12 de out. de 2014

Pablo Picasso (Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, ou simplesmente Pablo Picasso (Málaga, 25 de outubro de 1881 — Mougins, 8 de abril de 1973)



















À MARGEM de Diego Engenho Novo

 Camille Pissarro
Hoje tirei um tempo pra margear um caderno. Ou melhor, tirei um tempo pra voltar no tempo. O cheiro bom da minha mãe, a ansiedade de um novo ano na escola. Sim, eu já fui criança.
Traçar aquelas linhas bobas não fazia sentido pra mim (não que hoje faça), mas, sem querer aos poucos a gente foi traçando as linhas da própria vida, reforçando os traços do nosso próprio caráter, indicando a direção que os sonhos deviam tomar.
Quando criança eu sentia estar perdendo tempo cobrindo de outra cor uma linha que já existia. Avisando àquele muro magro que ele devia barrar a passagem das letras, deter as ideias, frear os meus tantos pensamentos. Mas hoje, margeando um caderno qualquer, me lembrei que a minha mãe, na primeira série, fez esse árduo trabalho por mim, por horas, pouco depois de cobrir as capas com um plástico bonito, que eu mesmo escolhi.
No ano seguinte, ela segurou na minha mão para que eu não deixasse a reta torta. Mesmo com tudo torto, borrado, mesmo que eu parecesse um paciente precoce de Parkinson, mamãe elogiava. Pra ela tudo estava lindo; pra ela, o lindo era eu existindo.
Nos anos seguintes, eu mesmo cuidava de tudo. Eu mesmo bati o pé e reclamei das capas com bolinhas e bichinhos. O rapazinho reclamão, andava cheio de vontades, e mamãe ainda assim, achava graça de tudo. “Reclamar vai fazer com que isso termine mais cedo?”, não ia. E eu me contentava em chicotear as bordas do caderno com a bic mordida.
Hoje, margeando um caderno entendi que o tempo de quem tanto reclamei, passou. Eu rezei tanto pra crescer, que cresci sem medida. O mundo não é definido pelas margens chatas, retas ou tortas. O mundo acontece, metade, margem à dentro e, bem mais, margem a fora. Saudade boa, mãe.


10 de out. de 2014

Oxalá estejam limpas :: Paulo Leminsky.


oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
as roupas brancas da cesta

oxalá teu dia de festa
cesta cheia
feito uma lua
toda feita de lua cheia

no branco
lindo
teu amor
teu ódio
tremeluzindo
se manifesta

tua pompa
tanta festa
tanta roupa
na cesta
cheia
de sexta

oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
oxalá teu dia de festa

9 de out. de 2014

Eric Bowman















Meu Avô :: Manoel de Barros

Odilon Redon

Meu avô dava grandeza ao abandono.
Era com ele que vinham os ventos a conversar
Sentava-se o velho sobre uma pedra nos fundos 
do quintal
E vinham as pombas e vinham as moscas a
conversar.
saia do fundo do quintal para dentro da
casa
E vinham os gatos a conversar com ele.
Tenho certeza que o meu avô enriquecia
a palavra abandono.
Ele ampliava a solidão dessa palavra.
e as borboletas se aproveitavam dessa
amplidão para voar mais longe.

8 de out. de 2014

VIVER SEM TEMPOS MORTOS :: Simone de Beauvoir

A impressão que eu tenho é de não ter envelhecido embora eu esteja instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou pra mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa pra minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. O que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida, unicamente o sabor da minha vida. Acho que eu consegui fazê-lo; vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.

Trecho da Peça VIVER SEM TEMPOS MORTOS, inspirada na correspondência de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre , com Fernanda Montenegro

Tatiana Clauzet

















Sobre o país donde vimos :: Ana Blandiana

Max Ernst, 1969

Vamos, falemos
do país donde vimos.
Eu venho do Verão,
uma pátria frágil
que qualquer folha,
ao cair, pode bem extinguir.
E o céu é tão cheio de estrelas
que às vezes pendem até ao chão,
e tu, aproximando-te, podes ouvir a erva
a fazer cócegas às estrelas que riem,
e são tantas as flores
que os olhos doem
deslumbrados pelo sol,
e redondos sóis pendem
de cada árvore;
Donde eu venho
falta apenas a morte
e é tanta a felicidade
que até dá para dormir.


7 de out. de 2014

Dois sonhos :: Carlos Drummond de Andrade

Vladimir D. Rumyantsev

O gato dorme a tarde inteira no jardim.
Sonha (?) tigres enviesados a chamá-lo
para a fraternidade no jardim.
Gato sonhando, talvez sonho de homem?

Continua dormindo, enquanto ignoro
a natureza e o limite do seu sonho
e por minha vez
também me sonho (inveja) gato no jardim

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...