Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
8 de fev. de 2018
6 de fev. de 2018
Nos áureos tempos :: Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Nos áureos tempos
a rua era tanta.
O lado direito
retinha os jardins.
Neles penetrávamos
indo aparecer
já no esquerdo lado
que em ferros jazia.
Nisto se passava
um tempo dez mil.
A viagem do quarto
requeria apenas
a chama da vela.
Que longa, se o rosto
fechado no livro.
E dos subterrâneos
a chave era nossa,
como na cascata
a moça indelével
se banhava em nós,
espaço e miragem
se multiplicando
nos áureos tempos.
Nos áureos tempos
que eram de cobre
muita noite havia
com chuva soando.
Farto da cidade
um atroz coqueiro
ia para o mato.
E vinha o assassino
no pó do correio.
A riqueza da África
se perdia em vento.
E era bem difícil
continuar menino
Chegando ao limite
dos tempos atuais,
eis-nos interditos
enquanto prosperam
os jardins da gripe,
os bondes do tédio,
as lojas do pranto.
O espaço é pequeno.
Aqui amontoados,
e de mão em mão
um papel circula
em branco e sigilo
talvez o prospecto
dos áureos tempo
Nos áureos tempos
que dormem no chão,
prestes a acordar,
tento descobrir
caminhos de longe,
os rios primeiros
e certa confiança
e extrema poesia.
Não me sinto forte
o quanto se pede
para interpretá-los.
O jeito é esperar.
Nos áureos tempos
coração-sorriso
meus olhos diamante
meus lábios batendo
a alvura de um cântico.
Do arraial trocado
sinto roupas novas
e escuto as bandeiras
pelo ar, que se entornam.
Nos áureos tempos
devolve-se a infância
a troco de nada
e o espaço reaberto
deixará passar
os menores homens,
as coisas mais frágeis,
uma agulha, a viagem,
a tinta da boca,
deixará passar
o óleo das coisas,
deixará passar
a relva dos sábados,
deixará passar
minha namorada,
deixará passar
o cão paralítico,
deixará passar
o círculo de água
refletindo o rosto...
Deixará passar
a matéria fosca,
mesmo assim prendendo-a
nos áureos tempos.
Nova Reunião. Companhia das Letras, 2015.
a rua era tanta.
O lado direito
retinha os jardins.
Neles penetrávamos
indo aparecer
já no esquerdo lado
que em ferros jazia.
Nisto se passava
um tempo dez mil.
A viagem do quarto
requeria apenas
a chama da vela.
Que longa, se o rosto
fechado no livro.
E dos subterrâneos
a chave era nossa,
como na cascata
a moça indelével
se banhava em nós,
espaço e miragem
se multiplicando
nos áureos tempos.
Nos áureos tempos
que eram de cobre
muita noite havia
com chuva soando.
Farto da cidade
um atroz coqueiro
ia para o mato.
E vinha o assassino
no pó do correio.
A riqueza da África
se perdia em vento.
E era bem difícil
continuar menino
Chegando ao limite
dos tempos atuais,
eis-nos interditos
enquanto prosperam
os jardins da gripe,
os bondes do tédio,
as lojas do pranto.
O espaço é pequeno.
Aqui amontoados,
e de mão em mão
um papel circula
em branco e sigilo
talvez o prospecto
dos áureos tempo
Nos áureos tempos
que dormem no chão,
prestes a acordar,
tento descobrir
caminhos de longe,
os rios primeiros
e certa confiança
e extrema poesia.
Não me sinto forte
o quanto se pede
para interpretá-los.
O jeito é esperar.
Nos áureos tempos
coração-sorriso
meus olhos diamante
meus lábios batendo
a alvura de um cântico.
Do arraial trocado
sinto roupas novas
e escuto as bandeiras
pelo ar, que se entornam.
Nos áureos tempos
devolve-se a infância
a troco de nada
e o espaço reaberto
deixará passar
os menores homens,
as coisas mais frágeis,
uma agulha, a viagem,
a tinta da boca,
deixará passar
o óleo das coisas,
deixará passar
a relva dos sábados,
deixará passar
minha namorada,
deixará passar
o cão paralítico,
deixará passar
o círculo de água
refletindo o rosto...
Deixará passar
a matéria fosca,
mesmo assim prendendo-a
nos áureos tempos.
Nova Reunião. Companhia das Letras, 2015.
5 de fev. de 2018
2 de fev. de 2018
30 de jan. de 2018
"Preciso" :: Eucanaã Ferraz
tenham vinte e quatro horas, ossos,
o sol, a noite, para que ruas, praças
e túneis estejam nos seus lugares.
