O belo táctil luar,
E passo a mão sobre os dedos...
Tenho de desiludir-me .
Foi mentira dos sentidos,
Foi o orvalho. Nada mais.
Veio. Passou. Foi assim
Como se a Lua...

Suspiro talqual na infância.
- Que queres, Mário? - Mamãe,
Quero a Lua - Hoje é impossível,
Já vai longe. Tem paciência,
Te dou a Lua amanhã.

E espero. Esperas...Espera...

- Pinhões!

In Poesias Completas

12 de fev. de 2012

Beatriz Milhazes

Meu limão

Paz e Amor , 1995 - 1996 acrílica sobre tela










Beatriz Ferreira Milhazes (Rio de Janeiro RJ 1960). A artista trabalha freqüentemente com formas circulares, sugerindo deslocamentos ora concêntricos ora expansivos. Na maioria dos trabalhos, prepara imagens sobre plástico transparente, que são descoladas, como películas, e aplicadas na tela por decalque. Aglomera as imagens, preenchendo o fundo e retocando a imagem final. Os motivos e as cores são transportados para a tela por meio de colagens sucessivas, realizadas com precisão. A transferência das imagens da superfície lisa para a tela faz com que a gestualidade seja quase anulada. A matéria pictórica obtida por numerosas sobreposições não apresenta, entretanto, nenhuma espessura: os motivos de ornamentação e arabescos são colocados em primeiro plano. O olhar do espectador é levado a percorrer todas as imagens, acompanhando a exuberância gráfica e cromática presente em seus quadros.

fonte: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=573

Uns de Caetano Veloso


Uns vão
Uns tão
Uns são
Uns dão
Uns não
Uns hão de
Uns pés
Uns mãos 
Uns cabeça
Uns só coração
Uns amam
Uns andam
Uns avançam
Uns também
Uns cem
Uns sem
Uns vêm
Uns têm
Uns nada têm
Uns mal
Uns bem
Uns nada além
Nunca estão todos


Uns bichos
Uns deuses
Uns azuis
Uns quase iguais
Uns menos
Uns mais 
Uns médios
Uns por demais
Uns masculinos
Uns femininos
Uns assim
Uns meus
Uns teus
Uns ateus
Uns filhos de Deus
Uns dizem fim
Uns dizem sim
E não há outros

11 de fev. de 2012

Insônia de Débora Siqueira Bueno



Adan y Eva de Yoshiro Tachibana

O corpo abandona-se ao peso.
Respira opresso,
deprime e
imprime
a marca
ao leito.
Insone,
se despe.
A humana
vulnerabilidade
ao meu lado descansa
exposta, tangível, entregue.
Carregou muitos fardos, tanto cansaço.
Deixa a vigilância, rende-se.
Em silêncio
observo,
espero
e velo
o sono,
os sonhos,
o quieto repouso.
Entregues, dormimos de mãos dadas.

Isabelle Tuchband






















Nascida em 1968, na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, Isabelle Tuchband é filha do pintor francês Èmile Tuchband (1933-2006) e de Marlene Tuchband. Isabelle multiplica sua energia por tantas artes como: cerâmica, escultura, pintura, ilustração e design. A figura da mulher e flores está sempre presente em suas pinturas e seus traços imperfeitos acabam dando delicadeza a sua arte. As cerâmicas são um capítulo à parte quando falamos da artista. Elas faz muitas pinturas em vasos que acabam virando objetos de desejo de muitos colecionadores, arquitetos e decoradores.

10 de fev. de 2012

Elegía del recuerdo imposible de Jorge Luis Borges


Chichester Canal de William Turner 

Qué no daría yo por la memoria
De una calle de tierra con tapias bajas
Y de un alto jinete llenando el alba
(Largo y raído el poncho)
En uno de los días de la llanura,
En un día sin fecha.
Qué no daría yo por la memoria
De mi madre mirando la mañana
En la estancia de Santa Irene,
Sin saber que su nombre iba a ser Borges.
Que no daría yo por la memoria
De haber combatido en Cepeda
Y de haber visto a Estanislao del Campo
Saludando la primera bala
Con la alegría del coraje.
Qué no daría yo por la memoria
De un portón de quinta secreta
Que mi padre empujaba cada noche
Antes de perderse en el sueño
Y que empujó por última vez
El catorce de febrero del 38.
Qué no daría yo por la memoria
De las barcas de Hengist,
Zarpando de la arena de Dinamarca
Para develar una isla
Que aún no era Inglaterra.
Qué no daría yo por la memoria
(La tuve y la he perdido)
De una tela de oro de Turner,
Vasta como la música.
Qué no daría yo por la memoria
De háber sido auditor de aquel Sócrates
Que, en la tarde de la cicuta,
Examinó serenamente el problema
De la inmortalidad,
Alternando los mitos y las razones
Mientras la muerte azul iba súbiendo
Desde los pies ya fríos.
Qué ño daría yo por la memoria
De que me hubieras dicho que me querías
Y de no haber dormido hasta la aurora,
Desgarrado y feliz.

