18 de set. de 2014

Poemografias de Eduardo Kiesse




























fonte: http://fotomorfoses.blogspot.com.br/

Gosto de Ícaro :: Tjiske Jansen

Odilon Redon

Gosto de Ícaro que sabia que a cera se iria derreter e no entanto voou em direção ao sol.
Gosto daquela rapariga que reparou como era azul a barba do Barba Azul – era exatamente esse o motivo. Gosto da Bela Adormecida que afinal fazia de conta que dormia.

Gosto da Branca de Neve que achava os anões um bando de neuróticos.
‘Quem é que se sentou na minha cadeira? Quem é que comeu do meu prato?’
E do anão, que não simpatizava lá muito com a Branca de Neve:

‘Quando ela não morava aqui, éramos só sete. E agora? É ver-nos.’
Do gigante que estava arreliado porque toda a gente chamava botas aos seus sapatos.
Não gosto de quem se acomoda no conto. Mas sobretudo

Gosto de Ícaro que sabia que a cera se iria derreter e no entanto voou em direção ao sol.

17 de set. de 2014

Doída alegria - Ferreira Gullar

Aldemir Martins
Durante anos
foi a minha constante companhia
aonde eu estava
ele vinha
e ronronando
em meu colo se acolhia

Até que um dia...

Faz anos já que a casa está vazia

Mas eis que
inesperado
ele de novo chega
e se deita a meu lado

Não me atrevo
a olhá-lo
pois é melhor não vê-lo
que não vê-lo

Nada pergunto
apenas vivo
a doída ilusão
de tê-lo junto

16 de set. de 2014

Cirandeiras - Bordando Histórias











Flores para atrair beija flores


Trepadeira Sapatinho de judia



Hibisco rosa sinensis



Lantana


Grevílea anã



Malvavisco




Camarão vermelho
Camarão Amarelo



Brinco de Princesa



Sininho (abutilon)





Mulungu





Tilandsia

A ÁRVORE QUE NINGUÉM VISITA :: CHARLES SIMIC (Belgrado, 1938)

 Jean Metzinger, 1906

Então eu fui. Uma tarde subi
Aquela colina íngreme e rochosa,
Parando para descansar e admirar uma flor silvestre
E a vista do lago
No vale lá em baixo.

Teria gostado de uma cabra por companhia.
Uma preta e branca, com um sino
Para ir à frente, pastar um pouco e romper
O silêncio quando este retoma sua ascensão
Até onde uma árvore escura e silenciosa está

Esperando todos estes anos que alguém
Se sente à sua sombra, em calma consigo mesmo.
Até o vento está sempre a inventar
Joguinhos para as suas folhas brincarem,
Sem pressa agora de perturbar a paz.



15 de set. de 2014

COMER, COMER :: Clarice Lispector

Ekaterina Pozdniakova

Não sei como são as outras casas de família. Na minha casa todos falam em comida. “Esse queijo é seu?”  “Não, é de todos.”  “A canjica está boa?”  “Está ótima.”  “Mamãe, pede à cozinheira para fazer coquetel de camarão, eu ensino.”  “Como é que você sabe?”   “Eu comi e aprendi pelo gosto.”  “Quero hoje comer somente sopa de ervilhas e sardinha.”  ”Essa carne ficou salgada demais.”  “Estou sem fome, mas se você comprar pimenta eu como.”  “Não, mamãe, ir comer no restaurante sai muito caro, e eu prefiro comida de casa.”  “Que é que tem no jantar para comer?”
 
Não, minha casa não é metafísica. Ninguém é gordo aqui, mas mal se perdoa uma comida malfeita. Quanto a mim, vou abrindo e fechando a bolsa para tirar dinheiro para compras. “Vou jantar fora, mamãe, mas guarde um pouco do jantar para mim.”  E quanto a mim, acho certo que num lar se mantenha aceso o fogo para o que der e vier. Uma casa de família é aquela que, além de nela se manter o fogo sagrado do amor bem aceso, mantenham-se as panelas no fogo. O fato é simplesmente que nós gostamos de comer. E sou com orgulho a mãe da casa de comidas. Além de comer conversamos muito sobre o que acontece no Brasil e no mundo, conversamos sobre que roupa é adequada para determinadas ocasiões. Nós somos um lar.
In: A descoberta do mundo. Editora Nova Fronteira, 1984. p. 222

14 de set. de 2014

Conversa puxa conversa à toa - Clarice Lispector

    Jean Metzinger, 1919

Eu estava na copa tomando um café e ouvi a cozinheira na área de serviço cantando uma melodia linda, sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa. Perguntei-lhe de quem era a canção. Respondeu: é bobagem  minha mesmo.
     Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café, meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão atrasados  em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa - continuei com meu café - se estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em "milhares de anos à nossa frente", deu-me quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o mundo será daqui a milhares de anos. Por outro lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo seco onde ainda há um pouco de umidade.
     Enquanto isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopéia sem palavras. Banho-me nela. A empregada é magra e morena, e nela se aloja um "eu". Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de "eu"? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um "eu".
In: A Descoberta do mundo. Editora Nova Fronteira, 1984. p. 444

13 de set. de 2014

Livros :: Caetano Veloso

Friedensreich Hundertwasser, 1971

Tropeçavas nos astros desastrada 
Quase não tínhamos livros em casa 
E a cidade não tinha livraria 
Mas os livros que em nossa vida entraram 
São como a radiação de um corpo negro 
Apontando pra a expansão do Universo 
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso 
(E, sem dúvida, sobretudo o verso) 
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada 
Sem saber que a ventura e a desventura 
Dessa estrada que vai do nada ao nada 
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes 
Mas podemos amá-los do amor táctil 
Que votamos aos maços de cigarro 
Domá-los, cultivá-los em aquários, 
Em estantes, gaiolas, em fogueiras 
Ou lançá-los pra fora das janelas 
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos) 
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los 
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas 
E de mais confusão as prateleiras. 
Tropeçavas nos astros desastrada 
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.

