7 de abr. de 2013

Todas as direções de Livia Garcia Roza


Estendo a palavra em todas as direções, 
na tentativa de alcançá-lo, 
amor.

Pequena elegia de setembro de Eugénio de Andrade


Burne-Jones 

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

5 de abr. de 2013

Saber de cor o silêncio de Orides Fontela

Rian Fontenele 

Saber de cor o silêncio
diamante e/ou espelho
o silêncio além 
do branco.

Saber seu peso
seu signo
- habitar sua estrela
impiedosa.

Saber seu centro: vazio
esplendor além
da vida
e vida além
da memória.

Saber de cor o silêncio

- e profaná-lo, dissolvê-lo
em palavras.



4 de abr. de 2013

PSIU, CALOPSITA! de Marisa Queiroz









Psiu, cala!
Canta só
Só amor, tá?
Psiu! cala
Só gema
Sem pena, tá?
Topete em riste
Sorriste?
Psit, cala!
Bicos, beijos
segredos
Psit, calei, tá?
Asas, vôos
Cala, psit!
Cangote 
Cócegas
Segredos...
Calemos, psit...!
Calopsita!

3 de abr. de 2013

A harmonia secreta da desarmonia

escultura : Manizales, Caldas, Colombia
"A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio." 

fonte: A paixão segundo G.H.

2 de abr. de 2013

Carícia do vento de Livia Garcia Roza



Uma palavra bonita: carícia. 
Duas palavras bonitas: 
carícia do vento.

Uma mulher que lê de Italo Calvino

IVAN KRAMSKOY
“... há uma mulher que lê. Todos os dias antes de começar a trabalhar, fico algum tempo olhando-a pela luneta. Nesse ar leve e transparente, eu julgo colher em sua figura imóvel os sinais desse movimento invisível que é a leitura, o correr do olhar e da respiração e, mais ainda, o percurso das palavras através de sua pessoa, o fluxo e as interrupções, os impulsos, as hesitações, as pausas, a atenção que se concentra ou se dispersa, os retrocessos, essa trajetória que parece uniforme, mas que é mutante e acidentada.”

1 de abr. de 2013

Amigo de Alexandre O’Neill

Mal nos conhecemos 
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo, 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, 
Um coração pronto a pulsar 
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí, 
Escrupulosos detritos?) 
«Amigo» é o contrário de inimigo! 
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado, 
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim, 
Um espaço útil, um tempo fértil, 
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

 in No Reino da Dinamarca

30 de mar. de 2013

Janela de Livia Garcia Roza



Escrevo para criar uma janela para o mundo. Interior.

O pó dourado de tudo o que se concebe de Maria Gabriela Llansol



Se eu tivesse uma única expressão, com sentido perfeito, para dizer a H., dir-lhe-ia: traz-me apenas o pó dourado de tudo o que se concebe; e se eu tivesse apenas uma outra, sem precedentes, para dizer a A., dir-lhe-ia: a sensualidade a que aspiramos tem a sua parte de contemplação e de repouso; e se eu estivesse face ao homem, terceiro e último elo, e o mais forte, dir-lhe-ia: a sensibilidade não se pensa, embora faça parte do pensamento.
Fonte: Dossier dactiloscrito nº 8, p. 812, 1988?.

29 de mar. de 2013

Primeira Infância de Adélia Prado

                                                                                                       João Vaz
Era rosa, era malva, era leite,
as amigas de minha mãe vaticinando:
vai ser muito feliz, vai ser muito famosa
Eram rendas, pano branco, estrela dalva,
benza-te a cruz, no ouvido, na testa.
Sobre tua boca e teus olhos
o nome da trindade te proteja. 
Em ponto de marca no vestidinho: navios.
Todos à vela. A viagem que eu faria
em roda de mim.

fonte: Poesia Reunida. Siciliano, 1991.

28 de mar. de 2013

Sempre que se começa a ter amor a alguém de Guimarães Rosa



Sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando, mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.
In: Grande sertão: veredas. Nova Fronteira, 2001. p. 155.

27 de mar. de 2013

Cavalos de Camila Senna



Meu Cavalo ainda é branco...
Minha rua ainda é a ladrilhar...
Os meus sonhos, ainda de menina, 
que cresceu sorrindo pra vida...