9 de fev. de 2012

Voltar aos 17 de Violeta Parra


O rapto de Psique (1895) William-Adolphe Bouguereau

De par a par la ventana
Se abrió como por encanto,
Entró el amor con su manto
Como una tibia mañana,
Al son de su bella diana
Hizo brotar el jazmín,
Volando cual serafín
Al cielo le puso aretes
Y mis años en dicisiete
Los convirtió el querubín 
......................................................................................

De par em par a janela se abriu como por encanto
Entrou o amor com seu manto como uma cálida manhã
Ao som de sua bela alvorada fez brotar o jasmim
Voando qual serafim ao céu lhe pôs brincos
Meus anos em 17 os converteu o querubim


8 de fev. de 2012

É perturbador mesmo, perturbador. Adélia Prado

(...) afinal, você percebe que tudo é basicamente igual. O que interessa mesmo é a tua vidinha. Porque você não tem mais que ela (risos). Você não tem mais do que as 24 horas do dia. Ninguém tem mais que isso. E é nessa experiência pequeninha, miserável, limitada, carente, que eu vou dar uma resposta ao absurdo da minha existência e do mundo. É esse microcosmo mesmo: a filinha do supermercado, a barra da calça… Não por isso que você é poeta do cotidiano ou poeta da metafísica. A metafísica está aí nessas coisas. Aquilo do (José) Ortega y Gasset (1883-1955, filósofo espanhol): “Admirar-se do que é natural é dom do filósofo.” É o dom do poeta! Todo mundo sai correndo para ver um fenômeno da natureza, sei lá o quê. Mas preocupar-se com aquilo que é absolutamente natural é a grande riqueza, aquilo que é o dado imediato da vida. E o dado imediato são nossas carências e obrigações cotidianas. Não tem nada tão grande porque tudo você pode amansar. Você nunca viu o palácio da Rainha da Inglaterra, fica lá um dia ou dois e amansa o lugar. “Só isso? Eu quero mais, eu quero mais.” Você está sempre querendo além do que você tem. E esse além é de natureza transcendente, é a fome da alma, a fome do espírito. É uma coisa impressionante porque você, limitado e finito, fala em conceitos loucos para nós que somos tão pequenos: o infinito. Infinitamente pequeno (risos). “Infinitamente pequeno” está me perturbando ultimamente (risos). Ele é perturbador mesmo, perturbador.
fonte: Revista SaraivaConteúdo – 2010

7 de fev. de 2012

A marca da solidão de Heloisa Seixas


No côncavo das palmas, o homem segurou com cuidado o gatinho. Observou-o enquanto ele se debatia. Mexia as patinhas dianteiras e traseiras, mas sem muita convicção, apenas mostrando disposição de brincar e não dando qualquer sinal de impaciência ou alarme. Assim, entre suas mãos, tão pequeno que era, com a barriga para cima, lembrava um bebê que, deitado no berço, agitasse mãos e pés tentando alcançar algum móbile suspenso. O homem sorriu.

Em seguida, sentando-se no sofá, acariciou o corpo do gato, pouco maior do que sua mão. O bichinho acalmou-se, de repente. Ficou imóvel, os olhos quase cerrados, parecendo saborear o momento de ternura. Tão pequeno e o animal já parecia dar valor a uma carícia. Era natural, pensou o homem. Afinal, fora abandonado na rua. E agora, por entre suas mãos calosas, aquele ser tão frágil era uma presença inesperada, subversiva, surpreendente. Os gatos precisam ser acariciados quando pequenos, lembrou ele, principalmente se tiverem sido separados da mãe muito cedo. Caso contrário, quando adultos podem tornar-se medrosos, tímidos ou mesmo agressivos.

E de repente o sorriso do homem cessou.

Por associação de ideias, pensou em um livro que acabara de ler, um livro antigo, esquecido havia muito, e que por acaso apanhara outro dia na estante. Era um livro de José Carlos de Oliveira, chamado O pavão desiludido, em que o cronista relatava os horrores de sua infância. Havia uma passagem, logo no início, em que Carlinhos de Oliveira contava como ele, menino miserável, faminto e cheio de vermes, um dia, apanhando água na bica, recebera da irmã um presente: um arco-íris. ''Olhei e vi o arco-íris na água aberta em leque sob o céu azul. O sol devia estar criando uma ilusão, mas o que eu via era o milagre da multiplicação das lágrimas coloridas onde antes só havia lágrimas''. Mais adiante, o cronista falava de como ficara marcado pela infância difícil e sobre a relação terrível que tivera com a mãe: ''Quando se cria um abismo assim entre duas pessoas da mesma família, sendo uma delas criança, mais tarde se verifica que nem todo o amor do mundo daria para encher o buraco''.

