16 de abr. de 2014

Shozo Ozaki








































A Trégua de Mario Benedetti

Jean-Baptiste-Simeon Chardin, 1728 

O tempo passa. Às vezes penso que teria que andar de pressa, aproveitar o máximo possível estes anos que me restam. Hoje em dia, qualquer um pode me dizer, depois de escrutinar minhas rugas: “Ora, mas você ainda é um homem jovem”. Ainda. Quantos anos me restam desse “ainda”? Penso nisso e me aflijo, tenho a angustiante sensação de que a vida está me escapando, como se minhas veias tivessem se aberto e eu não pudesse estancar o sangue. Porque a vida é muitas coisas (trabalho, dinheiro, sorte, amizade, saúde, complicações), mas ninguém vai me negar que, quando pensamos nessa palavra Vida, quando dizemos, por exemplo, que “nos apegamos à vida”, estamos fazendo com que seja assimilada por outra palavra mais concreta, mais atraente, mais seguramente importante: estamos fazendo que seja assimilada pelo Prazer. Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e estou certo de que isso é a vida. Daí vem a aflição (…). Ainda me restam, assim espero, uns quantos anos de amizade, de saúde aceitável, de ocupações rotineiras, de expectativa diante da sorte, mas quantos me restam de prazer? (…) “Ainda” quer dizer: está no fim.

E este é o lado absurdo de nosso acordo: dissemos que levaríamos tudo com calma, que deixaríamos o tempo correr, que depois reveríamos a situação. Mas o tempo corre, deixemos ou não (…) A experiência é boa quando vem junto com o vigor; depois, quando o vigor se vai, resta apenas uma peça de museu, decorativa, cujo único valor reside em ser uma recordação daquilo que já se foi. A experiência e o vigor são simultâneos por muito pouco tempo. Estou agora nesse pouco tempo. Não se trata, porém, de uma sorte invejável.

fonte: A Trégua. L&PM.  p. 73-4

15 de abr. de 2014

Elena Katsyura (Chelyabinsk, Russia )











A Figueira de Eugénio de Andrade (1923-2005)

Deborah Humphries
Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidavam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde da Agosto
apenas me roçava, e partia.

14 de abr. de 2014

Flor de bananeira








Pensamentos sobre o tempo de Paul Fleming (1609-1640)

Vós viveis no tempo e o tempo não conheceis;

Do que sois e onde estais, vós, homens, não sabeis.

O que sabeis é só que num tempo nascestes

E que haveis de partir num tempo, tal viestes.

Mas o que foi o tempo que em si vos deu guarida?

E que será esse outro que de vós fará nada?

O tempo é tudo e nada, o homem a ele igual;

Mas sobre o tudo e o nada a duvida é geral.

O tempo morre em si, e de si renasceu.

Um vem de mim e de ti, outro és tu e sou eu.

O homem é no tempo, este nele também.

E no entanto o homem, quando ele fica, vai.

O tempo é o que vós sois, vós sois o que o tempo é,

Mas bem menos sois vós que aquilo que o tempo é.

Ah, viesse aquele tempo em que tempo não há,

P’ra nos levar do nosso para os tempos de lá

E a nós de nós mesmos, para podermos ser

Iguais àquele tempo que já deixou de ser!


Tradução de João Barrento

13 de abr. de 2014

IN VAIN THE AM’ROUS FLUTE :: Manuel de Freitas



Estas escadas tinham degraus
onde por acaso nos sentámos
à espera de não ver gaivotas,
com livros abertos
quando as mãos chegavam.

De novo e despercebida e só,
acendia-se para morrer na tarde
a inútil figuração do desejo.

E éramos outra vez nós
os seus irrepetíveis figurantes,
escondidos num poema
que o tempo pisou, deixa lá
- o recomeçado amor descendo.

