25 de jun. de 2020

Minha santa constância :: Noemi Jaffe

minha santa constância consoladora dos desconsolados, olhai por nós. olhai pelos cachorros peregrinando as ruas, procurando magotes de comer; olhai pela mulher que veio aqui hoje, na porta de casa, pedir dinheiro ou comida; olhai pelos velhos sozinhos, nas casas cansadas, assistindo uma tv que não pega bem; olhai pelos pipoqueiros das portas de cinema, cujos carrinhos descansam nos seus quintais; olhai pelas poltronas vazias dos cinemas e pela faxineira que tira o pó que se acumula sobre elas; olhai pelos garçons com seu paletó branco pendurado no cabide mais bonito do armário; olhai pelo garoto que guarda os carros na rua e que agora está pensando no sonho de ontem à noite; olhai pelo motorista de ônibus da linha 856R10 sentido Socorro, que acabou de parar na Rua Aurélia, onde subiu uma senhora cansada; olhai pela enfermeira Jurema, que chegou em casa agora mesmo e está preparando uma sopa reforçada com alho poró e que a faz lembrar da mãe, que mora em Uberaba: olhai pela cabeleireira que tinha finalmente comprado uma tesoura nova vinda do japão, que agora está na gaveta do criado-mudo; olhai pela dançarina de cabaré, que já repetiu o mesmo strip-tease dezesseis vezes para o seu marido; olhai também por mim, minha santa constância, para que eu também me lembre de por mais maizena no doce de ameixa e damasco para que a torta do joão possa ficar mais durinha do que ficou hoje à tarde.

23 de jun. de 2020

Poema : : Herberto Helder

irmãos humanos que depois de mim vivereis,

eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,

fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,

porque nestas idades já não nunca,

nem leituras embrumadas,

nem crenças, nem política das formas, nem poemas no futuro, nem

visitas extraterrestres de mulheres

exorbitantemente

nuas, cruas, sexuais, luminosas,

só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,

é como trabalhar: stanca,

lavorare stanca,

queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e das rosas,

e só tínhamos que perder a alma,

hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,

enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!

livros, je les aí lus tous, e como de costume a carne é insondável,

estou mais pobre do que ao comêço,

e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,

meia volta, e já era,

irmãos futuros do gênio de Villon e do meu gênero baixo,

não peço piedade, apenas peço:

não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,

inclitamente vergonhosa,

que em testamento vos deixou esta montanha de merda:

o mundo como vontade e representação que afinal é como era,

como há-de ser: alta,

alta montanha de merda — trepai por ela acima até à vertigem,

merda eminentíssima:

daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,

cada qual obrando a sua própria magia:

merda que há-de medrar melhor na memória do mundo

Servidões, 2013.

22 de jun. de 2020

Somente para seus olhos de Andrea Dutra


Antonio Canova, Cupid and Psyche (detalhe), 1786-93 

eu guardo o nosso segredo como se guarda, escondida no fundo da gaveta, uma jóia dentro de uma caixa forrada de veludo, enrolada no lenço de seda. ou como se perde, entre as folhas de um livro, uma folha seca que a gente pegou no chão daquele dia especial de outono. um dia a gente abre o livro e dá de cara com a cena. guardo os instantâneos da nossa vida na retina, milhares de quadros por segundo. não tiramos nenhuma foto juntos, mesmo qdo o sol listrava de cor de rosa o céu azul do arpoador. não postamos nossos pés sujos de areia no instragram. a gente anda na rua sem dar as mãos, mas trocamos olhares. não vamos publicar nenhuma das nossas felicidades, não vamos postar nada. não temos amigos em comum, não moramos na mesma cidade. nós moramos na nuvem. agora, falamos menos. nos olhamos mais. sorrimos, e ficamos calados, lado a lado. a paz reina. qdo nos vemos vem lua vai sol vem noite vai dia. somos completamente.

21 de jun. de 2020

De Valter Hugo Mãe para Marcelino Freire:Marcelino, tenho medo de voltar ao seu país porque cresci relutante para ser adulto e sei que me mantenho em tantas coisas apenas uma criança.

