13 de abr. de 2012

Ane Vivoda - artista croata






Instantâneos diferentes do ser de Marcel Proust


Fabrice Wittner

Os seres não cessam de mudar de lugar em relação a nós. Na marcha insensível mas eterna do mundo, nós consideramo-los como imóveis num instante de visão, demasiado breve para que seja percebido o movimento que os arrasta. Mas basta escolher na nossa memória duas imagens suas, tomadas em instantes diferentes, bastante próximos no entanto para que eles não tenham mudado em si mesmo, pelo menos sensivelmente, e a diferença das duas imagens mede a deslocação que eles operavam em relação a nós.
Marcel Proust, in 'Sodoma e Gomorra'

12 de abr. de 2012

Amizade de Simone Weil


imagem: Jack Vettriano

A amizade deve ser uma alegria gratuita como as que a arte ou a vida oferecem.

Simone Weil, in A Gravidade e a Graça

Saudade de Guimarães Rosa



A saudade é o braço-e-a mão do coração, e que, certas horas, 
quer segurar demais em alguma pessoa ou coisa.

João Guimarães Rosa in Ave, Palavra

11 de abr. de 2012

Efeito jacaré de Fabrício Carpinejar



Toda relação tem um efeito Jacaré. Ele engole pessoas ainda vivas. Tritura amores. Cuidado.
Fui procurar uma meia na lavanderia de minha namorada. Achei um saco de brinquedos. Num canto. Mexi com o tato: hélices, bonecas, corda de pular, quebra-cabeça.
- O que é isso, Cínthya?
- O quê?
- Esse saco de brinquedos aqui atrás?
- Peças do meu consultório antigo, quando atendia crianças.
Observei o estado de abandono das peças, exalando a condição de trastes, empoeirados e sem uso. Retirei todos para espiar se localizava algum fetiche de minha infância. Virei a lona no chão e já não me importava que estava descalço. Do pântano, saltou um jacaré. Bonito, de borracha, do tamanho de uma tábua de passar.
Pulei de faceirice como quem reencontra um par de luvas. Combina com a minha estante, pensei. Vou colocar na ala infantil, chamará atenção.
Naquele momento, eu me fardei de pet shop. Levei o bichinho para lavar. Retirei as manchas, a sujeira, esfreguei suas escamas, ainda dei ao luxo de aquecê-lo com o secador.
O jacaré rejuvenesceu, já era um filhote de jacaré. Lustrado. Cintilante.
Na sala, comuniquei minha decisão para Cínthya:
- Peguei o Jacaré para mim.
- Que jacaré?
- Este! (retirei das costas como um buquê). Arrumei e aprontei para sair comigo. Vou levar para meu escritório.
- Nãooooooooooooooooo
A negativa me magoou. Não absorvi o tranco. Imaginei que estivesse troçando, fazendo charme. Mas ela lançou tentáculos na minha direção e puxou o jacaré para perto dos seus seios. Com a violência de uma mãe recente.
Tentei argumentar:
- Largou o bicho, imundo. Não duvido que permaneceu parado naquele lugar há três anos. E agora banca a interessada?
- Não importa, é meu!
É muito egoísmo, deduzi. E comecei a enumerar as minhas tentativas frustradas de levar algo de seu apartamento. Reclamei de sua possessividade, da ausência absoluta de gentileza. Demonizei a namorada, faltou somente colocar a bata negra da Inquisição e armar o fogo.
Bati a porta e não me despedi. Desci lento as escadas, aguardando que ela se arrependesse. Sempre parto devagar, esperando um pedido de desculpa sôfrego pelo corredor, dando chance para que ela me alcance pelo grito.
Não correu atrás de mim, muito menos caminhou. Não era isso que queria mesmo. A verdade é que não desejamos que a namorada corra para nos buscar, desejamos que ela rasteje.
Perdi o jacaré. Aliás, não perdi o jacaré, não era meu, não ganhei o jacaré simplesmente.
Por pouco, não fui engolido pela avareza. O orgulho é a mais grave avareza.
Descobri que o egoísta era eu. Eu é que entrei em seu espaço, mexi em suas lembranças, retirei um objeto qualquer, sem perguntar que valor tinha para ela, quem havia oferecido, sua história. Vá lá que seja lembrança de um amigo que morreu ou um presente de uma amiga que não vê mais.
É a mania de desfalcar quem amamos pelo ideal de despojamento. Há uma concepção equivocada no relacionamento de que não deve persistir limites na entrega. Com limites, acusamos que não é mais amor.
Aproveitando a culpa, os amantes são os piores trambiqueiros, esquecem o valor dos detalhes, tiram vantagem em cada gesto.
É o mesmo que entrar no quarto do filho e colocar, de modo arbitrário, roupas fora. Entregaremos justo sua camisa predileta ou a mais confortável para a Campanha do Agasalho. É o mesmo que promover uma limpeza nas gavetas da criança e eliminar tampinhas de garrafa, confiando que aquilo é um lixo imperdoável, sem adivinhar que serviam para sinalizar a pista de pouso dos aviões de guerra.
Cada peça da casa é contaminada pela imaginação do seu dono, revestida da memória afetiva de seu uso. Não seria conservada se não fosse importante.
Não desfrutei de nenhuma educação, poderia ao menos questionar qual o nome do jacaré. Recolhi o animal com a pretensão de que cuidaria melhor dele. Deixei de cuidar de minha namorada.

