Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
12 de nov. de 2014
Exploro os mistérios irracionais :: Manoel de Barros
"Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem". Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem". Está no livro "Vozes da Origem", da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento."
fonte: entrevista concedida a José Castello, do jornal "O Estado de São Paulo", em agosto de 1996, ao ser perguntado sobre qual sua rotina de poeta
11 de nov. de 2014
Um corpo :: Adélia Prado
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
10 de nov. de 2014
Figos de Alice Sant'Anna
Manfred Lutzius
ouvi que minha avó
tinha paixão
por fruta do conde e caqui
(imagino a colher de prata
separando o gomo
da casca vermelha)
meu avô come figos religiosamente
empurra o miolo
para dentro e a fruta
de repente se desdobra
em flor, as pontas fazem cócegas
na língua
todo dia minha mãe
amassa um abacate de manhã
e meu pai devora umas tantas
maçãs antes de dormir
hoje acordei cedo, fui à feira
as frutas têm gosto de casa
9 de nov. de 2014
SEM SABER :: Ana Blandiana
Raphael Kirchner, 1903
Evidentemente não sou
como esses fiandeiros de palavras
que fazem as roupas e as corridas de agulha,
as glórias, os orgulhos,
apesar de me mover no meio deles
e eles me olharem as palavras como se fossem malhas
– “Que bem posta que vais!”, dizem-me,
– “Que bem que te fica o poema!”
sem saber
que os poemas não são o meu vestido,
mas o esqueleto
extraído com dor
e posto por cima da carne como uma carapaça,
tal como as tartarugas,
que assim sobrevivem
séculos
longos e infelizes.
8 de nov. de 2014
O corpo e a mente - Luis Fernando Veríssimo
Rene Magritte, 1935
O corpo e a mente
têm biografias separadas,
cada um sua memória própria,
seu próprio jogo de charadas.
Meu corpo tem lembranças
- cheiros, tiques, andanças -
que a mente não registrou,
e o corpo não tem as marcas
de metade do que a mente passou.
POESIA NUMA HORA DESSAS?! Rio de Janeiro: Objetiva, 2002
7 de nov. de 2014
As plantas :: Manoel de Barros
Maki Haku
As plantas
me ensinavam de chão.
Fui aprendendo com o corpo.
Hoje sofro de gorjeios
nos lugares puídos de mim.
Sofro de árvores."
In: Compêndio para uso de pássaros
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