3 de jun. de 2019

Yara Tupynambá Gordilho Santos (Montes Claros MG 1932)









































Narciso :: Antonio Cicero

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Narciso é filho de uma flor aquática
e de um rio meândrico. É líquido,
cristalizado de forma precária
e preciosa, trazendo o sigilo
de sua origem no semblante vívido,
conquanto reflexivo. Ousaria
defini-lo como aquele em que a vida
mesma se retrata. É pois fatídico
que, logo ao se encontrar, ele se perca
e, ao se conhecer, também se esqueça,
se está na confluência da verdade
e da miragem, quando as verdes margens
da fonte emolduram sua imagem fluida
e fugaz de água sobre água cerúlea.



In: Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

31 de mai. de 2019

Não vás tão docilmente :: Dylan Thomas (tradução Augusto de Campos)


Não vás tão docilmente nessa noite linda;
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem-vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendiaria,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda.
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

27 de mai. de 2019

Dices que nada se pierde :: Antonio MACHADO

Dizes que nada se perde
e talvez seja verdade,
porém tudo nós perdemos
e tudo nos perderá.

..

Dices que nada se pierde
y acaso dices verdad,
pero todo lo perdemos
y todo nos perderá


In:_____. Poesías completas. Madrid: Espasa-Calpe, 1983

26 de mai. de 2019

Um jardim para Sylvia :: Ana Martins Marques

Georgia O'Keeffe 

Papoulas
você diz
deviam estar atrás das grades
como as feras
já as rosas provavelmente
mandaríamos a um hospício
Salpêtrière certamente
era um bom lugar para rosas
especialmente as vermelhas
(toda essa te-a-tra-li-da-de)
os lírios deviam ser caçados
a laço
e as camélias enclausuradas
em conventos
e as dálias
queimadas
em fogueiras

(veja o dorso das dálias
reluzente
veja as margaridas
como nos mostram os dentes)
Quem coloca girassóis na jarra
toca fogo no próprio apartamento
como pode querer passar o dia
sem alarme
após incendiar a casa por dentro?
Instalam pequenas feras
na sala de estar
pequenos corações abertos
crus
e depois não querem que doa

23 de mai. de 2019

ROUPAS :: Anne Sexton

Veste uma camisa limpa antes de morrer, dizem os russos.
Por favor, nada com baba, nódoas de ovo, sangue
suor, esperma.
Queres-me limpa, Deus,
por isso vou tentar obedecer.

O chapéu com que me casei,
servirá?
Branco, largo com um pequeno bouquet de flores falsas.
É antiquado, com tanto estilo como um percevejo,
mas fica bem morrer com algo nostálgico.

E vou levar
a minha bata de pintar
lavada vezes sem conta, claro
manchada com cada cozinha amarela que pintei.
Deus, não te importas que eu leve todas as minhas cozinhas?
Elas contêm o riso da família e a sopa.

Como soutien
(precisamos mesmo mencionar isso?)
o preto acolchoado que tanto irritava o meu amante
quando eu o despia.
Ele dizia: “para onde foi aquilo tudo?”

E levarei
a saia de grávida do meu nono mês
uma janela para a barriga do amor
que deixou cada bebê sair como uma maçã,
as águas a rebentar no restaurante.

Como roupa íntima escolherei algodão branco,
as calcinhas da minha infância,
pois era uma máxima da minha mãe
que as meninas boas apenas usavam algodão branco.

Seria perfeitamente agradável para mim
morrer como uma boa menina
cheirando a desinfetante.
Mas tendo dezesseis-anos-nas-calcinhas
morreria cheia de perguntas.