Marcelino, tenho medo de voltar ao seu país porque cresci relutante para ser adulto e sei que me mantenho em tantas coisas apenas uma criança. Julgo que saio à rua ainda com a alegria de encontrar alguém com quem, de algum modo, possa pressentir a alegria que existia quando estávamos apenas a brincar. Eu não sei estar sozinho. Não aprecio a solidão, gosto das pessoas e não há como curar minha natureza para gostar delas. Mas agora tenho medo do seu país que eu amo. Fiquei toda a vida sonhando ser português e brasileiro, para pertencer a Machado de Assis e Fernando Pessoa. Sonhei que meu orgulho teria papel passado, como quem casa consciente, dedicado, de amor profundo, para toda a eternidade. Eu não previ este medo. Fico desolado.

Estão proibindo as pessoas de serem negras, Marcelino, proibiram de ser mulheres, Marcelino, agora decidiram proibir de ser criança e eu sabia que haveria alguma coisa que ainda me pegaria. Por isso, há muito que eu já brigava pelos negros e há muito que eu já brigava pelas mulheres, eu já brigava pelos viados todos e pelas pessoas sem explicação, tanta gente que só é, sem ter muito como entender ou fazer entender, e quer apenas estar em paz. Eu dei de barato tanta coisa sobre a paz que talvez tenha esquecido de estudar corações, o verdadeiro lugar da guerra. Sou muito despreparado. Passei pelo tempo buscando o deslumbre e vi a melhor versão de cada instante, não vi que medravam no escuro as piores intenções, os ódios que inviabilizam a humanidade. Eu, sinceramente, não vi, Marcelino.

Caminhei nessas ruas todas, tantos Estados, tantas capitais, e eu não dei conta desse ódio. Notei os sorrisos, o samba, o jeito generoso das garotas e de alguns garotos olhando para minha pouca beleza, eu notei os livros, tanta Literatura maravilhosa e a obra do Tunga e Artur Bispo do Rosário bordando as vestes para alindar seu encontro com Deus. Marcelino, no Brasil eu senti invariavelmente que Deus era possível. Sabe quando você se depara com algo perfeito e isso só pode ser graça de uma inteligência superior? Eu vi uma arara azul gigante, devia ter mais de um metro, e ela era mesmo um atributo mágico do mundo, estava livre no cimo de uma árvore na floresta amazônica.

Naquele encontro, eu consumei tudo, Guimarães Rosa e Elza Soares, Tarsila do Amaral e Fernanda Montenegro mais Marília Pêra e Walter Salles, e Darcy Ribeiro mais Heitor Villa-Lobos, e Cartola com Cildo Meireles e Adriana Varejão. Mais Gal Costa e Mônica Salmaso e Paulo Freire lendo a mão de Chico César genial. Eu entendi que Brasil significa beleza e uma profunda esperança. Juro. Parecia uma experiência mística, como se algum espírito me informasse e eu virasse um mensageiro sagrado. Eu elogiei o Brasil em todas as ocasiões porque eu acreditei, e acreditei que minha mensagem era sagrada. Você acha que um espírito me enganaria? Viria sobre mim de propósito para me iludir?

Marcelino, eu não consumei minha adultez, sou apenas um menino, fui sempre ao seu país para encontrar mais amigos e brincar um pouco de ser feliz. Lembra de gostarmos tanto de Manoel de Barros? Eu sei exatamente a razão de gostar tanto da poesia de Manoel de Barros. Ele usa pássaro e amigos e seus versos foram os melhores brinquedos. Minha história é rigorosamente igual. Não tinha muito mais. Pais, irmãos, amigos, os pássaros voando, versos. O lugar de guardar tudo é o verso. O único sentido de ter verso é amar gente e cuidar de pássaro livre.

Estão atirando sobre as crianças e alguém me diz que apenas as negras, são apenas as crianças negras, mas eu duvido que parem por aí. Nós, as crianças mais claras não estamos na linha do tiro? Nem que seja por vergonha, vamos morrer também se não dissermos nada, se não fizermos nada. E se as crianças negras viraram proibidas, que legitimidade teremos nós? Sabe, Gilberto Freyre explicou tão certinho que os portugueses são os mestiços da Europa. Eu tenho sangue árabe, africano e europeu. Sou uma porção de cada coisa e minha pena é não lembrar, só minhas células sabem.

Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser uma lição resplandecente.
Você sabe a razão para rejeitarem os negros para as periferias? Eu não descobri. As casas do centro não têm tamanho para negros? Eles são maiores? Aumentam quando dormem? Quando sonham? Ficam derrubando paredes, perigando as fundações dos prédios? Eu acho que não. Eu vi um moço entrando na livraria à minha frente, coube na porta melhor do que eu. Você acha que tem alguém obrigando a que ele corra para a periferia depois de pagar o seu livro? Eu não posso acreditar. Que pena que eu não falei com ele, devia ter perguntado. Talvez me contasse de como fica infinito sonhando, ao ponto de perturbar o silêncio, tremer o prédio, causar fumo. Você já pensou se nossos sonhos também fizessem isso? Eu ia querer, Marcelino. Eu ia querer que meus sonhos fossem tão grandes. Mas sonho só com a paz. Estar sossegado com minha família e meus amigos. Notar os pássaros voando.

Marcelino, façamos uma jura de não morrer durante o plano de nos matarem. Não somos senão ternuras gigantes, guerreiros açucarados, eu entendi que nós precisamos de um pacto poético para embravecer nossa cidadania. Você, que é meu amigo e escritor que tanto admiro, não me falte nunca desse lado. Cuide de Chico Buarque e de Caetano Veloso, por favor, em qualquer cabeça sã do mundo eles representam o Deus possível. Cuide de Maria Bethânia. De Sônia Braga. Diga a Davi Kopenawa e a Ailton Krenak que a floresta vai sempre amá-los, diga que a arara me garantiu. Marcelino, fico ouvindo Rodrigo Amarante e quase ainda acredito em tudo outra vez (Rodrigo é perfeito. Poderia ser a própria arara). Quase perco o medo. Vista também sua roupa de super-herói e sobreviva. Você tem de manter a maravilha do Brasil. Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser uma lição resplandecente, e vamos ficar mais belos que os modelos nos filmes gringos. Vamos, sim, Marcelino.

Haveremos de devolver o futuro às crianças. E seremos sempre futuros também. Só quem desistiu passou a ocupar seu canto no passado. Marcelino, reassumo meu compromisso com a esperança. Vou escolher sempre minha vida como lugar de semente. No meu medo, Marcelino, muita coragem vai germinar.

15 de jun. de 2020

INSTRUÇÕES PARA ESQUIVAR O MAU TEMPO :: Paco Urondo (Santa Fe, Argentina 1930 - 17 de junio de 1976)

Em primeiro lugar, não se desespere e em caso de agitação não siga as regras que o furacão quererá lhe impor.
Refugie-se em casa e feche as trancas quando todos os seus estiverem a salvo.
Compartilhe o mate e a conversa com os companheiros, os beijos furtivos e as noites clandestinas com quem lhe assegure ternura.
Não deixe que a estupidez se imponha.
Defenda-se.
Contra a estética, ética.
Esteja sempre atento.
Não lhes bastará empobrecê-lo, e quererão subjugá-lo com sua própria tristeza.
Ria ostensivamente.
Tire sarro: a direita é mal comida.
Será imprescindível jantar juntos a cada dia até que a tormenta passe.
São coisas simples, mas nem por isso menos eficazes.
Diga para o lado bom dia, por favor e obrigado.
E tomar no cu quando o solicitem de cima.
Dê tudo o que tiver, mas nunca sozinho.
Eles sabem como emboscá-lo na solidão desprevenida de uma tarde.
Lembre que os artistas serão sempre nossos.
E o esquecimento será feroz com o bando de impostores que os acompanha.
Tudo vai ficar bem se você me ouvir.
Sobreviveremos novamente, estamos maduros.
Cuidemos dos garotos, que eles quererão podar.
Só é preciso se munir bem e não amesquinhar amabilidades.
Devemos ter à mão os poemas indispensáveis, o vinho tinto e o violão.
Sorrir aos nossos pais como vacina contra a angústia diária.
Ser piedosos com os amigos.
Não confundir os ingênuos com os traidores.
E, mesmo com estes, ter o perdão fácil quando voltarem com as ilusões acabadas.
Aqui ninguém sobra.
E, isto sim, ser perseverantes e tenazes, escrever religiosamente todos os dias, todas as tardes, todas as noites.
Ainda sustentados em teimosias se a fé desmoronar.
Nisso, não haverá trégua para ninguém.
A poesia dói nesses filhos da puta.


