Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
23 de nov. de 2011
Divagação sobre as ilhas de Carlos Drummond de Andrade
Quando me acontecer alguma pecúnia, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto de latitude e longitude que, pondo-me a coberto dos ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização.
De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja, a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no fundo de sua iluminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o da liberdade nas ilhas. E, contentor do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses que se acomodam à realidade, elidindo-a?
A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago com a graça de uma flor criada para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano. Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse tão amena, repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades de ser no momento exato em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos.
E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos regatos — tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio dela. A mesma solidão existe, com diferentes pressões, nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em terra firme e longa. Resta ainda o argumento da felicidade — “aqui eu não sou feliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua Pasárgada: mas será que se procura realmente nas ilhas uma ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? E só se alcançaria tal mercê, de índole extremamente subjetiva, no regaço de uma ilha, e não igualmente em terra comum?
Quando penso em comprar uma ilha, nenhuma dessas excelências me seduz mais que as outras, nem todas juntas constituem a razão de meu desejo. Sou pouco afeiçoado à natureza, que em mim se reduz quase que a uma paisagem moral, íntima, em dois ou três tons, só que latejante em todas as partículas. A solidão, carrego-a no bolso, e nunca me faltou menos do que quando, por obrigações de ofício, me debruçava incessantemente sobre a vida dos outros. E felicidade não é em rigor o que eu procuro. Não. Procuro uma ilha, como já procurei uma noiva.
*
A ilha me satisfaz por ser uma porção curta de terra (falo de ilhas individuais, não me tentam aventuras marajoaras), um resumo prático, substantivo, dos estirões deste vasto mundo, sem os inconvenientes dele, e com a vantagem de ser quase ficção sem deixar de constituir uma realidade. A casa de campo é diferente. A continuidade do solo torna-a um pobre complemento dessas propriedades individuais ou coletivas, públicas ou particulares, em que todo o desgosto, toda a execrabilidade, toda a mesquinhez da coisa possuída, taxada, fiscalizada, trafegada, beneficiada, herdada, conspurcada, se nos apresenta antes que a vista repare em qualquer de seus eventuais encantos. A casa junto ao mar, que já foi razoável delícia, passou a ser um pecado, depois que se desinventou a relação entre homem, paisagem e moradia. Tudo forma uma cidade só, torpe e triste, mais triste talvez que torpe. O progresso técnico teve isto de retrógrado: esqueceu-se completamente do fim a que se propusera, ou devia ter-se proposto. Acabou com qualquer veleidade de amar a vida, que ele tornou muito confortável, mas invisível. Fez-se numa escala de massas, esquecendo-se do indivíduo, e nenhuma central elétrica de milhões de kw será capaz de produzir aquilo de que precisamente cada um de nós carece na cidade excessivamente iluminada: uma certa penumbra. O progresso nos dá tanta coisa, que não nos sobra nada nem para pedir nem para desejar nem para jogar fora. Tudo é inútil e atravancador. A ilha sugere uma negação disto.
A ilha deve ser o quantum satis selvagem, sem bichos superiores à força e ao medo do homem. Mas precisa ter bichos, principalmente os de plumagem gloriosa, com alguns exemplares mais meigos. As cores do cinema enjoam-nos do colorido, e só uma cura de autenticidade nos reconciliará com os nossos olhos doentes. Já que não há mais vestidos de cores puras e naturais (de que má pintura moderna se vestem as mulheres do nosso tempo?), peçamos a araras e periquitos, e a algum suave pássaro de colo mimoso, que nos propiciem as sensações delicadas de uma vista voluptuosa, minudente e repousada.
