Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
28 de jan. de 2015
27 de jan. de 2015
MINHA GRANDE TERNURA :: Manuel Bandeira
Pelos passarinhos mortos,
Pelas pequeninas aranhas.
Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser;
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.
Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.
Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.
Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite
De um túmulo.
26 de jan. de 2015
Poema :: Bernhard Wosien
uma canção do silêncio
seguindo uma música cósmica
e coloco meu pé ao longo das beiras do céu
eu sinto
como seu sorriso me faz feliz
25 de jan. de 2015
Toada :: Mário de Andrade
Monica Cid
fonte: Mario de Andrade : fotografo e turista aprendiz. São Paulo, SP : USP/Instituto de Estudos Brasileiros, 1993.
24 de jan. de 2015
Jornal longe :: Cecília Meireles
anúncios, fotografias, opiniões...?
Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.
Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
“Os jornais servem para fazer embrulhos.”
E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
23 de jan. de 2015
DÁDIVA :: Czeslaw Milosz (1911-2004)
Martin Johnson Heade
Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os colibris se demoravam sobre a flor de madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Me endireitando, vi o mar azul e velas.
Berkeley, 1971
22 de jan. de 2015
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer. :: Manoel de Barros
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho que 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais
ou no Viterbo -
A fim de consertar a minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:
- Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
- Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
- Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:
- Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco.
Etc.
Etc.
Etc.
Maior que o infinito é a encomenda.
O livro das ignorãças. Record, 1997.
20 de jan. de 2015
Parceria :: Flora Figueiredo (São Paulo, SP. – 1951 )
Abraham Manievich
Ficamos assim: você joga as queixas no telhado,
eu ponho as manias de lado,
você lava a escadaria, eu rego o jardim.
Podemos varrer juntos as nódoas secas aderentes ao passado.
Se você se habilita, eu me disponho, num desafio à desdita.
Você acende a luz, eu desempeno o sonho,
enquanto você ensaia o passo, eu troco a fita.
Na mesa torta, a toalha colorida.
O resto é fácil: basta mandar flores ao futuro,
derrubar o muro e acreditar na vida.
19 de jan. de 2015
Poética :: Claudio Willer
então é isso
quando achamos que vivemos estranhas experiências
a vida como um filme passando
ou faíscas saltando de um núcleo
não propriamente a experiência amorosa
porém aquilo que a precede
e que é ar
concretude carregada de tudo:
a cidade refletindo para sua hora noturna e todos indo para casa ou então
marcando encontros improváveis e absurdos, burburinho da multidão circulando
pelo centro e pelos bairros enquanto as lojas fecham mas ainda estão iluminadas,
os loucos discursando pelas esquinas, a umidade da chuva que ainda não passou,
até mesmo a lembrança da noite anterior no quarto revolvendo-nos em carícias e
expondo as sucessivas camadas do que tem a ver – onde a proximidade dos
corpos confunde tudo, palavra e beijo, gesto e carícia
tudo gravado no ar
e não o fazemos por vontade própria
mas por atavismo
in: Pinto, Manuel da Costa.Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Seculo 21. Publifolha, 2006.
18 de jan. de 2015
As pessoas dormem em toda a parte :: THOMAS MÖHLMANN
a testa encostada ao braço
o rosto voltado para a terra, respirando calmamente.
Sobre a terra, debaixo de cobertores quentes
sob tectos sólidos, enlaçados uns nos outros
à sorte, enrodilhados em si mesmos
enquanto o mundo se abre qual mão
enquanto os dedos procuram outros dedos
outros dedos procuram outros e os peixes
embalam o mar para o acalmar e os navios as suas cargas
e a rádio embala o pai e, como um tecido macio,
o pai a mãe, os candeeiros a noite.
Porque velas. Por que razão alguém
está de vigília, alguém está presente.
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