12 de set. de 2014

QUANDO MINHAS PALAVRAS VOARAM :: Fabrício Carpinejar

Nossa vida não é triste. Mesmo quando não temos uma alegria, temos uma esperança. 

A esperança é a alegria nascendo.

Nunca fui vítima do passado, órfão da memória, coitadinho da infância.

Não me diferenciei pela dor, nem me destaquei pela tristeza.

Detesto reclamar. Reclamar só chama rancor.

O que eu passei, passei, superei de algum jeito, os traumas não me mataram.

As brigas não me levaram ao ódio e ao ressentimento. Não fiquei sequelado.

Aquilo que parecia um sofrimento eterno também esqueci.

Não irei me vangloriar das feridas. Gosto mais das minhas sardas do que das minhas cicatrizes.

Sofri o que aguentei. Aguentar é deixar de sofrer.

Fui educado numa escola pública em que não tinha ninguém para me defender.

Durante dois anos, cedi meu prato de comida para a turma da rua Lavras. O bom é que odiava sagu e polenta, as duas refeições básicas da época.

Era terrível a gangue formada por garotos quatro anos mais velhos do que eu. Andava com canivete e chaco. Arrastava vítimas pelos corredores do Imperatriz Leopoldina. Cobrava a feitura de temas e revistava bolsos dos colegas no recreio.

Desfalcou várias vezes minha mochila. Levou estojos, cadernos, réguas e a coleção de bolitas.

Sobrevivi ao roubo. Sobrevivi ao medo. Sobrevivi aos reveses.

Lembro que eles me seguraram pelos pés na janela do terceiro andar do refeitório.

Fiquei balançando do lado de fora. Um ioiô das risadas dos meninos.

Eu gritava de horror.

Quinze minutos balançando pelo avesso. Um enforcado dos pés.

Como se estivesse num kamikaze do parque de diversão.

Alucinado de ponta-cabeça. Batendo com o peito na parede do lado de fora.

Minhas palavras de socorro voaram pelo pátio. Pelo bairro. Foi quando aprendi a voar pela boca.

Eu me esvaí em lágrimas como qualquer criança naquela situação-limite.

Devo ter mijado, devo ter babado, devo ter feito o testamento na hora.

Olhava para baixo e me enxergava despedaçado no concreto.

A poça de sangue marcaria minha despedida do mundo.

Os guris me mantinham preso apenas pelos tênis.

Agradeço que usava Kichute amarrado nas canelas, o calçado nunca escorregava. O cadarço firme como um cordão umbilical.

Se não fosse o Kichute, estaria morto.

Sempre teremos uma esperança maior do que a tristeza. A esperança já é uma alegria.

Mesmo que seja um Kichute.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 16/07/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17493

11 de set. de 2014

“He loved beauty that looked kind of destroyed” RUI PIRES CABRAL (Macedo de Cavaleiros, Portugal, 1967)


Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrebalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.

10 de set. de 2014

INVERNO :: Antonio Cicero.

 Franz Marc, 1912
No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir

de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.

Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?

Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.

9 de set. de 2014

Jonathan Green (1955, Carolina do Sul , E.U.A)


















O som - Ferreira Gullar

Praça do Lido, Copacabana, RJ.

o som é da Terra
não há nenhuma música das esferas
como pensou Aristóteles

música barulho
o trepidar cristalino
da água
sob as folhas
é coisa terrestre

o cosmo é um vastíssimo silêncio
de bilhões e bilhões de séculos

nenhum ruído
as estrelas são imensas explosões mudas
um desatino

a matéria estelar
(a explodir)
é silêncio
e energia

Para outros ouvidos talvez
poderia ser o universo
um insuportável barulho;
não para os nossos
terrenos

Viver na Terra é ouvir
entre outras vozes
o marulho
do mar salgado e azul
ouvir a ventania a rasgar-se nos galhos
antes do temporal

só aqui
neste planeta é que
se pode escutar teu límpido gorjeio,
passarinho,
pequenino cantor
da praça do Lido.

8 de set. de 2014

Janela sobre o corpo de Eduardo Galeano

 Julie Steiner
A igreja afirma: O corpo é uma culpa.
A ciência afirma: O corpo é uma máquina.
A publicidade afirma: O corpo é um negócio.
O corpo confirma: Sou uma festa.

Tradução de Adriano Nunes

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VENTANA SOBRE EL CUERPO


La iglesia dice: El cuerpo es una culpa.
La ciencia dice: El cuerpo es una máquina.
La publicidad dice: El cuerpo es un negocio.
El cuerpo dice: Yo soy una fiesta.


In: GALEANO, Eduardo. El Viaje. 2006. p. 21.






In: GALEANO, Eduardo. “El Viaje”. Mini Letras/ H KliCZKOWSKI, primera edición: septiembre de 2006., p. 21.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...