Para esta ilha sóbria não se levará bíblia nem se carregarão discos. Algum amigo que saiba contar histórias está naturalmente convidado. Bem como alguma amiga de voz doce ou quente, que não abuse muito dessa prenda. Haverá pedras à mão — cascalho miúdo — que se possa lançar ao céu, a título de advertência, quando demasiada arte puser em perigo o ruminar bucólico da ilha. Não vejo inconveniente na entrada sub-reptícia de jornais. Servem para embrulho, e nas costas do noticiário político ou esportivos há sempre um anúncio de filme em reprise, invocativo, ou qualquer vaga menção a algum vago evento que, por obscuro mecanismo, desperte em nós fundas e gratas emoções retrospectivas. Nossa vida interior tende à inércia. E bem-vinda é a provocação que lhe avive a sensibilidade, impelindo-a aos devaneios que formam uma crônica particular do homem, passada muitas vezes dentro dele, somente, mas compensando em variedade ou em profundeza o medíocre da vida social.
Serão admitidos poetas? Em que número? Se foram proscritos das repúblicas ideais e das outras, pareceria cruel bani-los também da ilha de recreio. Contudo, devem comportar-se como se poetas não fossem: pondo de lado os tiques profissionais, o tecnicismo, a excessiva preocupação literária, o misto de esteticismo e frialdade que costuma necrosar os artistas. Sejam homens razoáveis, carentes, humildes, inclinados à pesca e à corrida a pé, saibam fazer alguma coisa simples para o estômago, no fogão improvisado. Não levem para a ilha os problemas de hegemonia e ciúme.
*
Por aí se observa que a ilha mais paradisíaca pede regulamentação e que os perigos da convivência urbana estão presentes. Tanto melhor, porque não se quer uma ilha perfeita, senão um modesto território banhado de água por todos os lados e onde não seja obrigatório salvar o mundo. A idéia de fuga tem sido alvo de crítica severa e indiscriminada nos últimos anos, como se fosse ignominioso, por exemplo, fugir de um perigo, de um sofrimento, de uma caceteação. Como se devesse o homem consumir-se numa fogueira perene, sem carinho para com as partes cândidas ou pueris dele mesmo, que cumpre preservar principalmente em vista de uma possível felicidade coletivista no futuro. Se se trata de harmonizar o homem com o mundo, não se vê porque essa harmonia só será obtida através do extermínio generalizado e da autopunição dos melhores. Pois afinal, o que se recomenda aos homens é apenas isto: “Sejam infelizes, aborreçam o mais possível aos seus semelhantes, recusem-se a qualquer comiseração, façam do ódio um motor político. Assim atingirão o amor.” Obtida a esse preço a cidade futura, nela já não haveria o que amar.
Chega-se a um ponto em que convém fugir menos da malignidade dos homens do que da sua bondade incandescente. Por bondade abstrata nos tornamos atrozes. E o pensamento de salvar o mundo é dos que acarretam as mais copiosas — e inúteis — carnificinas.
Estas reflexões descosidas procuram apenas recordar que há motivos para ir às ilhas, quando menos para não participar de crimes e equívocos mentais generalizados. São motivos éticos, tão respeitáveis quanto os que impelem à ação o temperamento sôfrego.
A ilha é meditação despojada, renúncia ao desejo de influir e de atrair. Por ser muitas vezes uma desilusão, paga-se relativamente caro. Mas todo o peso dos ataques desfechados contra o pequeno Robinson moderno, que se alongou das rixas miúdas, significa tão-somente que ele tinha razão em não contribuir para agravá-las. Em geral, não se pedem companheiros, mas cúmplices. E este é o risco da convivência ideológica. Por outro lado, há um certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer.
A ilha é, afinal de contas, o refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca destruir. Amemos a ilha.
In: Passeios na ilha: subúrbios da calma.
De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja, a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no fundo de sua iluminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o da liberdade nas ilhas. E, contentor do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses que se acomodam à realidade, elidindo-a?
A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago com a graça de uma flor criada para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano. Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse tão amena, repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades de ser no momento exato em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos.
E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos regatos — tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio dela. A mesma solidão existe, com diferentes pressões, nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em terra firme e longa. Resta ainda o argumento da felicidade — “aqui eu não sou feliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua Pasárgada: mas será que se procura realmente nas ilhas uma ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? E só se alcançaria tal mercê, de índole extremamente subjetiva, no regaço de uma ilha, e não igualmente em terra comum?
