Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
1 de nov. de 2014
O milagre existe :: Clarice Lispector
"Não, não há razão de espanto:
o milagre existe: o milagre é uma sensação.
Sensação de quê? de milagre.
Milagre é uma atitude assim como o girassol vira lentamente
sua abundante corola para o sol.
O milagre é a simplicidade última de existir.
O milagre é o riquíssimo girassol se explodir de caule,
corola e raiz - e ser apenas uma semente.
Semente que contém o futuro."
fonte: Um Sopro de Vida
31 de out. de 2014
Retrato de família :: Carlos Drummond de Andrade
Família de Carlos Drummond de Andrade, Itabira-MG, 1915
Este retrato de família
está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
sem memórias da monarquia.
Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranqüilo,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de névoa.
No semicírculo de cadeiras
nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
mas sem barulho: é um retrato.
Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
outra, sorrindo, se propõe.
Esses estranhos assentados,
meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
numa sala que se abre pouco.
Ficaram traços da família
perdidos nos jeitos dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.
A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam - se preciso - voar.
Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão,
ir morar no fundo de móveis
ou no bolso de velhos coletes
A casa tem muitas gavetas
e papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde,
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha idéia de família
viajando através da carne.
in Antologia Poética. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001.
30 de out. de 2014
Memórias das infâncias :: Adília Lopes
Gostávamos muito de doce de framboesa
E deram-nos um prato com mais doce de framboesa
Do que era costume
Mas
A nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
Para nosso bem
Porque estávamos doentes
Esconderam colheres do remédio
Que sabia mal
O doce de framboesa não sabia à mesma coisa
E tinha fiapos brancos
Isso aconteceu-nos uma vez e chegou
Nunca mais demos pulos por ir haver
Doce de framboesa à sobremesa
Nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
Como o remédio da nossa infância sabia mal!
Como era doce o doce de framboesa da nossa infância!
Ao descobrir a mistura
Do doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
Depois ouvimos falar da entropia
Aprendemos que não se separa de graça
O doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
E os livros são como as infâncias
Que são como as pombinhas da Catrina
Uma é minha
Outra é tua
Outra é de outra pessoa
pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, (Lisboa, 20 de Abril de 1960)
Rosa rugosa (rugosa rose, Japanese rose, ou Ramanas rose)
Segue o teu destino...
Rega as tuas plantas;
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
de árvores alheias
Fernando Pessoa
29 de out. de 2014
Manoel de Barros
Elvira Matilde
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas
mais que a dos mísseis.
Tenho em mim
esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.
Meu quintal
É maior do que o mundo.
28 de out. de 2014
Contranarciso :: Paulo Leminski
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
O homem, quando jovem :: HÉLIO PELLEGRINO.
"O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio.
Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma.
Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome."
Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma.
Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome."
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