9 de fev. de 2018

Receita :: Liria Porto



Maria Primachenko
 
para o pão caseiro
sal fermento leite
pitada de açúcar
naco de manteiga
farinha de primeira
mãos e coração
a sovarem a massa
até que ela se faça
lisa como a seda

deixá-la crescer
dobrar de tamanho
igual a lua cheia
assá-la em forno brando
quase não demora
ao sentir-se cheiro
põe-se água no fogo
coa-se o café

(acaso prefiras
serve pão com vinho
e agradece os deuses
a delicadeza)

Cadela prateada. Editora Penalux, 2016.

6 de fev. de 2018

Nos áureos tempos :: Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Nos áureos tempos
a rua era tanta.
O lado direito
retinha os jardins.
Neles penetrávamos
indo aparecer
já no esquerdo lado
que em ferros jazia.
Nisto se passava
um tempo dez mil.

A viagem do quarto
requeria apenas
a chama da vela.
Que longa, se o rosto
fechado no livro.
E dos subterrâneos
a chave era nossa,
como na cascata
a moça indelével
se banhava em nós,
espaço e miragem
se multiplicando
nos áureos tempos.
 
Nos áureos tempos
que eram de cobre
muita noite havia
com chuva soando.
Farto da cidade
um atroz coqueiro
ia para o mato.
E vinha o assassino
no pó do correio.
A riqueza da África
se perdia em vento.
E era bem difícil
continuar menino

Chegando ao limite
dos tempos atuais,
eis-nos interditos
enquanto prosperam
os jardins da gripe,
os bondes do tédio,
as lojas do pranto.
O espaço é pequeno.
Aqui amontoados,
e de mão em mão
um papel circula
em branco e sigilo
talvez o prospecto
dos áureos tempo

Nos áureos tempos
que dormem no chão,
prestes a acordar,
tento descobrir
caminhos de longe,
os rios primeiros
e certa confiança
e extrema poesia.
Não me sinto forte
o quanto se pede
para interpretá-los.
O jeito é esperar.

Nos áureos tempos
coração-sorriso
meus olhos diamante
meus lábios batendo
a alvura de um cântico.
Do arraial trocado
sinto roupas novas
e escuto as bandeiras
pelo ar, que se entornam.

Nos áureos tempos
devolve-se a infância
a troco de nada
e o espaço reaberto
deixará passar
os menores homens,
as coisas mais frágeis,
uma agulha, a viagem,
a tinta da boca,
deixará passar
o óleo das coisas,
deixará passar
a relva dos sábados,
deixará passar
minha namorada,
deixará passar
o cão paralítico,
deixará passar
o círculo de água
refletindo o rosto...
Deixará passar
a matéria fosca,
mesmo assim prendendo-a
nos áureos tempos.

Nova Reunião. Companhia das Letras, 2015.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...