Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
11 de abr. de 2014
O papel do coração de Fabrício Carpinejar
Narciso de Rogério Fernandes
O casamento deveria assinar a carteira. Não dispensaríamos quem amamos com facilidade. Não existiria separação pelo jogo de futebol com amigos ou por não descer o lixo ou por não lavar a louça ou pelas distrações involuntárias. Seríamos perdoados em nome de nossas virtudes, ainda que poucas, ainda que raras. No momento da briga, não pensaríamos no pior de nossa companhia, mas pescaríamos um motivo qualquer, um motivo remoto, para a insistência. Mesmo que o estômago seja obrigado a cumprir o papel do coração.
Casamento de carteira assinada de Fabrício Carpinejar
10 de abr. de 2014
Mapear : Livia Garcia Roza
Joan Miró
Mapear sentidos múltiplos
é uma operação poética
dos que ouvem
o silêncio do silabário da alma.
Eucalyptus rhodantha
Mar Alto de Helio Pellegrino
Arthur Hughes
Esta água é todas as águas,
sem porto, nome ou naufrágio.
Rendada de espuma ao vento,
sem dor nem contentamento.
Esta água — lugar nenhum —
é perdição sem loucura.
Nela se dissolvem mágoa,
memória, tempo, aventura.
Sem lei nem rei, sem fronteiras,
além de verbo e silêncio,
esta é a pátria procurada:
incêndio de tudo — nada.
9 de abr. de 2014
Eu nasci para estar calado de Mia Couto
Ferdinand Hodler
Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
fonte: JESUSALÉM (Caminho, 2009)
8 de abr. de 2014
Era um menino a sonhar de António Machado (1875-1939)
com um cavalo de cartão.
O menino abriu os olhos
e não viu o cavalinho.
Com um cavalinho branco
ele voltou a sonhar;
pelas crinas o prendia…
Assim não te escaparás!
Mal o conseguiu prender,
logo o menino acordou.
Tinha a sua mão fechada.
O cavalinho voou!
O menino ficou sério,
pensando não ser verdade
um cavalinho sonhado.
Já não voltou a sonhar.
E o menino se fez moço
e o moço teve um amor,
e dizia à sua amada:
Tu és de verdade ou não?
Quando o moço se fez velho
pensava: Tudo é sonhar,
o cavalinho sonhado
e o cavalo de verdade.
E quando chegou a morte,
o velho ao seu coração
perguntava: Tu és sonho?
Quem saberá se acordou!
............................
Era un niño que soñaba
un caballo de cartón.
Abrió los ojos el niño
y el caballito no vio.
Con un caballito blanco
el niño volvió a soñar;
y por la crin lo cogía…
¡Ahora no te escaparás!
Apenas lo hubo cogido,
el niño se despertó.
Tenía el puño cerrado.
¡El caballito voló!
Quedóse el niño muy serio
pensando que no es verdad
un caballito soñado.
Y ya no volvió a soñar.
Pero el niño se hizo mozo
y el mozo tuvo un amor,
y a su amada le decía:
¿Tú eres de verdad o no?
Cuando el mozo se hizo viejo
pensaba: Todo es soñar,
el caballito soñado
y el caballo de verdad.
Y cuando le vino la muerte,
el viejo a su corazón
preguntaba: ¿Tú eres sueño?
¡Quién sabe si despertó!
6 de abr. de 2014
Os Beijos de António José de Sousa Almada
Man Ray
Dos beijos que por aí vão
Perdidos,… que nem eu sei;
Nem sequer um beijo só
Dos que se perdem, achei!
E mais, não é por descuido,
Nem por faltar-me o desejo,
Que eu não sei dizer ainda
O gosto que tem um beijo.
Pedi-los… não querem dar-me,
Furtá-los… não sei a quem,
Por mais que busque e pergunte
Onde estão?… e quem os tem?!
Que sabem bem… desconfio!
Pois mo têm vindo contar:
Há beijo, que tira a cor,
Há beijo… que faz corar!
O beijo que tira a cor,
É beijo dado com medo;
Que sobressalta, e descora
A quem lhe guarda o segredo.
O beijo que faz corar,
É quase sempre o primeiro;
Murmúrio d’alma da virgem,
Que assoma aos lábios fagueiro.
Os beijos que são pedidos,
Pousa-os na face a vontade:
É o amor a dilatar-se
No perfume da amizade!
Mas os beijos que são dados
À vista de muita gente,
Desmerecem no apreço
E arrefecem de repente.
E dizem também que há beijos
Que dados mais de uma vez:
Entumecem nos sentidos
Torrentes de languidez.
Eu cá por mim, — nada sei,
Mas acho que estes são
Mistérios que não se explicam,
Segredos do coração!
Não sei: — nem mesmo se o beijo,
Revela às vezes, pousando,
Mística voz lá do céu
Que a boca não diz, falando!
E se inexacto julgarem
Os beijos que descrevi;
Mostrem-me as Damas o erro
Dando-me um beijo a mi!…
Que os beijos que por aí vão,
Perdidos,… que nem eu sei.
Nem sequer um beijo só
Dos que se perdem, achei.
Lisboa, 1848
O poema vem publicado no Tomo IV de Lísia Poética, colectânea de poesia romântica e ultra-romântica publicada no Rio de Janeiro em 1849 por José Ferreira Monteiro.
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