4 de jul. de 2017

De quem é o olhar :: Fernando Pessoa

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora —
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua —
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora.
Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.
s. d.
«Episódios - A Múmia». Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 64.
1ª publ. in Portugal Futurista , nº 1. Lisboa: 1917.

30 de jun. de 2017

As garotas da varinha de condão :: Simone Brantes

Quando eu tinha uns onze anos
três meninas na biblioteca do colégio me
disseram: você faz o resumo, você sabe fazer
você escreve essas coisas
melhor do que nós
Eram três meninas que mal
me conheciam, como podiam saber
do que eu mesma não
sabia?
Talvez quisessem apenas
que alguém fizesse
e me convenceram
inventando uma capacidade
que eu não tinha
para que eu fizesse
o que não queriam
não sabiam
ou não lhes dava
prazer
Me lembro do nome delas
uma ruivinha
as outras morenas
Até hoje agradeço
pelo dom que passei a ter
e também porque hoje
como professora
de garotos da idade que eu tinha
posso mentir a eles
acreditando mesmo
ser possível
a invenção
de todos os dons

29 de jun. de 2017

Por que eu não sou pintor :: Frank O’Hara (1926-1966)

William J. McCloskey
Eu não sou pintor, sou poeta.
Por que? Eu acho que preferiria
ser pintor, mas não sou. Bem,

por exemplo, Mike Goldberg
está começando uma pintura. Eu apareço.
“Senta e toma uma bebida” ele
diz.Eu bebo; bebemos. Eu olho
para cima. “Você pôs SARDINHAS nela.”
“Sim, ela precisava de algo ali.”
“Oh”. Eu me vou e os dias passam
e eu apareço de novo. A pintura
está indo, e eu vou, e os dias
passam. Eu apareço. A pintura
está pronta. “Cadê SARDINHAS?”
Só restaram algumas
letras, “Era demais”, Mike diz.

Mas eu? Um dia estou pensando em
uma cor: laranja. Eu escrevo um verso
sobre laranja. Em breve será uma
página toda de palavras, não versos.
Então outra página. Deveria haver
tanto a mais, não de laranja, de
palavras, de como laranja é terrível
e a vida. Os dias passam. Está até em
prosa, eu sou um poeta de verdade. Meu
poema terminou e ainda não mencionei
laranjas. São doze poemas, eu chamo
de LARANJAS. E um dia na galeria
eu vejo a pintura de Mike, chamada SARDINHAS.

28 de jun. de 2017

Matita Perê : Antonio Carlos Jobim e Paulo Cesar Pinheiro

No jardim das rosas
De sonho e medo
Pelos canteiros de espinhos e flores
Lá, quero ver você
Olerê, Olará, você me pegar

Madrugada fria de estranho sonho
Acordou João, cachorro latia
João abriu a porta
O sonho existia

Que João fugisse
Que João partisse
Que João sumisse do mundo
De nem Deus achar, Ierê

Manhã noiteira de força viagem
Leva em dianteira um dia de vantagem
Folha de palmeira apaga a passagem
O chão, na palma da mão, o chão, o chão

E manhã redonda de pedras altas
Cruzou fronteira de servidão
Olerê, quero ver
Olerê

E por maus caminhos de toda sorte
Buscando a vida, encontrando a morte
Pela meia rosa do quadrante Norte
João, João

Um tal de Chico chamado Antônio
Num cavalo baio que era um burro velho
Que na barra fria já cruzado o rio
Lá vinha Matias cujo o nome é Pedro
Aliás Horácio, vulgo Simão
Lá um chamado Tião
Chamado João

Recebendo aviso entortou caminho
De Nor-Nordeste pra Norte-Norte
Na meia vida de adiadas mortes
Um estranho chamado João

No clarão das águas
No deserto negro
A perder mais nada
Corajoso medo
Lá quero ver você

Por sete caminhos de setenta sortes
Setecentas vidas e sete mil mortes
Esse um, João, João
E deu dia claro
E deu noite escura
E deu meia-noite no coração
Olerê, quero ver
Olerê

Passa sete serras
Passa cana brava
No brejo das almas
Tudo terminava
No caminho velho onde a lama trava
Lá no todo-fim-é-bom
Se acabou João

No Jardim das rosas
De sonho e medo
No clarão das águas
No deserto negro
Lá, quero ver você
Lerê, lará
Você me pegar

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...