Meu esforço para que a voz se mova
na fibra exata, para que a cidade,
cada dedo de sua álgebra, não desabe,
para que as fábulas, risos e palavras
estejam no ponto certo, assim como
as pedras, prédios e montanhas
que mantenho quietos a custo.
Amor a quanto obriga.
Meu esforço, faina de todo dia,
para que disso tudo ele nada perceba.
E ele nada percebe. Chove,
e só eu sei.
27 de jan. de 2018
Limites :: ::Juan Gelman
Quem disse alguma vez: até aqui a sede,
até aqui a água?
Quem disse alguma vez: até aqui o ar,
até aqui o fogo?
Quem disse alguma vez: até aqui o amor,
até aqui o ódio?
Quem disse alguma vez: até aqui o homem,
até aqui não?
Só a esperança tem os joelhos nítidos.
Sangram.
..........
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí la sed,
hasta aquí el agua?
¿Quién díjo alguna vez: hasta aquí el aire,
hasta aquí el fuego?
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí el amor,
hasta aquí el ódio?
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí el hombze,
hasta aquí no?
Sólo la esperanza tiene las rodillas nítidas.
Sangran.
Edição bilingüe .Trad. de Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2001. 160 p.
até aqui a água?
Quem disse alguma vez: até aqui o ar,
até aqui o fogo?
Quem disse alguma vez: até aqui o amor,
até aqui o ódio?
Quem disse alguma vez: até aqui o homem,
até aqui não?
Só a esperança tem os joelhos nítidos.
Sangram.
..........
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí la sed,
hasta aquí el agua?
¿Quién díjo alguna vez: hasta aquí el aire,
hasta aquí el fuego?
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí el amor,
hasta aquí el ódio?
¿Quién dijo alguna vez: hasta aquí el hombze,
hasta aquí no?
Sólo la esperanza tiene las rodillas nítidas.
Sangran.
Edição bilingüe .Trad. de Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2001. 160 p.
25 de jan. de 2018
Eu nem sei se vale a pena :: Mário de Andrade
Christian Tragni
Eu nem sei se vale a pena
Cantar São Paulo na lida,
Só gente muito iludida
Limpa o goto(*) e assopra a avena(**),
Esta angústia não serena,
Muita fome pouco pão,
Eu só vejo na função
Miséria, dolo, ferida,
Isso é vida?
São glórias desta cidade
Ver a arte contando história,
A religião sem memória
de quem foi Cristo em verdade,
Os chefes nossa amizade,
Os estudantes sem textos,
Jornalismo no cabresto,
Tolos cantando vitória,
Isso é glória?
divórcio pra todo o lado,
As guampas fazem furor,
Grã ‑finos do despudor,
no gasogênio empestado,
das moças do operariado
São os gozosos mistérios,
Isso de ter filho, néris,
E se ama seja o que for,
Isso é amor?
Mas o pior desta nação
E ter fábrica de gás
Que donos‑da‑vida faz
Ianques e ingleses de ação,
Tudo vem de convulsão
Enquanto se insulta o Eixo,
Lights, Tramas, Corporation,
E a gente de trás pra trás,
Isso é paz?
Pois nada vale a verdade,
Ela mesma está vendida,
A honra é uma suicida,
nuvem a felicidade,
E entre rosas a cidade,
Muito concha e relambória,
Sem paz, sem amor, sem glória,
Se diz terra progredida,
Eu pergunto:
Isso é vida?
** Goto é um sinônimo informal de glote. As duas locuções significam, nas
palavras do Houaiss, “ser objeto de agrado, de atenção; cair nas boas
graças”.
** antiga flauta
** antiga flauta
24 de jan. de 2018
Viajantes de Baudelaire
Carte postale "17e courrier par Ballon - Wien 1957"
Mas viajantes de fato apenas são aqueles
Que partem por partir; o coração flutuante,
Jamais hão de aceitar ser outros senão eles
E, sem saber por quê, ordenam sempre: Adiante!
outra versão
Mas os verdadeiros viajantes são só aqueles que partem
Por partir; corações leves, semelhantes a balões,
Jamais se separam de seu destino,
E, sem saber por que, dizem sempre: Vamos!
.........................
.........................
Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent
Pour partir, coeurs légers, semblables aux ballons,
De leur fatalité jamais ils ne s'écartent,
Et, sans savoir pourquoi, disent toujours : Allons !
................................
But the true voyagers are only those who leave
But the true voyagers are only those who leave
Just to be leaving; hearts light, like balloons,
They never turn aside from their fatality
And without knowing why they always say: "Let's go!”
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