23 de mar. de 2021

Henriette Ronner-Knip




















 

PROENÇA FILHO, Domício. O poema.

Ali 

o fundo do poço. 

Ali 

o caminho novo.

Ali

a terra, o infinito,

a água, o ar e o fogo.

Ali

a luz, o mistério.

Ali 

o silêncio

e a palavra:

Ali

o risco do jogo.

 In:_____. O risco do jogo. São Paulo: Prumo, 2013.

16 de mar. de 2021

O motorneiro de Caxangá :: João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

Ida

Na estrada de Caxangá
todo dia passa o sol,
fugindo de seu nascente
porque o chamam arrebol.

A estrada de Caxangá
é sua pista de aviador;
é a pista que o sol percorre
antes de levantar vôo.

A pista de Caxangá
o próprio sol a traçou,
na substância verde e branda
dos engenhos de redor.

Volta

Mas a estrada não pertence
só ao sol aviador.
É também porto de mar
do Sertão do interior.

Possui hotéis para burros,
hospitais para motor,
cemitérios para bondes,
fábricas para o suor.

Mais tudo o que deve haver
num bom porto de vapor:
armazéns, contrabandistas,
fortalezas, guarda-mor.

Ida

Na estrada de Caxangá
tudo passa ou já passou:
o presente e o passado
e o passado anterior;

os engenhos de outros tempos,
de que só nome ficou;
os sítios de casas mansas,
que agonizam sem rancor;

os quintais de sombra doce
com frutas do mesmo teor,
onde hoje carrocerias
aguardam seus urubus.

Volta

Mas na estrada de Caxangá
nada de vez já passou:
o verde das canas sobra
nos campos de futebol

e ainda nas oficinas
poças do antigo frescor
dos quintais sobram nas úmidas
manchas de óleo de motor:

que a estrada é também a cauda
por onde, ainda em vigor,
o Recife arrasta as coisas
que do centro eliminou.

Ida

Na estrada de Caxangá,
depois que a inaugura o sol,
pares os mais estranhos
todo o dia passam por;

pares como o da raposa
casada com o rouxinol
ou o dos bondes circulando
por entre carros de boi;

caminhões entre galinhas
calam ferralha e furor
e sempre se vê um vaqueiro
olhando um taco de golf.

Volta

Mas na estrada de Caxangá
nem tudo tem tal teor;
por ela passa também
uma gente mais sem cor:

retirantes (sempre a pé)
tirados de todo suor;
imigrantes (de automóvel)
suando, porém de calor;

namorados que passeiam
amadurecendo o amor;
gente que não a passeia,
passa-a, simples corredor,

Ida

A estrada de Caxangá
é também trilhos do sol
(que nem sempre tem o sol)
urgências de aviador):

de cada lado dos quais
um trem de taipa parou,
um trem de casas que lembram
vagões, sem tirar nem pôr;

um trem de casas-vagões
cada um com sua cor
e levando nas janelas
latas por jarros de flor.

Volta

Mas o trem de casas-vagões
passa ou é passado por?
como poder distinguir
do passado o passador?

se na estrada tudo passa
e nada de vez passou?
como saber se é a gente
ou as casas-trem o andador?

ou quem sabe? a própria estrada
rolando com um propulsor?
(pois dela sobe incessante
e subterrâneo rumor).




11 de mar. de 2021

Negro forro :: Adão Ventura (1939 – 2004)

Minha carta de alforria

Não me deu fazendas,

Nem dinheiro no banco,

Nem bigodes retorcidos.

Minha carta de alforria

Costurou meus passos

Aos corredores da noite de minha pele.


10 de mar. de 2021

Num meio-dia de fim de Primavera :: Fernando Pessoa (Alberto Caeiro )

Num meio-dia de fim de Primavera 

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

 

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas —

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

 

Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!

 

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o Sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas

Que vão em ranchos pelas estradas

Com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.

 

A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

 

Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou —

«Se é que ele as criou, do que duvido.» —

«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres.»

E depois, cansado de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

E eu levo-o ao colo para casa.

 

……

 

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

 

E a criança tão humana que é divina

É esta minha quotidiana vida de poeta,

E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja do que for,

Parece falar comigo.

 

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.

 

A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

 

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.

 

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

No degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fosse todo um universo

E fosse por isso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.

 

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens

E ele sorri, porque tudo é incrível.

Ri dos reis e dos que não são reis,

E tem pena de ouvir falar das guerras,

E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos mares.

Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer

E que anda com a luz do Sol

A variar os montes e os vales

E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

 

Depois ele adormece e eu deito-o.

Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até ele estar nu.

 

Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.

 

……

 

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

 

……

 

Esta é a história do meu Menino Jesus.

Por que razão que se perceba

Não há-de ser ela mais verdadeira

Que tudo quanto os filósofos pensam

E tudo quanto as religiões ensinam?

s.d.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

 - 32.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Presença, nº 30. Coimbra: Jan.-Fev. 1931.