12 de jun. de 2020

Dia dos Namorados


Em Paris, no Dia dos Namorados, os enamorados colocam um cadeado com seus nomes gravados na Pont des Arts, e jogam a chave no Sena, como um símbolo da força do seu amor eterno. 

10 de jun. de 2020

Olhos parados :: Manoel de Barros

Olhar, reparar tudo em volta, sem a menor intenção de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos pais da gente.
Lembrar que estão longe e ter saudades deles…
Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho.
Rir de coisas passadas. Ter saudade da pureza.
Lembrar de músicas, de bailes, de namoradas que a gente já teve.
Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas que a gente já viu.
Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de fato!
Tirar uma folha de árvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto…
Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar de estar assim esquecido.
Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.

8 de jun. de 2020

Nomear :: Mario Quintana

Utagawa Kunisada II

A Bela e o Dragão

As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos...
Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA.
E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete
agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro do seu papel de
boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLI, o dragão
te seguirá por toda parte como um cachorrinho...

Mario Quintana; Sapato Florido, 1948

Treino e(m) poema (um trecho) :: Kazuo Ohno

Os olhos, abertos assim. Quando o espírito,
de leve, foge por eles, lá de fora chega algo
que se assemelha a um pássaro, um pássaro
feito de espírito – será que ele conseguirá
penetrar no seu espírito sem dificuldade?
Seus olhos estão prontos para permitir sua
entrada? Quando o pássaro está prestes
a entrar, será que você dança com olhos que
o acolhem? Sempre em movimento, com
leveza – é preciso dançar com leveza para
que ele seja acolhido. Como se houvesse
uma porta de entrada e saída do espírito,
uma porta fundamental. Será que o que
nasce com isso é a sua alegria ou a sua
tristeza? O que se passa? No seu ir e vir,
o pássaro bate as asas – é a sua alma que
bate asas de alegria? Ou seria de tristeza?
A realidade muda a todo instante, não é
mesmo? Cuide bem de seus olhos, existem
danças assim, só de olhos. Veja bem, há todo
um mundo que é apenas deles. Então é isso,
vamos tentar com olhos assim.
Traduzido por Tae Suzuki
Treino e(m) poema. N-1 Edições, 2016.

1 de jun. de 2020

A palavra seda de João Cabral de Melo Neto




A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície 
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma, 
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.

João Cabral de Melo Neto In: Quaderna, 1956-1959

28 de mai. de 2020

Madeira-de-sonho :: Adrienne Rich

Na madeira velha, baratucha, riscada, da mesinha da máquina de escrever
há uma paisagem, feita de veios, que só uma criança pode ver
ou o eu mais velho da criança,
uma mulher sonhando quando devia estar a bater à máquina
o último relatório do dia. Se isto fosse um mapa,
pensa ela, um mapa decretado para memorizar
podendo ela talvez percorrê-lo, ele mostra
cordilheira atrás de cordilheira esbatendo-se no deserto nebulento,
aqui e além um sinal de aquíferos
e um possível bebedouro. Se isto fosse um mapa
seria o mapa da última idade da sua vida,
não um mapa de escolhas mas um mapa de variações
sobre a escolha maior. Seria o mapa pelo qual
ela poderia ver o fim das escolhas turísticas,
de distâncias azuladas e arroxeadas de romantismo,
pelo qual ela reconheceria que a poesia
não é revolução mas uma forma de saber
por que tem de vir a revolução. Se esta mesinha de madeira baratucha,
produzida em massa, vinda da Companhia de Gás de Brooklyn,
produzida em massa porém duradoura, presente agora aqui,
é o que é porém um mapa-de-sonho
tão renitente, tão simples,
pensa ela, o material e o sonho podem juntar-se
e isso é o poema e isso é o relatório retardatário.
Traduzido por Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade.
Uma Paciência Selvagem. Editora Cotovia, 2008.

25 de mai. de 2020

Balanço de Débora Siqueira Bueno


L'Etang, c.1796-1875 Jean-Baptiste-Camille Corot 

E aqui estou eu, cansada,
apenas por ter tomado um simples banho.
A alma já estava lavada
das culpas de tempos idos;
o que não quer dizer, de resto,
que tudo tenha sido perdoado.
Minha natureza não permite
o apagamento de alguns dos itens
encarnados na coluna de débitos.
Por vezes impera em mim um fremor de acertos
e quero porque quero a juventude perdida.
Depois amanso, bovina,
remastigo sem amargor o que foi mágoa,
e os restos do viver
não mais me assombram.

