22 de fev. de 2017

Leite, leitura :: Paulo Leminski

John William Waterhouse

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

LEMINSKI, Paulo. O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 1996.

19 de fev. de 2017

CAÇAR EM VÃO :: Armando Freitas Filho (Rio de Janeiro, 1940)


Às vezes escreve-se a cavalo.

Arremetendo, com toda a carga.

Saltando obstáculos ou não.

Atropelando tudo, passando

por cima sem puxar o freio -

a galope - no susto, disparado

sobre as pedras, fora da margem

feito só de patas, sem cabeça

nem tempo de ler no pensamento

o que corre ou o que empaca:

sem ter a calma e o cálculo

de quem colhe e cata feijão.

17 de fev. de 2017

SOLIDÃO :: Oswald de Andrade


Chove chuva choverando
que a cidade de meu bem
está-se toda se lavando

Senhor
que eu não fique nunca
como esse velho inglês
aí ao lado
que dorme numa cadeira
à espera de visitas que não vêm

Chove chuva choverando
que o jardim de meu bem
está-se todo se enfeitando
A chuva cai
cai de bruços

A magnólia abre o pára-chuva
pára-sol da cidade
de Mário de Andrade
A chuva cai
escorre das goteiras do domingo

Chove chuva choverando
que a cidade de meu bem
está-se toda se molhando

Anoitece sobre os jardins
Jardim da Luz
Jardim da Praça da República
Jardim das platibandas

Noite
Noite de hotel
Chove chuva choverando

José Oswald Sousa de Andrade (São Paulo, 11 de janeiro de 1890 - São Paulo, 22 de outubro de 1954)

16 de fev. de 2017

O homem que descalçou os sapatos :: Uri Zvi Greenberg (1896-1981)

Van Gogh 

Levantei-me e os meus dois olhos viram isto:
Não sabia quem era o homem,
o seu nome, ou a sua complicada história.

Era uma manhã toda de ouro,
e este homem marchou até ao poste eléctrico
como se caminhasse para uma fronteira,
e ali descalçou os sapatos,
e deixando-os para trás, como num limiar,
começou a andar descalço,
algures para além deste ponto final,
em direcção a um princípio sem fim, lá longe:
sem casa, ou cama, ou seio:
sem um pão ou um jarro de água…
leve e de mãos vazias.

Vi os seus ombros largos,
a sua alta estatura, os seus viris passos
indo embora, indo daqui para as suas distâncias,
sem a memória dos seus sapatos,
que esperam por ele.


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...