26 de mar. de 2013

Que maravilha das maravilhas! de Monteiro Lobato


Paulo Borges

- Que maravilha das maravilhas! exclamou Narizinho, de olhos arregalados, sentindo uma tontura tão forte que teve de sentar-se para não cair. Era um vestido que não lembrava nenhum outro desses que aparecem nos
figurinos. Feito de seda? Qual seda nada! Feito de côr - e côr do mar! Em vez de enfeites conhecidos - rendas, entremeios, fitas, bordados, plissés ou vidrilhos era enfeitado com peixinhos do mar. Não de alguns peixinhos só, mas de todos os peixinhos (...) E esses peixinhos-jóias não estavam pregados no tecido, como os enfeites e aplicações que se usam na terra. Estavam vivinhos, nadando na côr do mar como se nadassem n’agua. De modo que o vestido variava sempre, e variava tão lindo, lindo, lindo, que a tontura da menina apertou e ela pôs-se a chorar.
-É a vertigem da beleza! exclamou dona Aranha sorridente, dando-lhe a cheirar um vidrinho de éter.
(...)
O mais lindo era que o vestido não parava um só instante. Não parava de faiscar e brilhar, e piscar e furtar-côr, porque os peixinhos não paravam de nadar nele, descrevendo as mais caprichosas curvas por entre as algas boiantes. As algas ondeavam as suas cabeleiras verdes e os peixinhos brincavam de rodear os fios ondulantes sem nunca toca-los nem com a pontinha do rabo. De modo que tudo aquilo virava e mexia e subia e descia e corria e fugia e nadava e boiava e pulava e dançava que não tinha fim.
LOBATO, J.B.M. Reinações de Narizinho.

25 de mar. de 2013

Guardar de Antonio Cicero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. 
Em cofre não se guarda coisa alguma. 
Em cofre perde-se a coisa à vista. 

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por 

admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. 


Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por 
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, 
isto é, estar por ela ou ser por ela. 


Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro 
Do que um pássaro sem voos. 

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, 

por isso se declara e declama um poema: 
Para guardá-lo: 
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: 
Guarde o que quer que guarda um poema: 
Por isso o lance do poema: 
Por guardar-se o que se quer guardar.

In: Os cem melhores poemas brasileiros do século. Editora Objetiva

24 de mar. de 2013

Desenraizados de Cesare Pavese

Van Gogh 

Chega de mar. Já vimos mar que chegue.
Ao entardecer, quando deslavada a água se estende
e esfuma no nada, o meu amigo olha-a fixamente
e eu fixo o meu amigo e nenhum de nós fala.
Chegada a noite, acabamos por nos fechar nos fundos duma taberna,
perdidos no meio do fumo, e bebemos. O meu amigo tem sonhos
(o bramir do mar torna os sonhos um tanto monótonos)
em que a água é apenas o espelho, entre uma ilha e outra,
que reflecte colinas salpicadas de flores selvagens e cascatas.
Quando bebe, dá-lhe para isso. De olhos postos no copo,
vê-se a erguer colinas verdejantes sobre a planura do mar.
As colinas, a mim agradam-me; e deixo-o falar do mar
porque a água é tão clara que se vêem mesmo as pedras do fundo.

Eu, o que vejo é só colinas, e enchem-me o céu e a terra
com as linhas nítidas dos seus perfis, distantes ou próximas.
Mas as minhas são agrestes, estriadas de vinhedos
que crescem penosamente num solo calcinado. O meu amigo aceita-as
e quer vesti-las de flores e frutos selvagens
para nelas descobrir, entre risos, raparigas mais nuas que os frutos.
Não é preciso: aos meus sonhos mais agrestes não falta um sorriso.
Se amanhã, cedinho, nos metermos ao caminho,
poderemos encontrar nessas colinas, no meio das vinhas,
uma rapariga de pele morena, tisnada pelo sol,
e, talvez, metendo conversa, comer-lhe algumas uvas.


trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997

23 de mar. de 2013

Fundo de livro de Maria Gabriela LLansol

UPage

Eu sei que, pouco a pouco,
passaremos a viver noutro fundo de livro e de linguagem.
E teremos, então, uma inquietação mais simples.

fonte: Um Beijo Dado Mais Tarde

22 de mar. de 2013

Névoa de Fernando Pessoa


Amanda RaeK
Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas 

como verdadeiramente são — como são para os outros.

Sinto isto.

1915? Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 27.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...