Quando penso em comprar uma ilha, nenhuma dessas excelências me seduz mais que as outras, nem todas juntas constituem a razão de meu desejo. Sou pouco afeiçoado à natureza, que em mim se reduz quase que a uma paisagem moral, íntima, em dois ou três tons, só que latejante em todas as partículas. A solidão, carrego-a no bolso, e nunca me faltou menos do que quando, por obrigações de ofício, me debruçava incessantemente sobre a vida dos outros. E felicidade não é em rigor o que eu procuro. Não. Procuro uma ilha, como já procurei uma noiva.
*
A ilha me satisfaz por ser uma porção curta de terra (falo de ilhas individuais, não me tentam aventuras marajoaras), um resumo prático, substantivo, dos estirões deste vasto mundo, sem os inconvenientes dele, e com a vantagem de ser quase ficção sem deixar de constituir uma realidade. A casa de campo é diferente. A continuidade do solo torna-a um pobre complemento dessas propriedades individuais ou coletivas, públicas ou particulares, em que todo o desgosto, toda a execrabilidade, toda a mesquinhez da coisa possuída, taxada, fiscalizada, trafegada, beneficiada, herdada, conspurcada, se nos apresenta antes que a vista repare em qualquer de seus eventuais encantos. A casa junto ao mar, que já foi razoável delícia, passou a ser um pecado, depois que se desinventou a relação entre homem, paisagem e moradia. Tudo forma uma cidade só, torpe e triste, mais triste talvez que torpe. O progresso técnico teve isto de retrógrado: esqueceu-se completamente do fim a que se propusera, ou devia ter-se proposto. Acabou com qualquer veleidade de amar a vida, que ele tornou muito confortável, mas invisível. Fez-se numa escala de massas, esquecendo-se do indivíduo, e nenhuma central elétrica de milhões de kw será capaz de produzir aquilo de que precisamente cada um de nós carece na cidade excessivamente iluminada: uma certa penumbra. O progresso nos dá tanta coisa, que não nos sobra nada nem para pedir nem para desejar nem para jogar fora. Tudo é inútil e atravancador. A ilha sugere uma negação disto.
A ilha deve ser o quantum satis selvagem, sem bichos superiores à força e ao medo do homem. Mas precisa ter bichos, principalmente os de plumagem gloriosa, com alguns exemplares mais meigos. As cores do cinema enjoam-nos do colorido, e só uma cura de autenticidade nos reconciliará com os nossos olhos doentes. Já que não há mais vestidos de cores puras e naturais (de que má pintura moderna se vestem as mulheres do nosso tempo?), peçamos a araras e periquitos, e a algum suave pássaro de colo mimoso, que nos propiciem as sensações delicadas de uma vista voluptuosa, minudente e repousada.
Para esta ilha sóbria não se levará bíblia nem se carregarão discos. Algum amigo que saiba contar histórias está naturalmente convidado. Bem como alguma amiga de voz doce ou quente, que não abuse muito dessa prenda. Haverá pedras à mão — cascalho miúdo — que se possa lançar ao céu, a título de advertência, quando demasiada arte puser em perigo o ruminar bucólico da ilha. Não vejo inconveniente na entrada sub-reptícia de jornais. Servem para embrulho, e nas costas do noticiário político ou esportivos há sempre um anúncio de filme em reprise, invocativo, ou qualquer vaga menção a algum vago evento que, por obscuro mecanismo, desperte em nós fundas e gratas emoções retrospectivas. Nossa vida interior tende à inércia. E bem-vinda é a provocação que lhe avive a sensibilidade, impelindo-a aos devaneios que formam uma crônica particular do homem, passada muitas vezes dentro dele, somente, mas compensando em variedade ou em profundeza o medíocre da vida social.
