Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
18 de abr. de 2013
RECEITA DE CASA de RUBEM BRAGA
foto: Casa de Rubem Braga
Assim vos direi que a primeira coisa a respeito de uma casa é que ela deve ter um porão, um bom porão com entrada pela frente e saída pelos fundos. Esse porão deve ser habitável porém inabitado; e ter alguns quartos sem iluminação alguma, onde se devem amontoar móveis antigos, quebrados, objetos desprezados e baús esquecidos. Deve ser o cemitério das coisas. Ali, sob os pés da família, como se fosse no subconsciente dos vivos, jazerão os leques, as cadeiras, as fantasias do carnaval do ano de 1920, as gravatas manchadas, os sapatos que outrora andaram em caminhos longe.
Quando acaso descerem ao porão, as crianças hão de ficar um pouco intrigadas; e como crianças são animais levianos, é preciso que se intriguem um pouco, tenham uma certa perspectiva histórica, meditem que, por mais incrível e extraordinário que pareça, as pessoas grandes também já foram crianças, a sua avó já foi a bailes, e outras coisas instrutivas que são um pouco tristes mas hão de restaurar, a seus olhos, a dignidade corrompida das pessoas adultas.
Convém que as crianças sintam um certo medo do porão; e embora pensem que é medo do escuro, ou de aranhas caranguejeiras, será o grande medo do Tempo, esse bicho que tudo come, esse monstro que irá tragando em suas fauces negras os sapatos da criança, sua roupinha, sua atiradeira, seu canivete, as bolas de vidro, e afinal a própria criança.
O único perigo é que o porão faça da criança, no futuro, um romancista introvertido, o que se pode evitar desmoralizando periodicamente o porão com uma limpeza parcial para nele armazenar gêneros ou utensílios ou mais facilmente tijolos, por exemplo; ou percorrendo-o com uma lanterna elétrica bem possante que transformará hienas em ratos e cadafalsos em guarda-louças.
Ao construir o porão, deve o arquiteto obter um certo grau de umidade, mas providenciar para que a porta de uma das entradas seja bem fácil de arrombar, porque um porão não tem a menor utilidade se não supomos que dentro dele possa estar escondido um ladrão assassino, ou um cachorro raivoso, ou ainda anarquistas búlgaros de passagem por esta cidade.
Um porão supõe um alçapão aberto na sala de jantar. Sobre a tampa desse alçapão deve estar um móvel pesado, que fique exposto ao sol ao menos duas horas por dia, de tal modo que à noite estale com tanto gosto que do quarto das crianças dê a impressão exata de que o alçapão está sendo aberto, ou o terrível meliante já este já no interior da casa.
Não preciso fazer referência à varanda, nem ao carramanchão, nem à horta e jardim; mas se não houver ao menos um cajueiro, como poderá a família viver com decência? Que fará a família no verão, e que hão de fazer os sanhaços, e as crianças que matam os sanhaços, e as mulheres de casa que precisam ralhar com as crianças devido às nódoas de caju na roupa? Imaginem um menino de nove anos que não tem uma só mancha de caju em sua camisinha branca. Que honras poderá esperar essa criança na vida, se a inicia assim sem a menor dignidade?
Mas voltemos à casa. Ela deve ter janela para vários lados e se o arquiteto não providenciar para que na rua defronte passem bois para o matadouro municipal ele é um perfeito fracasso. E o piso deve ser de tábuas largas, jamais enceradas, de maneira que lavar a casa seja uma das alegrias domésticas. Depois de lavado o assoalho, são abertas as portas e janelas, para secar. E quando a madeira ainda estiver um pouco úmida, nas tardes de verão, ali se devem deitar as crianças, pois eis que isso é doce.
O que é essencial em uma casa - e entretanto quantos arquitetos modernos negligenciam isso, influenciados por idéias exóticas! - é a sala de visitas. Seu lugar natural é ao lado da sala de jantar Ela deve ter móveis incômodos e bem envernizados, e deve permanecer rigorosamente fechada através das semanas e dos meses. Naturalmente se abre para receber visitas, mas as visitas dessa categoria devem ser Rigorosamente selecionadas em conselho de família.
As crianças jamais devem entrar nessa sala, a não ser quando chamadas expressamente para cumprimentar as visitas. Depois de apertar a mão da visita, e de ouvir uma pequena referência ao fato de que estão crescidas (pois em uma família honrada as crianças estão sempre muito crescidas), devem esperar ainda cerca de dois minutos até que a visita lhes dirija uma pilhéria em forma de pergunta; por exemplo: se é verdade que já tem namorada. Devem então sorrir com condescendência (podem utilizar um pequeno ar entre a modéstia e o desprezo) e se retirar da sala.
