11 de mar. de 2013

10 de mar. de 2013

Teresa de Manuel Bandeira

                                        Picasso

A primeira vez que vi Teresa 
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

9 de mar. de 2013

Amor de Eugenio de Andrade


                                                                                                                                      Picasso
O amor
é uma ave a tremer
nas mãos duma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.


8 de mar. de 2013

A Ovelha de Henriqueta Lisboa





Encontrastes acaso
a ovelha desgarrada?
A mais tenra
do meu rebanho?
A que despertava ao primeiro
contato do sol?
A que buscava a água sem nuvens
para banhar-se?
A que andava solitária entre as flores
e delas retinha a fragrância
na lã doce e fina?
A que temerosa de espinhos
aos bosques silvestres
preferia o prado liso, a relva?
A que nos olhos trazia
uma luz diferente
quando à tarde voltávamos
ao aprisco?
A que nos meus joelhos brincava
tomada às vezes de alegria louca?
A que se dava em silêncio
ao refrigério da lua
após o longo dia estival?
A que dormindo estremecia
ao menor sussurro de aragem?
Encontrastes acaso
a mais estranha e dócil
das ovelhas?
Aquela a que no coração eu chamava
– a minha ovelha?

Em: Nova Lírica: poemas selecionados, Henriqueta Lisboa, Belo Horizonte, Imprensa Oficial: 1971

7 de mar. de 2013

Somos únicos - Livia Garcia Roza


Portinari

Somos únicos na possibilidade de sermos muitos. 

Livia Garcia Roza


O Dia Deu em Chuvoso - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


Chuva de Oswaldo Goeldi 


O dia deu em chuvoso. 
A manhã, contudo, esteve bastante azul. 
O dia deu em chuvoso. 
Desde manhã eu estava um pouco triste. 

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma? 
Não sei: já ao acordar estava triste. 
O dia deu em chuvoso. 

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante. 
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante. 
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante. 
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante? 
Dêem-me o céu azul e o sol visível. 
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim. 

Hoje quero só sossego. 
Até amaria o lar, desde que o não tivesse. 
Chego a ter sono de vontade de ter sossego. 
Não exageremos! 
Tenho efetivamente sono, sem explicação. 
O dia deu em chuvoso. 

Carinhos? Afetos? São memórias... 
É preciso ser-se criança para os ter... 
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro! 
O dia deu em chuvoso. 

Boca bonita da filha do caseiro, 
Polpa de fruta de um coração por comer... 
Quando foi isso? Não sei... 
No azul da manhã... 

O dia deu em chuvoso. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterônimo de Fernando Pessoa

5 de mar. de 2013

Cadeira de balanço de Carlos Drummond de Andrade


(...)
o balanço
manso manso
da cadeira
de balanço
é convite
ao descanso
à maneira
bem mineira.
Se na era
eletrônica
uma crônica,
pobrezinha,
vale menos
que a palhinha
da cadeira
(verba vana),
a pedida
verdadeira
é tirar
uma pestana
devagar
no remanso
da cadeira
de balanço.

In Viola de Bolso, 1955
In Poesia Completa, pag. 387

4 de mar. de 2013

A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector

Heru Suryoko
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que vai se aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil mas chama-se alegria.

3 de mar. de 2013

ADIAMENTO de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,

E assim será possível; mas hoje não...

Não, hoje nada; hoje não posso.

A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,

O sono da minha vida real, intercalado,

O cansaço antecipado e infinito,

Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...

Esta espécie de alma...

Só depois de amanhã...

Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...

Ele é que é decisivo.

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...

Amanhã é o dia dos planos.

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...

Tenho vontade de chorar,

Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.

Só depois de amanhã...

Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...

Depois de amanhã serei outro,

A minha vida triunfar-se-á,

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital...

Mas por um edital de amanhã...

Hoje quero dormir, redigirei amanhã...

Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,

Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...

Antes, não...

Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.

Só depois de amanhã...

Tenho sono como o frio de um cão vadio.

Tenho muito sono.

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...

Sim, talvez só depois de amanhã...


O porvir...

Sim, o porvir...
14-4-1928


Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 266.
1ª publ. in Solução Editora, nº1. Lisboa 1929.

Para uma Menina com uma Flor de Vinicius de Moraes

Roman Urbinskiy

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado. 
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. 


2 de mar. de 2013

Fui Sabendo de Mim de Mia Couto

Fui sabendo de mim 
por aquilo que perdia 

pedaços que saíram de mim 
com o mistério de serem poucos 
e valerem só quando os perdia 

fui ficando 
por umbrais 
aquém do passo 
que nunca ousei 

eu vi 
a árvore morta 
e soube que mentia 

in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

1 de mar. de 2013

Ouriço




… tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes.
Muriel Barbery.  A Elegância do ouriço. Companhia das Letras, 2008.

28 de fev. de 2013

Gratifico de Livia Garcia Roza

 John William Waterhouse

Gratifico a quem encontrar meu amor. 
É grande, eu sei, 
mas estava desorientado.

Sonetilho de verão de Paulo Henriques Britto

Traído pelas palavras. 
O mundo não tem conserto. 
Meu coração se agonia. 
Minha alma se escalavra. 
Meu corpo não liga não. 
A idéia resiste ao verso, 
o verso recusa a rima, 
a rima afronta a razão 
e a razão desatina. 
Desejo manda lembranças. 

O poema não deu certo. 
A vida não deu em nada. 
Não há deus. Não há esperança. 
Amanhã deve dar praia.

26 de fev. de 2013

Idade - Maria Lúcia Dal Farra


A primavera agita zumbidos
de flores e de cio
enquanto o sol canta baixo
roçando meu anseio,
que flutua no pio das asas
na paina fresca da aragem.


Leveza:

é tudo quanto peço ao vento. 


 Livro de auras, 1994

Para ti de Mia Couto

                                                                                                                                            Anna Silivonchik


Foi para ti 
que desfolhei a chuva 
para ti soltei o perfume da terra 
toquei no nada 
e para ti foi tudo 

Para ti criei todas as palavras 
e todas me faltaram 
no minuto em que talhei 
o sabor do sempre 

Para ti dei voz 
às minhas mãos 
abri os gomos do tempo 
assaltei o mundo 
e pensei que tudo estava em nós 
nesse doce engano 
de tudo sermos donos 
sem nada termos 
simplesmente porque era de noite 
e não dormíamos 
eu descia em teu peito 
para me procurar 
e antes que a escuridão 
nos cingisse a cintura 
ficávamos nos olhos 
vivendo de um só 
amando de uma só vida



in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"


25 de fev. de 2013

Pomo (de Mínima lírica) de Paulo Henriques Britto

Gürbüz Doğan Ekşioğlu 

Da vida só têm substância 
a casca e o caroço. 
No meio só tem amido, 
embromações do carbono. 
Porém todo o gosto reside 
nessa carne intermediária, 
sem valor alimentício, 
sem realidade, sem nada. 

É nela que os dentes encontram 
o que os mantém afiados; 
com ela é que a língua elabora 
a doce palavra.


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...