Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
30 de out. de 2016
29 de out. de 2016
Conto :: JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA
Foi assim: à mesa do café, o pai disse que ia ao entreposto carregar o caminhão. Eu perguntei se podia ir; ele disse, Pode, vamos! Luiz, que tinha ido lá uma vez e voltara aborrecido, Não tem nada pra fazer, ficou me olhando, incrédulo, seu silêncio dizia, Você vai se arrepender, e deu de ombros. Irritava-se, sempre, quando eu me recusava a aprender o que ele, para o meu bem, queria me ensinar. Talvez porque, eu já pensava, a gente aprende mais indo até as coisas do que com as palavras dos outros. A mãe sorriu, reconhecendo um tanto dela em mim, muito além da cor de seus olhos e da curva de suas sobrancelhas.
E, então, fomos, eu e o pai, no caminhão a trovejar pelas ruas, a carroceria vazia, o dia menino, o sol ainda preguiçoso sobre as casas. No banco, entre nós, nada, só uma fatia de espaço, para o nosso conforto. Não precisávamos de mais: as nossas presenças se tocavam. A gente ali, sendo eu e ele, pai e filho na recém-nascida manhã.
Não demorou, chegamos ao entreposto, enorme depósito de cereais junto à rodovia. Dali dava para ver nossa cidade lá embaixo, embutida na planície verde. À beira do entreposto, caminhões aguardavam a hora de serem carregados. O pai estacionou, fomos lá dentro – ele pegando o caminho do escritório, eu atrás, desorientado com aquela grandeza. Sacas e mais sacas (de arroz, café, feijão, milho) formando imensas pilhas que atingiam o teto; dezenas de homens musculosos, sem camisa, pano enrolado na cabeça como turbante, transportando as mercadorias de um lado para o outro. O chão coberto por uma película de pó branco, cascas de amendoim, linhas de estopa. O mundo ali, numa maneira de ser que eu desconhecia – e que se mostrava para mim como o pássaro entre a ramagem da árvore.
No escritório, um cercado de vidro no fundo do entreposto, sentamos num banco de madeira e aguardamos a nossa vez. O pai quase sorria, ele no seu lugar de lucro e contentamento; eu, ao seu lado, assistia ao vaivém que os carregadores teciam com seus pés naquele lugar imenso. Conversavam, gritavam, riam alto, como se levassem às costas asas e não pesadas cargas. Um e outro cantavam, os braços brilhando de suor, as faces sujas de poeira. Distraí-me: com aquilo tudo à minha frente, não havia como ficar em mim, era uma obrigação me entregar.
Assim, quando me dei conta, o pai me pegava pelo braço, Vem, e eu fui, obediente, mas ainda voltando-me para trás, querendo mais, lá no fundo um guindaste começava a se mover. Era o fim, mas o fim apenas da primeira parte. Porque o pai, depois de alguns minutos, atendendo ao sinal de um homem, ligou o caminhão e se pôs a entrar, devagarinho, no armazém. Logo os carregadores começaram a trazer sacas e organizá-las num canto da carroceria.
Eu desci da boleia, queria me gastar naquela observação. Atravessei o entreposto procurando um lugar só meu, para ficar comigo, vendo o que eu via – aquele desenho de vidas. Achei uma pequena pilha de sacas de amendoim. Subi ao seu topo, sentei-me. Nenhum véu, tudo nu adiante, para mim. E ainda tinha o cheiro: cheiro cru, de grão de terra transformado em grão de alimento, cheiro demais de vida, de vida brava, senhora das mudanças. De repente, senti: era tanta – e silenciosa – a minha alegria que uma ponta de tristeza já se insinuava. Deixei que viessem, as duas, e me confundissem, eu queria sentir o que sentia àquela hora, uma força presente e a outra futura. O instante e a sua sombra.
Foi assim. Eu cheguei em casa sendo outro, excitado de quietude, maior na minha miudeza. Luiz me viu daquele tamanho e não ligou para a nossa diferença. Fui para o nosso quarto, sentei-me em frente à janela, eu me tornando (também) a vista lá de fora. Desejava, febrilmente, que continuasse tudo daquele jeito: que as coisas, no seu ser apenas, me espantassem sempre. Era o vital para mim: a vida com seus visíveis movimentos. E a gente, cada um no seu posto, nem dentro, nem fora. Entre.