22 de mai. de 2019

A minha mãe é a minha filha:: VALTER HUGO MÃE | 

A minha mãe é a minha filha. Preciso de lhe dizer que chega de bolo de chocolate, chega de café ou de andar à pressa. Vai engordar, vai ficar eléctrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.
Cuido dos seus mimos. Gosto de lhe oferecer uma carteira nova e presto muita atenção aos lenços bonitos que ela deita ao pescoço e lhe dão um ar floral, vivo, uma espécie de elemento líquido que lhe refresca a idade. Escolho apenas cores claras, vivas. Zango-me com as moças das lojas que discursam acerca do adequado para a idade. Recuso essas convenções que enlutam os mais velhos. A minha mãe, que é a minha filha, fica bem de branco, vermelho, gosto de a ver de amarelo-torrado, um azul de céu ou verde. Algumas lojas conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro pessoas que sentem uma alegria bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a Primavera ou só um fim-de-semana fora, servem para que me lembre de trazer um presente. Pais e filhos são perfeitos para presentes. Eu daria todos os melhores presentes à minha mãe.
Rabujo igual aos que amam. Quando amamos, temos urgência em proteger, por isso somos mais do que sinaleiros, apontando, assobiando, mais do que árbitros, fiscalizando para que tudo seja certo, seguro. E rabujamos porque as pessoas amadas erram, têm caprichos, gostam de si com desconfiança, como creio que é normal gostarmos todos de nós mesmos. Aos pais e aos filhos tendemos a amar incondicionalmente mas com medo. Um amigo dizia que entendeu o pânico depois de nascer o seu primeiro filho. Temia pelo azedo do leite, pelas correntes de ar, pelo carreiro das formigas, temia muito que houvesse um órgão interno, discreto, que disfuncionasse e fizesse o seu filho apagar. Quem ama pensa em todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta factura não amam ainda. Passeiam nos afectos. É outra coisa.
Ficar para tio parece obrigar-nos a uma inversão destes papéis a dada altura. Quase ouço as minhas irmãs dizerem: não casaste, agora tomas conta da mãe e mais destas coisas. Se a luz está paga, a água, refilar porque está tudo caro, há uma porta que fecha mal, estiveram uns homens esquisitos à porta, a senhora da mercearia não deu o troco certo, o cão ladra mais do que devia, era preciso irmos à aldeia ver assuntos e as pessoas. Quem não casa deixa de ter irmãos. Só tem patrões. Viramos uma central de atendimento ao público. Porque nos ligam para saber se está tudo bem, que é o mesmo que perguntar acerca da nossa competência e responsabilizar-nos mais ainda. Como se o amor tivesse agentes. Cupidos que, ao invés de flechas, usam telefones. E, depois, espantam-se: ah, eu pensei que isso já tinha passado, pensei que estava arranjado, naquele dia achei que a doutora já anunciara a cura, eu até fiz uma sopa, no mês passado até fomos de carro ao Porto, jantámos em modo fino e tudo.
Quando passamos a ser pais das nossas mães, tornamo-nos exigentes e cansamo-nos por tudo. Ao contrário de quem é pai de filhas, nós corremos absolutamente contra o tempo, o corpo, os preconceitos, as cores adequadas para a idade. Somos centrais telefónicas aflitas.
Queremos sempre que chegue a Primavera, o Verão, que haja sol e aqueçam os dias, para descermos à marginal a ver as pessoas que também se arrastam por cães pequenos. Só gostamos de quem tem cães pequenos. Odiamos bicharocos grotescos tratados como seres delicados. O nosso Crisóstomo, que é lingrinhas, corre sempre perigo com cães musculados que as pessoas insistem em garantir que não fazem mal a uma mosca. Deitam-nos as patas ao peito e atiram-nos ao chão, as filhas que são mães podem cair e partir os ossos da bacia. Porque temos bacias dentro do corpo. Somos todos estranhos. Passeamos estranhos com os cães na marginal e o que nos aproveita mesmo é o sol. A minha mãe adora sol. Melhora de tudo. Com os seus lenços como coisas líquidas e cristalinas ao pescoço, ela fica lindíssima. E isso compensa. Recompensa.
Comemos o sol. Somos, sem grande segredo, seres que comem o sol. Por isso, entre as angústias, sorrimos.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...