5 de mar. de 2021

Humano :: Pedro Tierra

 Humano não é o impulso

de partilhar a sorte de alguém,
cujo rosto nunca vimos,
mas por algum sinal do sangue
na parede ou no destino
reconhecemos irmão?

Quem de nós ignora
que morremos um pouco
no corpo de quem tomba 
ao nosso lado, alvo de um balaço,
ou sufoca a caminho do hospital? 

Afinal, o que foi feito do berço
de águas e verdes e afetos
que imaginávamos cultivar?
O que foi feito dos sons
do surdo e do tamborim,
da sanfona, triângulo e zabumba,
da viola sertaneja
que nos acalentaram
e desenharam o mapa
dos nossos corações?

Devastado pela dor e pelo ódio,
já não o reconhecemos como o lugar
que moldamos para nascer e amar
na geografia afetiva da alma.

A palavra do poeta seja sopro
sobre a brasa adormecida
de nossa indignação.
E possa acender as chamas
da ira diante do intolerável.

Não temer a ira!
A sagrada explosão da ira
diante do injusto
é que nos faz humanos!

Pergunto aos palácios de vidro
erigidos pelas mãos
dos pedreiros candangos: 
que país será construído
sobre os ossos dos povos
condenados ao matadouro?

Guarani, Kaiowá, Yanomami,
Krenak, Cinta-larga, Tikuna,
Karajá, Suruí, Caiapó, Rikbatsa,
Tapirapé, Kaxinawá, Parakanã, Kamaiurá…

Os Xavante,
sobreviveram ao facão,
ao garimpo e aos massacres.
Às roupas contaminadas com sarampo,
à ferocidade do latifúndio,
devorando veredas e buritizais.
Sobreviverão alcançados
pela maldição do vírus
e pelo silêncio cúmplice dos genocidas?

Ouço na Esplanada
sob o violento azul do inverno
de nossas desesperanças
um difuso clamor.
Que minha voz ecoe o pranto
das mães Yanomami
em busca dos corpos
de seus filhos enterrados. 

A morte aqui tem nome e lugar:
favelas, mocambos, aldeias, quebradas. 

O inverno já nos alcança
enquanto ainda buscamos flores
da primavera pública que se perdeu…
para coroar a tumba dos encantados
nessa semeadura de cruzes.

Hoje, cinquenta e seis mil mortos,
sufocados pela peste,
batem à porta do genocida.
Quem responderá pelas vidas
que a indiferença
transformou em cruzes? 

O holocausto é real.
Os nomes são reais.
A dor é real. O luto é real.
Quem responderá por eles?

Sobre nós o sol
e o olho do drone.
O olho do drone não chora,
não conhece o sal das lágrimas.

Registra a morte, apenas.
Uma geométrica colmeia de assombros
cavada no barro vermelho
do coração do país. 

O olho do drone registra o plantio
para entregar um dia aos segadores
a sinistra colheita da morte.

O país dos abraços
aprende na dor
das distâncias medidas,
um novo idioma de gestos:
Eu te amo,
mas não te toco.
Eu te amo
e porque te amo
não te toco.

Contra o escárnio,
que a palavra do poeta
seja sopro e se faça vento
sobre a brasa adormecida
de nossa indignação.

22 de fev. de 2021

Chidinma Nnoli (1999, Nigeria)


 





PLANEJANDO MINHA VELHICE:: Alba Lucía Hernández Espinosa. ( Certé, Colombia -1970)


Depois de algum tempo perdido
planejei minha velhice.
Talvez um corozo*, um tamarindo,
uma casa próxima do rio.
Escrevendo uma crônica,
vendo a água dos dias correr.
Parecido com a vida de algum gato selvagem.
Construirei um parque para as crianças
e um asilo de velhos
— do qual farei parte —.
Conversarei com meus filhos
um ou outro poema
e haverá um jardim,
uma caminhonete para transportar-me
de um lado a outro
sem parar.


* palmeira

21 de fev. de 2021

A propósito de estrelas :: Adília Lopes

Não sei se me interessei pelo rapaz

por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas

Quem Quer Casar Com a Poetisa?
Quasi Edições, 2001

18 de fev. de 2021

Marianna e Chamilly:: Adília Lopes


Quando partires
se partires
terei saudades
e quando ficares
se ficares
terei saudades

Terei
sempre saudades
e gosto assim

LOPES, Adília. Caderno. Lisboa: & Etc., 2007.

17 de fev. de 2021

Eu que me Aguente Comigo

foto: Clarinda Rodrigues Lucas 


Vi sempre o mundo independentemente de mim. 
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas, 
Mas isso era outro mundo. 
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja. 
Acima de tudo o mundo externo! 
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterônimo de Fernando Pessoa

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...