11 de mai. de 2020

Casa antiga :: Cecilia Meireles

Forrarei tua casa já tão antiga
Com um papel que imita as paredes de tijolo.
Ficará tão lindo como se estivéssemos na Holanda.

Forrarei tua casa assim, mas por dentro,
De modo que, longe de todas as vistas,
Será como se estivéssemos ao ar livre, no jardim.

E deixarei uma parede quebrada ? não uma porta, não uma janela:
Uma parede quebrada por onde passe um ramo de goiabeira
Carregado de flores e vespas.

Parecerá que estamos sonhando,
E estamos sonhando mesmo,
E parecerá que estamos vivendo,
E a vida não é mesmo um sonho impossível?

4 de mai. de 2020

O Haver :: Vinicius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe. 

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza 
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história. 

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa 
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa 
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade 
De aceitá-la tal como é, e essa visão 
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

15/04/1962


Jardim Noturno: poemas inéditos.  Companhia das Letras - São Paulo, 1993. p. 17.

30 de abr. de 2020

Escambo:: Noemi Jaffe

os minutos que vêm logo depois de acordar, ainda entre o sono e a vigília, são cheios de possibilidades que, assim que a vigília predomina, soam absurdos. durante esses minutos tenho certeza de que vou publicar um livro único sobre o qual ninguém nunca tinha pensado e que vai fazer um sucesso internacional; encontro uma maneira de conseguir visitar minha mãe todos os dias; descubro um jeito de fazer escambo com os melhores restaurantes da cidade: redijo os cardápios e, em troca, eles me oferecem jantares de graça por um ano. não, mais de um ano, quem sabe para sempre. essa brecha de luz embaçada, esse tempo não cronológico, não linear, entre a entrega ao outro e a posse de si mesmo é um momento privilegiado, que eu gostaria de agarrar com os dedos e levar comigo na bolsa. nos momentos chatos do dia, eu o tiraria de lá, vestiria como se fossem óculos e veria o mundo com cores esfumaçadas, brilhantes, engraçadas, do jeito que eu quisesse. 

27 de abr. de 2020

Dicionário das Tristezas Obscuras :: John Koenig

1. Adronitis
Frustrar-se com a quantidade de tempo necessário para se conhecer bem alguém.

 2. Aimonimia
Medo de que aprender o nome de algo – um pássaro, uma constelação, uma pessoa bonita – irá estragar tudo. Transformando uma descoberta do acaso em uma casca conceitual vazia.

3. Altschmerz
Exaustão diante dos problemas que você sempre teve – as mesmas falhas e ansiedades entediantes que vêm lhe atormentando por anos.

4. Ambedo
Tipo de transe melancólico no qual você se torna completamente absorto por pequenos detalhes sensoriais – pingos de chuva escorrendo pela janela, árvores altas se dobrando lentamente com o vento, espirais de creme se formando no café –  levando a uma devastadora constatação da fragilidade da vida.

5. Anchorage
Desejo de segurar o tempo enquanto ele passa, como tentar se segurar em uma pedra diante de uma forte correnteza bem no meio de um rio.

6. Anecdoche
Conversa em que todo mundo está falando mas ninguém está ouvindo.

7. Anemoia
Nostalgia de um tempo no qual você nunca viveu.

8. Anthrodynia
Estado de exaustão ao perceber como as pessoas podem ser horríveis umas com as outras.

9. Chrysalism
A tranquilidade confortável de se estar dentro de casa durante uma tempestade.

10. Ecstatic Shock
Onda de energia que surge ao olhar de relance para alguém que você gosta.

11. Ellipsism
Tristeza por não ser capaz de saber como a história vai terminar.

12. Énouement
Sensação agridoce por ter chegado no futuro, visto como tudo aconteceu, mas não poder contar para o seu ‘eu’ do passado.

13. Exulansis
Tendência de desistir ao tentar falar sobre uma determinada experiência porque as pessoas são incapazes de se relacionar com ela.

14. Gnossienne
Momento em que você percebe que alguém que você conhece há anos, tem uma vida interna, privada e misteriosa.

