17 de dez. de 2012

A verdade de José de Almada Negreiros


Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo. O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade! E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado. O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a ver­dade !!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!

Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me pas­sou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta con­fessei a verdade:Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de­-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...



16 de dez. de 2012

Anúncio de Casa de Fernando Sabino


“Procura-se casa para alugar ou comprar, com três quartos, duas salas, banheiro, cozinha, quarto de empregada, demais dependências, poder de sugestão, varanda e quintal.

Por poder de sugestão, entenda-se aquele misterioso dom que certas casas têm de sugerir a vida dos que já moraram nela. Não pelas manchas e estragos que lhe deixaram antigos moradores, mas exatamente pelas marcas invisíveis que suas paredes recolheram e o tempo fixou.

Essas marcas devem nascer do soalho sob as passadas do morador, correr ao longo das tábuas do teto aos olhos insones que nele se distraem, participar dos próprios ruídos que ajudam a adormecer: o da água caindo na caixa, os talidos de madeira no escuro, o rincho de uma porta ou dos degraus da escada; devem efluir dos trincos e maçanetas, da sombra na parede, terror de uma infância, do vento que infla a cortina. Devem, enfim, impregnar cada canto da casa, estas marcas de tradição que ela carrega em seu bojo como uma carga de navio, a que vai se juntar a do novo morador, dando-lhe novo espírito, e finalmente a absorve”
in No fim dá certo, Record, 2007, pg. 134)


14 de dez. de 2012

A Menina de Livia Garcia Roza



Tarsila do Amaral, Beatriz Menina, 1938-39

A menina que eu fui pensa hoje em mim.

A LUÍS MAURÍCIO, INFANTE de Carlos Drummond de Andrade



Monet 

Acorda, Luís Mauricio. Vou te mostrar o mundo,
se é que não preferes vê-lo de teu reino profundo.


Despertando, Luís Mauricio, não chores mais que um tiquinho.
Se as crianças da América choram em coro, que seria, digamos, do teu vizinho?



Que seria de ti, Luís Mauricio, pranteando mais que o necessário?
Os olhos se inflamam depressa, e do mundo o espetáculo é vário



e pede ser visto e amado. É tão pouco, cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luís Mauricio, que sejam novos e comovidos.



E como há tempo para viver, Luís Mauricio, podes gastá-lo à janela
que dá para a "Justicia del Trabajo", onde a imaginosa linha da hera



tenazmente compõe seu desenho, recobrindo o que é feio, formal e triste.
Sucede que chegou a primavera, menino, e o muro já não existe.



Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio, Luís Mauricio.
Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício.



E agora, começa a crescer. Em poucas semanas um homem
Se manifesta na boca, nos rins, na medalhinha do nome.



Já te vejo na proporção da cidade, dessa caminha em que dormes.
Dir-se-ia que só o anão de Harrods, hoje velho, entre garotos enormes,



conserva o disfarce da infância, como, na sua imobilidade,
à esquina de Córdoba e Florida, só aquele velho pendido e sentado,



de luvas e sobretudo, vê passar (é cego) o tempo que não enxergamos,
o tempo irreversível, o tempo estático, espaço vazio entre ramos.



O tempo que fazer dele? Como adivinhar, Luís Mauricio,
o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifício?



Hás de aprender o tempo, Luís Mauricio. E há de ser tua ciência
uma tão íntima conexão de ti mesmo e tua existência,



que ninguém suspeitará nada. E teu primeiro segredo
seja antes de alegria subterrânea que de soturno medo.



Aprenderás muitas leis, Luís Mauricio. Mas se as esqueceres depressa,
Outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa,



e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo.



Pois a linguagem planta suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas



são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos e cantigas



que alguém um dia cantará, Luís Mauricio. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto



ou de riso. E te acompanhará, Luís Mauricio. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita por, exemplo, as ervas,



enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura



essa discreta forma verde, entre formas? E imagina ser pensado,
pela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeição surda, um passado



articulando os bichos e suas visões, o mundo e seus problemas;
imagina o rei com suas angústias, o pobre com seus diademas,



imagina uma ordem nova; ainda que uma nova desordem, não será bela?
Imagina tudo: o povo,com sua música; o passarinho, com sua donzela;



o namorado com seu espelho mágico; a namorada, com seu mistério;
a casa, com seu calor próprio; a despedida, com seu rosto sério;



o físico, o viajante, o afiador de facas, o italiano das sortes e seu realejo;
o poeta sempre meio complicado; o perfume nativo das coisas e seu arpejo;



o menino que é teu irmão, e sua estouvada ciência
de olhos líquidos e azuis, feita de maliciosa inocência,



que ora viaja enigmas extraordinários; por tua vez, a pesquisa
há de solicitar-te um dia, mensagem perturbadora na brisa.



É preciso criar de novo, Luís Mauricio. Reinventar nagôs e latinos,
E as mais severas inscrições, e quantos ensinamentos e os modelos mais finos,



de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrentá-la com poderosos recursos.
Mas seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos.



Inconformados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,
E na sua faminta inquietação, algo se liberta da jaula e seu quadrado.



Detém-te. A grande flor do hipopótamo brota da água nenúfar!
E dos dejetos do rinoceronte se alimentam os pássaros. E o açúcar



que dás na palma da mão à língua terna do cão adoça todos os animais.
Repara que autênticos, que fiéis a um estatuto sereno, e como são naturais.



É meio-dia, Luís Maurício, hora belíssima entre todas,
pois, unindo e separando os crepúsculos, à sua luz se consumam as bodas



do vivo com o que já viveu ou vai viver, e a seu puríssimo raio
entre repuxos, os "chicos" e as "palomas" confraternizam na "Plaza de Mayo".