Não desejo me alongar, mas não posso deixar de corrigir uma omissão grave.
Trata-se de uma gravura, devidamente emoldurada, com o retrato do Marechal Floriano Peixoto. Essa gravura deve estar no porão, não pregada na parede, mas em todo caso visível mediante a lanterna elétrica, em cima de um guarda-comida empoeirado, apoiada à parede. Pois é bem inseguro o destino de uma família que não tem no porão, empoeirado, mas vigilante, um retrato do Marechal de Ferro, impertérrito, frio, a manter na treva e no caos, entre baratas, ratos e aranhas, a dura ordem republicana.
In: Casa dos Braga. Record, 1997.
17 de abr. de 2013
Alma ausente de Federico Garcia Lorca
nem cavalos nem formigas do teu lar.
Não te conhece a tarde ou o menino,
porque tu estás morto para sempre.
Não te conhece a pedra no seu dorso,
nem o negro cetim onde te perdes.
Não te conhece o teu recordar mudo
porque tu estás morto para sempre.
O outono virá com os seus búzios,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quererá fitar teus olhos
porque tu estás morto para sempre.
Porque tu estás morto para sempre,
como todos os mortos que há na Terra,
como todos os mortos que se esquecem
num monturo de cães que se apagaram.
Ninguém que te conheça. Não. Mas eu te canto.
Eu canto para já teu perfil e tua graça.
A madurez insigne do teu conhecimento.
Tua apetência de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve tua valente alegria.
Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
Eu canto sua elegância com palavras que gemem
e recordo uma brisa triste pelas oliveiras.
PRANTO POR IGNACIO SANCHÉZ MEJÍAS
(tradução de Vasco Graça Moura, em “Garcia Lorca: o Romanceiro e o Pranto”, Lisboa, Quetzal, 1998)
No te conoce el toro ni la higuera,
ni caballos ni hormigas de tu casa.
No te conoce el niño ni la tarde
porque te has muerto para siempre.
No te conoce el lomo de la piedra,
ni el raso negro donde te destrozas.
No te conoce tu recuerdo mudo
porque te has muerto para siempre.
El otoño vendrá con caracolas,
uva de niebla y monjes agrupados,
pero nadie querrá mirar tus ojos
porque te has muerto para siempre.
Porque te has muerto para siempre,
como todos los muertos de la Tierra,
como todos los muertos que se olvidan
en un montón de perros apagados.
No te conoce nadie. No. Pero yo te canto.
Yo canto para luego tu perfil y tu gracia.
La madurez insigne de tu conocimiento.
Tu apetencia de muerte y el gusto de tu boca.
La tristeza que tuvo tu valiente alegría.
Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,
un andaluz tan claro, tan rico de aventura.
Yo canto su elegancia con palabras que gimen
y recuerdo una brisa triste por los olivos.
16 de abr. de 2013
Ana Cristina César (1952- 1983)
I
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
II
Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma vida branca
e limpa à minha espera
15 de abr. de 2013
O mundo que gostaria de morar de Clarice Lispector
Ann Gorbett
"Em uma outra vida que tive, aos 15 anos, entrei numa livraria, que me pareceu o mundo que gostaria de morar. De repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! Só depois vim a saber que a autora era considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield."
13 de abr. de 2013
A surpreendente aventura - Simone de Beauvoir
foto de Cartier-Bresson, 1946
Abro as cortinas do meu quarto, deito-me num divã, tudo em volta deixa de existir, ignoro-me a mim mesma: existe somente a página preta e branca que meus olhos percorrem. E eis que me ocorre a surpreendente aventura relatada por alguns sábios taoístas: abandonando em seu leito uma carcaça inerte, eles levantavam voo; durante séculos viajavam de cume em cume, através da terra inteira e até o céu. Quando reecontravam seu corpo, este não envelhecera. Assim vago eu, imóvel, sob outros céus em épocas passadas, e é possível que transcorram séculos antes que me reencontre, a duas ou três horas de distância, neste lugar do qual não saí. Nenhuma experiência é comparável a esta. (…) Somente a leitura, com uma economia extraordinária de meios – apenas um volume em minha mão -, cria relações novas e duráveis entre mim e as coisas.
Fonte: Balanço Final. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990 [1972]. pp. 153-154.
12 de abr. de 2013
Não, não é cansaço... por Fernando Pessoa -Álvaro de Campos
Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...
Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)
Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...
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Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...
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