15. Jouska
Conversa hipotética que você repete compulsivamente na sua cabeça.

16. Kairosclerosis
Momento em que você percebe que está feliz – e tenta conscientemente aproveitar essa sensação – o que obriga seu intelecto a identificar e colocar a sensação em um contexto, onde a felicidade lentamente se dissolve até se tornar pouco mais do que um retrogosto.

17. Kenopsia
Atmosfera misteriosa e desamparada de um lugar que normalmente está cheio de gente, mas que agora está abandonado e quieto.
18. Lachesism
Desejo de ser atingido por um desastre – sobreviver a uma queda de avião, ou perder tudo em um incêndio.

19. Lalalalia
Dar-se conta, enquanto fala sozinho, que outra pessoa pode estar escutando, levando-o- a rapidamente transformar as palavras em um cantarolar sem sentido.
2
0. Lapyear
Idade em que você se torna mais velho de quando seus pais eram quando você nasceu.

21. Lethobenthos
Hábito de esquecer o quão importante uma pessoa é para você, até o momento em que você a encontra pessoalmente.

22. Liberosis
Desejo de se importar menos com as coisas.

23. Mimeomia
Frustração ao perceber o quão facilmente você se encaixa em um estereótipo.
24. Monachopsis
Sentimento sutil, porém persistente, de estar fora de lugar.

25. Moriturism
Perceber, como um solavanco durante um momento de insônia, que você vai morrer.
2
6. Nementia
O esforço que vem logo após um momento de distração, para lembrar porque é mesmo que você está se sentindo irritada, ou ansiosa, ou animada.

27. Nodus Tollens
Dar-se conta de que o roteiro da sua vida já não faz o menor sentido.

28. Occhiolism
Dar-se conta da pequenez da sua perspectiva. Com a qual você não tem como chegar a qualquer conclusão significativa sobre o mundo, o passado, ou as complexidades da cultura.

29. Onism
Frustração de estar preso em apenas um corpo que habita apenas um lugar por vez.

30. Opia
Intensidade ambígua de olhar alguém nos olhos, e sentir-se simultaneamente invasivo e vulnerável.

31. Reverse Shibboleth
Prática de atender o telefone com um “alô?” genérico, como se você já não soubesse quem está ligando.

32. Rückkehrunruhe
Sentimento de voltar para casa depois de uma viagem imersiva, e perceber que toda a experiência já está desaparecendo rapidamente da sua consciência.

33. Sonder
Dar-se conta de que cada pessoa tem uma vida tão vívida e complexa quanto a sua – preenchida por ambições, amigos, rotinas, preocupações e loucura.

34. Scabulous
Sentir orgulho de uma cicatriz. Como um autógrafo dado a você pelo mundo.

35. The Bends
A frustração ao perceber que você não está aproveitando uma experiência tanto quanto deveria.

36. Trumspringa
A tentação de sair da sua meta de carreira e se tornar pastor de ovelhas nas montanhas.

37. Vemödalen
Frustração ao fotografar algo incrível quando milhares de outras fotos idênticas já existem.

38. Vemödalen
Medo de que tudo já tenha sido feito.

39. Waldosia
Olhar para todos os rostos em uma multidão, procurando uma pessoa específica que não teria motivo algum para estar aí.

40. Zenosyne
Sensação de que o tempo está passando cada vez mais rápido.


 Não se trata de uma tentativa de condensar emoções e rotulá-las em novos conceitos. O “Dicionário das Tristezas Obscuras” é, em si mesmo, poesia. São ideias e sensações sublimadas em arte.
Não são palavras prisioneiras das limitações próprias do que se define. O trabalho de Koenig é criação, expressão livre e artística, que proporciona a identificação com a subjetividade humana.
fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Dictionary_of_Obscure_Sorrows

26 de abr. de 2020

DANÇA, CLARICE :: Pedro Américo de Farias

Pyotr Konchalovsky
Canta e dança, Clarice!
que afora isso
só a topada nos leva
canta, Clarice
que além disso
o gesto nos traduz
e a fala nos anuncia
dança, Clarice
que o corpo malhado
pelo sim pelo não
desperta melhor
a cada manhã
dança e canta, Clarice!


Coisas: poemas etc. Linguaraz Editor, Recife, 2015.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...