Ara Güler, fotojornalista
















Ara Güler nascido em Istambul em 1928, é um fotojornalista de origem armenia.

10 de abr. de 2012

Calu Fontes

















Tudo o que temos – e nos escapa. Maria Rita Kelh

Ferdinand Hodler
O passado tornou-se o único terreno seguro onde a imaginação pode armar sua tenda e contemplar o mundo em relativa tranqüilidade. Na vida em retrospecto, todas as nossas escolhas teriam sido corretas. Teríamos sido abolicionistas no século XIX, modernistas nos anos 1920, resistentes antifascistas em 1930-40, opositores firmes contra as duas ditaduras brasileiras. O passado nos poupa da dimensão trágica da escolha. 
Mas é no presente que o corpo está vivo. No presente é que se jogam os lances de dados do destino. Ele é tudo o que temos – e nos escapa.

9 de abr. de 2012

Andorinha de Manuel Bandeira



Andorinha lá fora está dizendo: 
- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! 
Passei a vida à toa, à toa...

8 de abr. de 2012

Copo de Leite






Oração de Antônio Maria

"Rosinha Desossée, me tire desse quarto de hotel e de todas as coisas que entram pela janela; me leve para longe das palmeiras, mais longe e perto das coisas mais macias; me faça esquecer (depressa) os homens ruins — isto é: os que gostam de cebola crua; me ensine, Rosinha Desossée, tudo o que eu não aprendi: a cortar com a mão direita, a usar anel, a tocar piano, a desenhar uma árvore e valsar; e me lembre do que eu esqueci — raiz quadrada, (as mais ordinárias), frações, latim, geofísica e "Navio Negreiro", de Castro Alves; depois, me dê, pelo bem dos seus filhinhos, aquilo que eu não tenho há quase um ano, carinho — de um jeito que eu não sei dizer como é, mas que há, por aí ou, pelo menos, já houve; destelhe a casa, deixe a noite entrar e, juntos, vamos nos resfriar; espirre de lá, que eu espirro de cá... agora, cada um com a sua bombinha, inalação, inalação; lado a lado, sentemos, os dois de perfil para o ventilador; minhas mãos e as suas não são de ninguém, entendido?; se interesse por mim e pergunte o que eu sei, que eu quero exclamar, no mais puro francês: "oh!"..."comment allez vous"? (...) de um jeito ou de outro, me tire daqui, pra Pérsia, Sibéria, pro Clube da Chave, pra Marte, Inglaterra, sem couvert, sem couvert; está vendo o retrato dos meus 20 anos? de lá para cá, cansaço, pé chato, gordura, calvície fizeram de mim essa coisa ansiosa, insegura e com sono, que pede a você, no auge do manso: você, Desossée, não saia esta noite e fique, ao meu lado, esperando que o sono me tome e me mate, me salve e me leve, por amor ao teu andar, assim seja..."

Antonio Maria , 30-03-1954
Rosinha Desossée, uma prostituta, 

O gato e o pássaro :: Jacques Prévert

O gato e o pássaro Uma cidade escuta desolada O canto de um pássaro ferido É o único pássaro da cidade E foi o único gato da cidade Que o de...