E, voltando a olhar o gatinho, que agora dormia, o homem sorriu um sorriso triste. Assim como Carlinhos, ele próprio tivera uma infância infeliz. E assim como aquele filhote que tinha nas mãos, também fora deixado para trás, num certo sentido. Para o pequeno animal, ainda havia salvação. Mas para ele - como fora talvez para o escritor - era tarde.

Suspirou. Sabia bem. Trazia uma nódoa indelével, o estigma daqueles a quem faltou, na hora exata, a carícia necessária. Trazia, no corpo e na alma, a marca da solidão.

À luz de Mia Couto

Picasso

Um filho, afinal, é quem dá à luz a mãe. 
Pois cada menino nascido faz nascer uma mãe de uma respectiva mulher.
Mia Couto

Vittorio Costantini: Escultor de vidro





Uma forma de arte particularmente cultivada em Veneza, reconhecida ao menos desde o século 16, é a escultura de vidro. A ilha de Murano é a maior responsável por essa produção.
Linhas de barcos para Murano partem do cais Fondamenta Nuove, na parte norte de Veneza. Relativamente perto desse cais, está situada a loja e estúdio de um dos mais reconhecidos artistas das esculturas de vidro: Vittorio Costantini.
Apesar do renome, ele não é de Murano, mas da vizinha ilha de Burano, famosa pelo rendado. Com seu maçarico, o artista foca em trabalhos pequeninos e delicados. "A fragilidade faz o valor", ressalta o artesão.
Rodeado por pilhas de livros de diferentes partes do mundo -até mesmo do Japão- sobre animais, Vittorio Costantini sempre busca representar a natureza, frequentemente pássaros, animais aquáticos ou insetos.
Quando é questionado sobre o tempo que leva para produzir uma de suas obras, prefere ressaltar seus 55 anos de experiência -treina o ofício desde os 11-, além de mostrar um pote cheio de tentativas que não deram certo ou ensaios preparatórios, como pedaços do que poderia ser uma borboleta.
O artista não fala inglês, mas deixa o turista à vontade para fotografar e observar seu processo de produção -esticando os tentáculos de um polvo, por exemplo.
Seus trabalhos são mais caros que o habitual em outras lojas, mas dá para obter algum por € 60. Uma complexa água-viva na loja chega a ser orçada por € 3.000, e um colecionador já lhe ofereceu € 10 mil por uma aranha em maior escala -oferta, diz ele, recusada, pois pertencia a sua coleção pessoal.
Só é realmente difícil atravessar o labirinto de vielas e pontes até chegar ao esconderijo do artista. A reportagem contou com a ajuda de um eletricista morador da região, que consultou no computador o endereço (calle del Fumo, 5.311) e guiou pessoalmente até lá.
Costantini não liga: diz que prefere ficar distante das aglomerações das ruas principais para ter mais concentração. E ele nem mora em Veneza, mas em outra cidade, no continente e com mais natureza, como aprecia. Todo dia, caminha meia hora até a estação e depois leva mais quase uma hora de trem para casa.(MAURICIO KANNO)
fonte:  Folha de São Paulo, Turismo -quinta-feira, 10 de novembro de 2011

6 de fev. de 2012

Trovas de muito amor para um amado senhor de Hilda Hilst


Senhor, se a mim me acrescento 
Flores e renda, cetins, 
Se solto o cabelo ao vento 
É bem por vós, não por mim. 

Tenho dois olhos contentes 
E a boca fresca e rosada. 
E a vaidade só consente 
Vaidades, se desejada. 

E além de vós 
Não desejo nada.

5 de fev. de 2012

Só Tenho a Ti de Hilda Hilst e Adoniran Barbosa



Só tenho a ti
Mas tão distante
Que não me ouves
Chamo e pergunto
Se ainda me queres
Mas o teu grito de assentimento
Chega cansado a meu ouvido
E assim cansado
Desaparece
Como um lamento

Ó minha amada
Bem eu quisera
Que esta vontade
Que se avoluma
No meu pensamento
Se fosse embora
Se fosse embora

O gato e o pássaro :: Jacques Prévert

O gato e o pássaro Uma cidade escuta desolada O canto de um pássaro ferido É o único pássaro da cidade E foi o único gato da cidade Que o de...