5 de jan. de 2014

Idos Sidos :: Darcy Ribeiro (1922-1997)


Que é que fiz, não fiz, de mim?
Que é que fiz na vida, da vida?
Quem sou eu? Esse eu que me sou.
Minhas mãos me pendem soltas.
Inúteis para fazimentos.
Só servem para escrever, acarinhar.
Não sei dançar, nunca soube.
Olho, idiota, o céu estrelado.
Não conheço estrela nenhuma.
As árvores, tantíssimas, que vi,
Recordo inumeráveis, enormíssimas,
Não sei quem são.
Diante das flores me extasio.
Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.
A música clássica me atordoa, cansa.
Quem sou eu, septuagenário,
Que esgoto meu tempo de me ser aqui?
Insciente, perplexo, inexplicado.
Só cheio de saudades de mim.
De tantos eus que fui. Sidos. Idos.
Somos descartáveis, sei, mas dói.


3 de jan. de 2014

Depois de muita e boa chuva de Adélia Prado

Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato! Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco, que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde? Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA! Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiúra das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos, lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados, lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não, quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom do choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.

2 de jan. de 2014

Carece de aprender de Guimarães Rosa

“Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o bêco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível? Lengalenga. Fomos, fomos. (…) O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” 
In: Grande Sertão: Veredas, páginas 280 e 290)

O pão de Rui Costa


Há pessoas que amam
Com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
E quando as perdemos estão sempre
Ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
A lua encontra o pão caiado que comemos
Enquanto o riso das promessas destila
Na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
E pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
Que não precisa de voar.

a nuvem prateada das pessoas graves. quasi, 2005

1 de jan. de 2014

Um lugar, quero um lugar! de Mahmoud Darwich


«Um lugar, quero um lugar! Quero um lugar para voltar a mim mesmo, para colocar o meu papel sobre uma madeira mais dura, para escrever uma carta maior, para pregar na parede um quadro, para arrumar os meus fatos. Para te dar o meu endereço, para fazer crescer a menta, para esperar a chuva. Quem não tem um lugar também não tem estações. Poderás tu transmitir-me o cheiro do nosso Outono nas tuas cartas? Leva-me para aí, se é que ainda há um lugar para mim na miragem estagnada. Leva-me para o eflúvios de cheiros que respiro nos écrans, no papel, ao telefone... »

Trecho de "Les deux moitiés de l’orange", carta escrita durante o exílio em Paris a Samih al-Kassem, seu amigo residindo na Palestina.

31 de dez. de 2013

Cantiga de embalar :: Rainer Maria Rilke


                                                  Matizes - Namoro 
Gostava de cantar a alguém uma cantiga de embalar,
sentar-me a seu lado, e ficar sossegado.
Gostava de embalar-te murmurando uma canção,
estar contigo na orla do sono.
Ser a única pessoa acordada em casa
a saber que a noite está fria.
Gostava de ouvir cá dentro e lá fora,
ouvir-te, ouvir o mundo e os bosques.
Os relógios tocam a rebate,
e podes ver o tempo até ao fim escoar-se.
Ao fundo da rua um estranho passa
e incomoda o cão de um vizinho.
Por trás, o silêncio. Pousei os meus olhos
em ti como numa mão aberta,
e eles prendem-te ao de leve e deixam-te ir,
quando algo se move no escuro

         

30 de dez. de 2013

REFLEXIVO. :: Affonso Romano de Sant'Anna



 Remedios Varo, 1958

O que não escrevi, calou-me. 
O que não fiz, partiu-me. 
O que não senti, doeu-se. 
O que não vivi, morreu-se. 
O que adiei, adeus-se.

O lado esquerdo do meu peito: livro de aprendizagens. Rocco, 1992. p. 212

29 de dez. de 2013

Aquários pequenos de Valter Hugo Mãe

 William Stephen Coleman 

"aqueles peixes bonitos que vês dentro dos aquários pequenos, sabes que têm uma memória de uns segundos, três segundos, assim, é por isso que não ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo. compreendes. a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação. o américo respondeu-me, seria uma pena que não voltasse a lembrar de mim, senhor silva, não gosto dessa teoria dos peixes, porque assim não se lembraria de mim."


in : A máquina de fazer espanhóis. p. 240

28 de dez. de 2013

Mary Emma Hawthorne




















A vida oblíqua? :: Clarice Lispector


A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo.
In: Água viva. Editora Ática, 1984. p. 71.

Ideal dos amorosos


Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existe. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.
Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa'

27 de dez. de 2013

Reflexivo :: Affonso Romano de Sant'Anna

O que não escrevi, calou-me
O que não fiz, partiu-me
O que não senti, doeu-se
O que não vivi, morreu-se
O que adiei, adeus-se

In: O lado esquerdo do meu peito.  Rocco, 1992

Caixa de fósforos de Laura Esquivel



“A minha avó tinha uma teoria muito interessante, dizia que embora todos nasçamos com uma caixa de fósforos no nosso interior, não os podemos acender sozinhos, precisamos, como na experiência, de oxigénio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigénio tem de vir, por exemplo, do hálito da pessoa amada; a vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos.”

In: Como Água Para Chocolate, Biblioteca Sábado

25 de dez. de 2013

Cartão de Natal :: João Cabral de Melo Neto


Sophie Anderson - Awake

Pois que reinaugurando essa criança

pensam os homens 

reinaugurar a sua vida

e começar novo caderno, 

fresco como o pão do dia;

pois que nestes dias a aventura

parece em ponto de vôo, e parece

que vão enfim poder

explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno

sua atração núbil para o dente;

que o entusiasmo conserve vivas 

suas molas, 

e possa enfim o ferro

comer a ferrugem 

o sim comer o não.

João Cabral de Melo Neto

24 de dez. de 2013

Poema de Natal :: Vinícius de Moraes

91
Childe Hassam
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


O gato e o pássaro :: Jacques Prévert

O gato e o pássaro Uma cidade escuta desolada O canto de um pássaro ferido É o único pássaro da cidade E foi o único gato da cidade Que o de...