E, então, fomos, eu e o pai, no caminhão a trovejar pelas ruas, a carroceria vazia, o dia menino, o sol ainda preguiçoso sobre as casas. No banco, entre nós, nada, só uma fatia de espaço, para o nosso conforto. Não precisávamos de mais: as nossas presenças se tocavam. A gente ali, sendo eu e ele, pai e filho na recém-nascida manhã.
Não demorou, chegamos ao entreposto, enorme depósito de cereais junto à rodovia. Dali dava para ver nossa cidade lá embaixo, embutida na planície verde. À beira do entreposto, caminhões aguardavam a hora de serem carregados. O pai estacionou, fomos lá dentro – ele pegando o caminho do escritório, eu atrás, desorientado com aquela grandeza. Sacas e mais sacas (de arroz, café, feijão, milho) formando imensas pilhas que atingiam o teto; dezenas de homens musculosos, sem camisa, pano enrolado na cabeça como turbante, transportando as mercadorias de um lado para o outro. O chão coberto por uma película de pó branco, cascas de amendoim, linhas de estopa. O mundo ali, numa maneira de ser que eu desconhecia – e que se mostrava para mim como o pássaro entre a ramagem da árvore.
No escritório, um cercado de vidro no fundo do entreposto, sentamos num banco de madeira e aguardamos a nossa vez. O pai quase sorria, ele no seu lugar de lucro e contentamento; eu, ao seu lado, assistia ao vaivém que os carregadores teciam com seus pés naquele lugar imenso. Conversavam, gritavam, riam alto, como se levassem às costas asas e não pesadas cargas. Um e outro cantavam, os braços brilhando de suor, as faces sujas de poeira. Distraí-me: com aquilo tudo à minha frente, não havia como ficar em mim, era uma obrigação me entregar.
Assim, quando me dei conta, o pai me pegava pelo braço, Vem, e eu fui, obediente, mas ainda voltando-me para trás, querendo mais, lá no fundo um guindaste começava a se mover. Era o fim, mas o fim apenas da primeira parte. Porque o pai, depois de alguns minutos, atendendo ao sinal de um homem, ligou o caminhão e se pôs a entrar, devagarinho, no armazém. Logo os carregadores começaram a trazer sacas e organizá-las num canto da carroceria.
Eu desci da boleia, queria me gastar naquela observação. Atravessei o entreposto procurando um lugar só meu, para ficar comigo, vendo o que eu via – aquele desenho de vidas. Achei uma pequena pilha de sacas de amendoim. Subi ao seu topo, sentei-me. Nenhum véu, tudo nu adiante, para mim. E ainda tinha o cheiro: cheiro cru, de grão de terra transformado em grão de alimento, cheiro demais de vida, de vida brava, senhora das mudanças. De repente, senti: era tanta – e silenciosa – a minha alegria que uma ponta de tristeza já se insinuava. Deixei que viessem, as duas, e me confundissem, eu queria sentir o que sentia àquela hora, uma força presente e a outra futura. O instante e a sua sombra.
Foi assim. Eu cheguei em casa sendo outro, excitado de quietude, maior na minha miudeza. Luiz me viu daquele tamanho e não ligou para a nossa diferença. Fui para o nosso quarto, sentei-me em frente à janela, eu me tornando (também) a vista lá de fora. Desejava, febrilmente, que continuasse tudo daquele jeito: que as coisas, no seu ser apenas, me espantassem sempre. Era o vital para mim: a vida com seus visíveis movimentos. E a gente, cada um no seu posto, nem dentro, nem fora. Entre.
28 de out. de 2016
27 de out. de 2016
Aviso :: Silvana Conterno
Ruth Vollmer
colarei avisos em todos os espelhos
amarrarei cordões em todos os dedos
para não esquecer que me enfraqueço
quando entro em túneis sem futuro
redemoinhos de lembranças
achando que estou pronta
para passear em certas ausências.
Silvana Conterno
26 de out. de 2016
Lição :: Fabio Weintraub (São Paulo, SP, 24 de agosto de 1967)
o que me instrui
à revelia
dos riscos
fere
o que me afere
cobrando o censo
do imenso
mina
o que me ensina
o veio oblíquo
da idéia
basta
o que me arrasta
à rua estreita
do acerto
punge
o que me pune
o ouvido gasto
de aluno
25 de out. de 2016
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