Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
1 de mar. de 2019
25 de fev. de 2019
16 de fev. de 2019
Só na beleza criada pelos outros ::Adam Zagajewski
Só na beleza criada pelos outros
existe consolação, na música
e nos poemas dos outros
Só os outros nos podem salvar,
mesmo que a solidão tenha o sabor
do ópio. Não são o inferno, os outros,
se os espreitarmos de manhã, quando
têm a testa limpa. lavada pelos sonhos.
Por isso cismo muito sobre a palavra
que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»
é uma traição a qualquer «tu», mas,
em troca, um poema de alguém fielmente
oferece uma fresca, moderada conversa.
Sombras de Sombras. Tinta da China.
15 de fev. de 2019
À ESPERA DOS BÁRBAROS :: Constantino Kaváfis (1863-1933)
O que esperamos na ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
[Antes de 1911]
14 de fev. de 2019
11 de fev. de 2019
Armário :: Luiz Fernando Verissimo.
Eu queria senhora
ser o seu armário
e guardar os seus tesouros
como um corsário
Que coisa louca:
ser seu guarda-roupa!
Alguma coisa sólida
circunspecta e pesada
nessa sua vida estabanada.
Um amigo de lei
(de que madeira eu não sei).
Um sentinela do seu leito
— com todo o respeito.
Ah, ter gavetinhas
para suas argolinhas.
Ter um vão
para seu camisolão
e sentir o seu cheiro, senhora
o dia inteiro.
Meus nichos
como bichos
engoliriam suas meias-calças,
seus soutiens sem alças,
e tirariam nacos
dos seus casacos,
E no meu chão,
como trufas,
as suas pantufas…
Seus echarpes, seus jeans,
seus longos e afins.
Seus trastes
e contrastes.
Aquele vestido com asa
e aquele de andar em casa.
Um turbante antigo.
Um pulôver amigo.
Bonecas de pano.
Um brinco cigano.
Um chapéu de aba larga.
Um isqueiro sem carga.
Suéteres de lã
e um estranho astracã.
Ah, vê-la se vendo
no meu espelho, correndo.
Puxando, sem dores,
os meus puxadores.
Mexendo com o meu interior
- à procura de um pregador.
Desarrumando meu ser
por um prêt-à-porter…
Ser o seu segredo,
senhora,
e o seu medo.
E sufocar
com agravantes
todos os seus amantes.
ser o seu armário
e guardar os seus tesouros
como um corsário
Que coisa louca:
ser seu guarda-roupa!
Alguma coisa sólida
circunspecta e pesada
nessa sua vida estabanada.
Um amigo de lei
(de que madeira eu não sei).
Um sentinela do seu leito
— com todo o respeito.
Ah, ter gavetinhas
para suas argolinhas.
Ter um vão
para seu camisolão
e sentir o seu cheiro, senhora
o dia inteiro.
Meus nichos
como bichos
engoliriam suas meias-calças,
seus soutiens sem alças,
e tirariam nacos
dos seus casacos,
E no meu chão,
como trufas,
as suas pantufas…
Seus echarpes, seus jeans,
seus longos e afins.
Seus trastes
e contrastes.
Aquele vestido com asa
e aquele de andar em casa.
Um turbante antigo.
Um pulôver amigo.
Bonecas de pano.
Um brinco cigano.
Um chapéu de aba larga.
Um isqueiro sem carga.
Suéteres de lã
e um estranho astracã.
Ah, vê-la se vendo
no meu espelho, correndo.
Puxando, sem dores,
os meus puxadores.
Mexendo com o meu interior
- à procura de um pregador.
Desarrumando meu ser
por um prêt-à-porter…
Ser o seu segredo,
senhora,
e o seu medo.
E sufocar
com agravantes
todos os seus amantes.
10 de fev. de 2019
Minas há :: Carlos Drummond de Andrade
(...)Minas há e – acrescento – haverá sempre, se soubermos preservar certas marcas imunes à industrialização e ao cosmopolitismo, e conviventes com eles. A gente carrega Minas no sangue, por onde quer que vá… O meu “José” deve uma explicação: foi escrito em momento de crise existencial, quando eu queria fugir de tudo e de todos, e não voltar fisicamente para Minas, por motivos muito especiais. Então, Minas “não havia mais” para mim. Mas o próprio “José”, no final, procura libertar-se do desespero, marchando não sabe para onde – para Minas reencontrada no íntimo – é a explicação que me dou. Não sei se é boa. É a que eu encontro, tantos anos depois desses versos amargos.
Arquivo Francisco Iglésias/ Acervo IMS. Esta carta foi publicada no número 11 ½ da revista serrote, edição especial para a FLIP 2012.
Arquivo Francisco Iglésias/ Acervo IMS. Esta carta foi publicada no número 11 ½ da revista serrote, edição especial para a FLIP 2012.
8 de fev. de 2019
O céu sobre Berlim (Der Himmel uber Berlin) :: Ines Lourenço
No filme de Wenders, com
versos de Handke, os anjos fingem
estar fartos de um tempo infinito. Sonham com os pequenos tempos de sentar-se à mesa
a jogar cartas. Ser cumprimentado na
rua, nem que seja com um aceno. Ter
febre. Ficar com os dedos sujos de ler o jornal. Entusiasmar-me com uma refeição ou com a curva de uma nuca. Mentir
com habilidade. ao andar
sentir a ossatura mexer-se a cada passo. Supor, em vez de saber
sempre tudo.
Cá em baixo, os humanos não suspeitam da beleza
do peso, que os segura à terra e fingem
o futuro em cada minuto, para
deixar de dizer agora, agora, agora...
Inês Lourenço, "A Enganadora Respiração da Manhã.
versos de Handke, os anjos fingem
estar fartos de um tempo infinito. Sonham com os pequenos tempos de sentar-se à mesa
a jogar cartas. Ser cumprimentado na
rua, nem que seja com um aceno. Ter
febre. Ficar com os dedos sujos de ler o jornal. Entusiasmar-me com uma refeição ou com a curva de uma nuca. Mentir
com habilidade. ao andar
sentir a ossatura mexer-se a cada passo. Supor, em vez de saber
sempre tudo.
Cá em baixo, os humanos não suspeitam da beleza
do peso, que os segura à terra e fingem
o futuro em cada minuto, para
deixar de dizer agora, agora, agora...
Inês Lourenço, "A Enganadora Respiração da Manhã.
5 de fev. de 2019
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