Serão admitidos poetas? Em que número? Se foram proscritos das repúblicas ideais e das outras, pareceria cruel bani-los também da ilha de recreio. Contudo, devem comportar-se como se poetas não fossem: pondo de lado os tiques profissionais, o tecnicismo, a excessiva preocupação literária, o misto de esteticismo e frialdade que costuma necrosar os artistas. Sejam homens razoáveis, carentes, humildes, inclinados à pesca e à corrida a pé, saibam fazer alguma coisa simples para o estômago, no fogão improvisado. Não levem para a ilha os problemas de hegemonia e ciúme.
*
Por aí se observa que a ilha mais paradisíaca pede regulamentação e que os perigos da convivência urbana estão presentes. Tanto melhor, porque não se quer uma ilha perfeita, senão um modesto território banhado de água por todos os lados e onde não seja obrigatório salvar o mundo. A idéia de fuga tem sido alvo de crítica severa e indiscriminada nos últimos anos, como se fosse ignominioso, por exemplo, fugir de um perigo, de um sofrimento, de uma caceteação. Como se devesse o homem consumir-se numa fogueira perene, sem carinho para com as partes cândidas ou pueris dele mesmo, que cumpre preservar principalmente em vista de uma possível felicidade coletivista no futuro. Se se trata de harmonizar o homem com o mundo, não se vê porque essa harmonia só será obtida através do extermínio generalizado e da autopunição dos melhores. Pois afinal, o que se recomenda aos homens é apenas isto: “Sejam infelizes, aborreçam o mais possível aos seus semelhantes, recusem-se a qualquer comiseração, façam do ódio um motor político. Assim atingirão o amor.” Obtida a esse preço a cidade futura, nela já não haveria o que amar.
Chega-se a um ponto em que convém fugir menos da malignidade dos homens do que da sua bondade incandescente. Por bondade abstrata nos tornamos atrozes. E o pensamento de salvar o mundo é dos que acarretam as mais copiosas — e inúteis — carnificinas.
Estas reflexões descosidas procuram apenas recordar que há motivos para ir às ilhas, quando menos para não participar de crimes e equívocos mentais generalizados. São motivos éticos, tão respeitáveis quanto os que impelem à ação o temperamento sôfrego.
A ilha é meditação despojada, renúncia ao desejo de influir e de atrair. Por ser muitas vezes uma desilusão, paga-se relativamente caro. Mas todo o peso dos ataques desfechados contra o pequeno Robinson moderno, que se alongou das rixas miúdas, significa tão-somente que ele tinha razão em não contribuir para agravá-las. Em geral, não se pedem companheiros, mas cúmplices. E este é o risco da convivência ideológica. Por outro lado, há um certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer.
A ilha é, afinal de contas, o refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca destruir. Amemos a ilha.
In: Passeios na ilha: subúrbios da calma.
Kant (relido) de Orides Fontela
Noite estrelada sobre o rhone Van Gogh
Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.
22 de nov. de 2011
Poema de Dulce María Loynaz
La duda
Era buena la Vida:
Había rosas.
Unos minutos antes me había sonreído un niño...
Pasó volando y me rozó la frente.
No sé por dónde vino
ni por dónde se perdió luego pálida y ligera...
No recuerdo la fecha.
No sabría decir de qué color era ni de qué forma;
no sabría, de veras, decir nada.
Pasó volando... Había muchas rosas...
Y era buena la Vida todavía...
**** ********* ************* ********* ****
Quiéreme entera...
Si me quieres, quiéreme entera,
no por zonas de luz o sombra...
si me quieres, quiéreme negra
y blanca. Y gris, y verde, y rubia,
quiéreme día,
quiéreme noche...
¡Y madrugada en la ventana abierta!
si me quieres, no me recortes:
¡quiéreme toda... o no me quieras!
**** ********* ************* ********* ****
Yo te fui desnudando de ti mismo...
Surgiste de ti mismo; de tu misma
sombra fecunda, intacto y desgarrado
en alma viva...
Yo te fui desnudando de ti mismo,
de los «tus» superpuestos que la vida
te había ceñido...