12 de abr. de 2014

Do Monólogo de Molly Bloom de James Joyce

eu adoro as flores
gostava tanto de ter a casa toda a nadar em rosas
meu Deus do céu
não há nada no mundo como a natureza
as montanhas selvagens
e depois o mar as ondas em tropel
a beleza da planície com os campos de aveia e trigo
os animais pra cá e pra lá tão bonitos
só ia fazer bem à alma
ver os rios os lagos e as flores
e as cores a saltarem dos regatos
e formas de toda a espécie
de todos os feitios e cheiros
primaveras e violetas
é a natureza é o que é
quanto a esses que dizem que Deus não existe
não dou um tusto pela sua sabedoria
porque é que não vão e criam alguma coisa
já lhes perguntei muitas vezes
ateus ou sei lá bem como se chamam
que primeiro tratem de se lavar dos seus podres
depois mandam chamar o padre aos berros
quando estão a morrer
e por quê
por quê
porque têm pavor do inferno por causa da consciência pesada
ah sim
conheço-os muito bem a esses
quem foi a primeira pessoa do universo
antes que existisse qualquer outra
quem fez tudo isso
quem
ah isso não sabem eles
e nem eu sei
assim é
assim está
eles podiam proibir o sol de nascer amanhã de manhã
o sol brilha é por tua causa
foi o que ele me disse no dia em que nos deitamos sobre o rododendros
no promontório de Howth.
com o seu fato cinzento chapéu de palha
no dia em que o levei a falar de casamento
foi
antes passei-lhe com a boca um bolinho-de-cheiro
era um ano bissexto também
há 16 anos meu Deus
depois daquele beijo que nunca há-de acabar
e que quase me deixou sufocada
sim
ele disse-me que eu era uma flor da montanha
sim
é isso mesmo
somos completamente flores
o corpo todo da mulher
sim
essa foi uma verdade que ele disse na vida
hoje o sol brilha por tua causa
sim
foi por isso que eu gostei dele
porque vi que ele percebia
ou sentia o que é uma mulher
e eu sabia que podia fazer dele o que eu quisesse
e fui-lhe dando todo o prazer que podia
para o obrigar a pedir-me pra dizer sim
e eu não queria responder
e fiquei só a olhar, para o mar e para o céu
e a pensar em muitas coisas de que ele nada sabia
em Mulvey e Mr. Stanhope e Hester
e no meu pai
no velho Capitão Grovés
nos marinheiros que brincavam ao sai-coelho
como se dizia lá no cais
e no sentinela na frente da casa do governador
com aquela coisa em volta do capacete branco
pobre diabo meio assado
e as moças espanholas a rir nos seus xailes
e nos seus travessões grandes
e os pregões da manhã
os gregos os judeus os árabes
e o diabo sabe lá quem mais
de todos os cantos da Europa
e a Rua do Duque
e a feira de aves todas a cacarejar defronte a Larby Sharon
os burricos coitados a escorregarem cheios de sono
e os vagabundos a dormitarem nas suas mantas nos degraus
na sombra
e as rodas enormes dos carros-de-bois
e o castelo velho de milhares de anos
sim
e aqueles mouros lindos todos de branco e turbantes
como reis
pedindo-nos que nos sentássemos nas suas lojinhas pequeninas
e Ronda com as velhas janelas das pousadas
olhos a faiscar vislumbrados
escondidos para o amante beijar o ferro
e as tabernas meio abertas durante a noite
e as castanholas
e a noite em que perdemos o barco em Algeciras
o vigia que sereno fazia a ronda com a sua lanterna
e oh aquela tremenda corrente lá no fundo
oh
e o mar
o mar às vezes escarlate como fogo
e os poentes fabulosos
e as figueiras nos jardins da Alameda
sim
e todas aquelas ruazinhas estranhas
e as casas rosa e azuis e amarelas
e os jasmins e os gerânios e os cactos
e Gibraltar eu era rapariguinha
onde eu era uma Flor da montanha
sim
quando eu punha a rosa no meu cabelo
como via fazer as raparigas andaluzas
sim
vou usar um vestido vermelho
sim
como ele me beijou contra a muralha mourisca
e eu pensei tanto me faz ser ele como qualquer outro
e então pedi-lhe com os olhos pra me pedir outra vez
sim
e então ele perguntou-me se eu quereria
sim
dizer sim
minha flor da montanha
e primeiro eu passei os meus braços em torno dele
sim
e puxei-o para mim para que sentisse os meus seios só perfume
sim
e o coração dele batia loucamente
e sim
disse eu
sim eu quero
Sim


in Ulisses. Texto adaptado a partir da tradução de António Houaiss

Amor de sombras de ocasos e de ovelhas :: Hilda Hilst

Felix Vallotton, 1913
Amor de sombras de ocasos e de ovelhas.
Volto como quem soma a vida inteira
A todos os outonos. Volto novíssima, incoerente
Cógnita
Como quem vê e escuta o cerne da semente
E da altura de dentro já lhe sabe o nome.

E reverdeço
No rosa de umas tangerinas
E nos azuis de todos os começos.


 fonte: Amavisse, 1989

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...