Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
4 de abr. de 2014
Escutai de MAIAKÓVSKI
Escutai! Se as estrelas se acendem
será por que alguém precisa delas?
Por que alguém as quer lá em cima?
Será que alguém por elas clama,
por essas cuspidelas de pérolas?
Ei-lo aqui, pois, sufocado, ao meio-dia,
no coração dos turbilhões de poeira;
ei-lo, pois, que corre para o bom Deus,
temendo chegar atrasado,
e que lhe beija chorando
a mão fibrosa.
Implora! Precisa absolutamente
duma estrela lá no alto!
Jura! Que não poderia mais suportar
essa tortura de um céu sem estrelas!
Depois vai-se embora,
atormentado, mas bancando o gaiato
e diz a alguém que passa:
“Muito bem! Assim está melhor agora, não é?
Não tens mais medo, hein?
“Escutai, pois! Se as estrelas se acendem
é porque alguém precisa delas.
É porque, em verdade, é indispensável
que sobre todos os tetos, cada noite,
uma única estrela, pelo menos, se alumie.
tradução de E. Carrera Guerra
3 de abr. de 2014
Caminhante de Antonio Machado
Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.
.......................
Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.
2 de abr. de 2014
Liberdade
Algarve - Praia de Amado
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
1 de abr. de 2014
Conta a teu filho :: Renata Pallottini
Conta a teu filho, meu filho
Daquilo que nós passamos
Que havia fitas gravadas
Retratos de corpo inteiro
Conta que nos encolhemos
Como animais espancados
Que ninguém teve coragem
Que respirávamos baixo
Olhos fugindo dos olhos
As mãos frias e suadas
E conta que faz dez anos
Que temos pouca esperança
Que pedimos testemunho
E não agüentamos mais
Talvez teu filho, meu filho
Viva em mundo mais aberto
Mas é grave que lhe contes calmamente
E nos mínimos detalhes
A história desses punhais
Cravados em nossas tardes
Porém, se por tudo isso
Renuncias a ter filhos
Como (alguns) renunciamos
Deixa inscritos, como eu deixo
Sinais em troncos de árvores
Letras em papéis esquivos
Pra que não escureça
Essa lâmpada mesquinha
Relâmpago, fogo fátuo
Pura lembrança dos dias
Em que livres,
Fomos filhos de pais muito mais felizes
Conta a quem possas, meu filho
O que em ti forem palavras
Nos outros serão raízes”.
Renata Pallottini. Coração americano. Feira de Poesia, 1979
Daquilo que nós passamos
Que havia fitas gravadas
Retratos de corpo inteiro
Conta que nos encolhemos
Como animais espancados
Que ninguém teve coragem
Que respirávamos baixo
Olhos fugindo dos olhos
As mãos frias e suadas
E conta que faz dez anos
Que temos pouca esperança
Que pedimos testemunho
E não agüentamos mais
Talvez teu filho, meu filho
Viva em mundo mais aberto
Mas é grave que lhe contes calmamente
E nos mínimos detalhes
A história desses punhais
Cravados em nossas tardes
Porém, se por tudo isso
Renuncias a ter filhos
Como (alguns) renunciamos
Deixa inscritos, como eu deixo
Sinais em troncos de árvores
Letras em papéis esquivos
Pra que não escureça
Essa lâmpada mesquinha
Relâmpago, fogo fátuo
Pura lembrança dos dias
Em que livres,
Fomos filhos de pais muito mais felizes
Conta a quem possas, meu filho
O que em ti forem palavras
Nos outros serão raízes”.
Renata Pallottini. Coração americano. Feira de Poesia, 1979
Se mentir todo dia :: Carlos Drummond de Andrade
Se mentir todo dia,
erguerei um castelo
em alta serrania
contra toda escalada,
e mais ninguém no mundo
me atira seta ervada?
Livre estarei, e dentro
de mim outra verdade
rebrilhará no centro?
Ou mentirei apenas
no varejo da vida,
sem alívio de penas,
sem suporte e armadura
ante o império dos grandes,
frágil, frágil criatura?
Pensarei ainda nisto.
Por enquanto não sei
se me exponho ou resisto,
se componho um casulo
e nele me agasalho,
tornando o resto nulo,
ou adiro à suposta
verdade contingente
que, de verdade, mente.
in Boitempo
31 de mar. de 2014
A cotidianidade dá uma ilusão de perenidade :: Julián Marías,
Klimt
A imaginação nunca se detém no hoje; a projeção é inevitável; o homem projeta e projeta e projeta, indefinidamente, e vai traçando trajetórias. A cotidianidade em nenhum caso é indefinida: mudam as coisas que compõem a circunstância, passam as idades, produz-se o envelhecimento, ao final encontra-se a morte, própria e alheia. Ao despertar, sobretudo se se faz à felicidade, se imagina e projeta, mas se percebe que não é possível continuar indefinidamente. A cotidianidade, e isso é fundamental, finge uma ilusão de eternidade: se o homem faz todos os dias as mesmas coisas, tem a impressão de que o poderá fazer sempre; não é verdade, e o sabe, mas a cotidianidade dá uma ilusão de perenidade, sem a qual a vida seria angustiante.
Fonte: A Felicidade Humana. Duas Cidades, pg. 361)
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