Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
14 de mar. de 2014
13 de mar. de 2014
Voando com o pássaro :: Ana Cristina Cesar (1952-1983)
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.
12 de mar. de 2014
Coqueiro de Itapoã de Dorival Caymmi
Coqueiro de Itapoã, coqueiro
Areia de Itapoã, areia
Morena de Itapoã, morena
Saudade de Itapoã me deixa
Oh vento que faz cantiga nas folhas
No alto dos coqueirais
Oh vento que ondula as águas
Eu nunca tive saudade igual
Me traga boas notícias daquela terra toda manhã
E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã
Coqueiro de Itapoã, coqueiro
Areia de Itapoã, areia
Morena de Itapoã, morena
Saudade de Itapoã me deixa
Areia de Itapoã, areia
Morena de Itapoã, morena
Saudade de Itapoã me deixa
Oh vento que faz cantiga nas folhas
No alto dos coqueirais
Oh vento que ondula as águas
Eu nunca tive saudade igual
Me traga boas notícias daquela terra toda manhã
E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã
Coqueiro de Itapoã, coqueiro
Areia de Itapoã, areia
Morena de Itapoã, morena
Saudade de Itapoã me deixa
11 de mar. de 2014
A Linha e o Linho :: Gilberto Gil
Matizes
É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto nosso dia-a-dia
E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O zig-zag do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa, da paixão
A sua vida o meu caminho, nosso amor
Você a linha e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado
A casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza
Saudade (Trachelium caruleum,Traquélio, Throatwort)
Nome comum: Traquélio / Throatwort
Origem: Mediterrâneo
Esta espécie mediterrânica cresce espontaneamente nas zonas costeiras. Nasce nas rochas e pode crescer até cerca de 90 cm de altura. Nos meses de Verão, as suas flores azuis ou roxas dão um colorido lindíssimo aos miradouros e bermas de estradas dos Açores. Actualmente, está a ser cultivada e é muito procurada por floristas como flor de corte
10 de mar. de 2014
UM CARRO, CASADO de Fabrício Carpinejar
Quando baldeava a pé pelo bairro, espichava o rabo do olho para as garagens dos vizinhos. Ouvia o sibilar da porta se levantando e já procurava confirmar se encontraria dois ou três veículos estacionados. Quase contava com os dedos, escandaloso com a curiosidade.
Sentava no ar ao me imaginar com dois carros, um todo meu e outro para minha mulher. Seria a glória cada um ter sua própria condução para ir ao trabalho e fazer seus roteiros. Sem aquela explicação de onde vou e quando volto. Sem os horários estreitos e o medo de não chegar a tempo.
Os dois não brigariam para escolher o modelo, definiriam a fábrica de sua preferência sem longas e aterrorizantes conversas entre vendedores. A cor da lataria não passaria pela aprovação do condomínio familiar (talvez por isso tenha tantos carros brancos). Nenhum lançaria um olhar suplicante de madrugada para arrebatar uma carona, nem mendigariam ao telefone com o propósito de regressar cedo de um compromisso. Não haveria cobrança e retribuição de favor. Metade das discussões estaria abolida.
Ao atingir o conforto e a independência, amarguei uma brutal solidão. Solidão de açude.
A música não preenchia o banco do lado. Os caminhos foram se tornando mais longos, os engarrafamentos mais demorados, as sinaleiras mais indolentes. Abandonei o pisca-alerta da respiração. Não estacionava em local proibido. Não chovia faróis nas paredes. As desculpas sumiram para as pequenas transgressões no trânsito.
Não achava graça em não ser esperado, eu me desimportei em dirigir. Entendi que não sou motorista para me satisfazer, minha habilitação é sair de mim. Quem ama torna-se chofer, taxista, empregado de van. Atravessa o cansaço pela recompensa da cabeça dela deitada em seu ombro.
Como era gostoso apressar a casa no automóvel, ela estaria comigo durante o caminho brincando, descrevendo seu serviço, mostrando um cd novo.
Na verdade, levava minha residência comigo.
As decisões surgiam em conjunto, inesperadas. Tomávamos um café no posto, lembrávamos da necessidade do mercado, alterávamos a rota por um cinema.
Os casais se conhecem enormemente com um único carro. Preocupam-se com gentilezas, retribuem acenos, além de alternar a marcha com a maciez da mão de sua companhia.
A falta de recursos é uma intimidade luxuosa. Um carro apenas, que seja velho, com as janelas trincadas, os brancos emperrados, carecendo de espaço para mortos no bagageiro. Existirá um esforço maior para ser atento e misturar os trajetos.
Aposto que a vida será apertada, mas nunca os dois vão deixar de se procurar.
Sentava no ar ao me imaginar com dois carros, um todo meu e outro para minha mulher. Seria a glória cada um ter sua própria condução para ir ao trabalho e fazer seus roteiros. Sem aquela explicação de onde vou e quando volto. Sem os horários estreitos e o medo de não chegar a tempo.
Os dois não brigariam para escolher o modelo, definiriam a fábrica de sua preferência sem longas e aterrorizantes conversas entre vendedores. A cor da lataria não passaria pela aprovação do condomínio familiar (talvez por isso tenha tantos carros brancos). Nenhum lançaria um olhar suplicante de madrugada para arrebatar uma carona, nem mendigariam ao telefone com o propósito de regressar cedo de um compromisso. Não haveria cobrança e retribuição de favor. Metade das discussões estaria abolida.
Ao atingir o conforto e a independência, amarguei uma brutal solidão. Solidão de açude.
A música não preenchia o banco do lado. Os caminhos foram se tornando mais longos, os engarrafamentos mais demorados, as sinaleiras mais indolentes. Abandonei o pisca-alerta da respiração. Não estacionava em local proibido. Não chovia faróis nas paredes. As desculpas sumiram para as pequenas transgressões no trânsito.
Não achava graça em não ser esperado, eu me desimportei em dirigir. Entendi que não sou motorista para me satisfazer, minha habilitação é sair de mim. Quem ama torna-se chofer, taxista, empregado de van. Atravessa o cansaço pela recompensa da cabeça dela deitada em seu ombro.
Como era gostoso apressar a casa no automóvel, ela estaria comigo durante o caminho brincando, descrevendo seu serviço, mostrando um cd novo.
Na verdade, levava minha residência comigo.
As decisões surgiam em conjunto, inesperadas. Tomávamos um café no posto, lembrávamos da necessidade do mercado, alterávamos a rota por um cinema.
Os casais se conhecem enormemente com um único carro. Preocupam-se com gentilezas, retribuem acenos, além de alternar a marcha com a maciez da mão de sua companhia.
A falta de recursos é uma intimidade luxuosa. Um carro apenas, que seja velho, com as janelas trincadas, os brancos emperrados, carecendo de espaço para mortos no bagageiro. Existirá um esforço maior para ser atento e misturar os trajetos.
Aposto que a vida será apertada, mas nunca os dois vão deixar de se procurar.
9 de mar. de 2014
À VIDA de MARINA TSVIETÁIEVA
A cor, violenta correnteza.
És caçadora — eu não sou presa.
És a perseguição — eu sou a fuga.
Não colherás viva minha alma!
Acossado, em pleno tropel,
Arqueia o pescoço e rasga
A veia com os dentes — o corcel.
Árabe.
Tradução de Augusto de Campos
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