Aqui me despeço e tenho por plenamente ensinado o teu ofício,
que de ti mesmo e em púrpura o aprendeste ao nascer, meu netinho Luís Mauricio.

13 de dez. de 2012

Figos, Figues, higos, fichi, ficis, smochine, tin, fíkjur


Memória de Santo Agostinho


Em seu livro, "As Confissões", Santo Agostinho refletiu sobre o arcabouço da memória. "Mas eis-me diante dos campos , dos vastos palácios da memória, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Lá estão guardados todos nossos pensamentos, quer aumentando, quer diminuindo, quer modificando de qualquer modo as aquisições de nossos sentidos, e tudo que aí depositamos ou reservamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido pelo esquecimento."

12 de dez. de 2012

11 de dez. de 2012

Antúrio



















Nome Científico: Anthurium andraeanum
Nomes Populares: Antúrio,
Família: Araceae
Categoria: Flores Perenes, Forrações à Meia Sombra
Clima: Equatorial, Subtropical, Tropical
Origem: América do Sul, Colômbia
Altura: 0.3 a 0.4 metros, 0.4 a 0.6 metros
Luminosidade: Luz Difusa, Meia Sombra
Ciclo de Vida: Perene
O antúrio é uma planta tradicional no paisagismo. Fez parte de uma moda antiga e teve o brilho completamente renovado recentemente com o lançamento de novas cultivares. Utilizada há muito tempo em vasos para decorar interiores, hoje em dia pode compor maciços e bordaduras em jardins externos também. É um curinga para os cantinhos menos iluminados do jardim, onde outras flores jamais iriam prosperar. O melhoramento genético proporcionou diversas variedades, com portes diferentes e flores de coloração vermelha, rosa, salmão, chocolate, verde e branca.

Exigente quanto à umidade, deve ser plantada sempre à meia-sombra, em substratos ricos em matéria orgânica, como a fibra de côco misturado com terra vegetal, com regas freqüentes e adubação adequada para florescer. Apesar destes cuidados, é uma planta rústica e de baixa manutenção. O replantio a cada 3 ou 4 anos revigora as plantas velhas. Multiplica-se por estaquia.
fonte: jardineiro.net

Alegrias de Livia Garcia Roza

Vivian Gutierrez
Perco muito tempo com as alegrias.


10 de dez. de 2012

Luz, cor, brilho


Extraordinário de Clarice Lispector (nascida Haia Pinkhasovna Lispector (Tchetchelnik, Ucrânia em 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977)

“De algum modo já aprendera que cada dia nunca era comum, era sempre extraordinário. E que a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele. Ela queria o prazer do extraordinário que era tão simples de encontrar nas coisas comuns: não era necessário que a coisa fosse extraordinária para que nela se sentisse o extraordinário.”

In: Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Relógio D’Água

9 de dez. de 2012

Espelho de Clarice Lispector nascida Haia Pinkhasovna Lispector (Tchetchelnik, Ucrânia em 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977)

foto:  Stanislav Odyagailo
Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. Do deserto também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo. Tire-se sua moldura ou a linha de seu cortado, e ele cresce assim como água se derrama.
O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo vem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - esse alguém percebeu o seu mistério de coisa. Para isso há de se surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei da minha própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem, pois espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, tal ausência de si mesmo, que a imagem não marca. Como prêmio essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: viu o espelho propriamente dito.
In: Água viva

7 de dez. de 2012

Despojamento de João Cabral de Melo Neto


...
não só cultivar sua flor 
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão 

com mão serena e contida, 
sem deixar que se derrame 
a flor que traz escondida, 

e como, então, trabalhá-la 
com mão certa, pouca e extrema: 
sem perfumar sua flor, 

sem poetizar seu poema

João Cabral de Melo Neto in  Paisagens com figuras

6 de dez. de 2012

POEMA DA CURVA de Oscar Niemeyer

Oscar Niemeyer
Não é o ângulo reto que me atrai,
Nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo o homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual.
A curva que encontro no curso sinuoso dos nossos rios, 
nas nuvens do céu, 
no corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o universo,
O universo curvo de Einstein.


Flor de Lótus de Rabindranath Tagore


No dia em que a flor de lótus desabrochou,
A minha mente vagava,
E eu não a percebi.
Minha cesta estava vazia.
E a flor ficou esquecida.

Somente agora e novamente,
Uma tristeza caiu sobre mim.
Acordei do meu sonho
Sentindo o doce rastro
De um perfume no vento sul.

Essa vaga doçura 
Fez o meu coração doer de saudades.
Pareceu-me ser o sopro ardente no verão,
Procurando completar-se.
Eu não sabia então que a flor estava tão perto de mim,
Que ela era minha,
E que essa perfeita doçura
Tinha desabrochado no fundo do meu coração.

5 de dez. de 2012

Coração de Valter Hugo Mãe



‎"Para onde eu vou, vai-me o coração também, que ainda não arranjei modo de o largar pelo chão."

in: O filho de mil homens. Cosac Naify, 2012. p. 125

Bonecas de Cecília Menezes





Artista: Cecília Menezes, pintora e escultora nascida em Jequié, na Bahia, em 1950.

Meu tempo é quando de Vinícius de Moraes

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

4 de dez. de 2012

Sentidos de David Mourão-Ferreira


Icarus de Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580- 1637) 

Nós temos cinco sentidos: 
são dois pares e meio de asas. 

- Como quereis o equilíbrio?


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...