Te arranqué la corteza -entera y dura-
que se creía fruta, que tenía
la forma de la fruta.
Y ante el asombro vago de tus ojos
surgiste con tus ojos aún velados
de tinieblas y asombros...
Dulce María Loynaz : Poeta cubana nacida en La Habana en 1902 y fallecida en 1997.
Después de Doctorarse en Leyes, colaboró con las más prestigiosas publicaciones de su país y viajó muchas veces por Europa, Asia y América. Su poesía expresa la feminidad con ciertas pinceladas impresionistas y un toque íntimo como el de pocas poetisas caribeñas. En 1986 recibió el premio Nacional de Literatura de su país, en 1991 el Premio de la Crítica y en 1992 el premio Cervantes, convirtiéndose desde entonces en directora de la Academia Cubana de la Lengua.
Después de Doctorarse en Leyes, colaboró con las más prestigiosas publicaciones de su país y viajó muchas veces por Europa, Asia y América. Su poesía expresa la feminidad con ciertas pinceladas impresionistas y un toque íntimo como el de pocas poetisas caribeñas. En 1986 recibió el premio Nacional de Literatura de su país, en 1991 el Premio de la Crítica y en 1992 el premio Cervantes, convirtiéndose desde entonces en directora de la Academia Cubana de la Lengua.
21 de nov. de 2011
Libre te quiero de Agustín García Calvo

Libre te quiero
como arroyo que brinca
de peña en peña,
pero no mía.
Grande te quiero
como monte preñado
de primavera,
pero no mía.
Buena te quiero
como pan que no sabe
su masa buena,
pero no mía.
Alta te quiero
como chopo que al cielo
se despereza,
se despereza,
pero no mía.
Blanca te quiero
como flor de azahares*
sobre la tierra,
pero no mía.
Pero no mía
ni de Dios ni de nadie
ni tuya siquiera.
* Azahar, palabra de origen árabe, significa flor blanca. Es la flor del naranjo, pero también es azahar la flor del limonero, del cidro y otros árboles de cítricos.
20 de nov. de 2011
Pierre Verger, fotografia
Nascido em Paris, dia 4 de novembro de 1902, filho de uma abastada família de origem belga e alemã, Pierre Verger chegou a Bahia em Agosto de 1946 e a partir de então passou a dedicar sua vida ao estudo da forte e complexa relação existente entre a África e a Bahia. Realizou um extenso trabalho etnológico retratando o povo, seus costumes e principalmente as religiões Afro-brasileiras. Seus trabalhos lhe valeram o título de Doutor em Etnologia pela Universidade de Paris, Sorbonne, e também o de Babalaô pelo Candomblé. Seu acervo fotográfico, de valor inestimável, conta com cerca de 65 mil negativos e é uma importante referência para a Fotoetnografia do Brasil.
Nômade, Verger nunca deixou de ser, mesmo tendo encontrado um rumo. A história, costumes e, principalmente, a religião praticada pelos povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas e sua obra. Ele passou a viver como um mensageiro entre esses dois lugares: transportando informações, mensagens, objetos e presentes. Como colaborador e pesquisador visitante de várias universidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou a casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou de fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África.
Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um número maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acervo. Em 1988, Verger criou a Fundação Pierre Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente, assumindo assim a transformação da sua própria casa num centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu.
Nômade, Verger nunca deixou de ser, mesmo tendo encontrado um rumo. A história, costumes e, principalmente, a religião praticada pelos povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas e sua obra. Ele passou a viver como um mensageiro entre esses dois lugares: transportando informações, mensagens, objetos e presentes. Como colaborador e pesquisador visitante de várias universidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou a casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou de fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África.
Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um número maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acervo. Em 1988, Verger criou a Fundação Pierre Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente, assumindo assim a transformação da sua própria casa num centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu.
www.pierreverger.org
19 de nov. de 2011
Ciclo III de Orides Fontela
retornam
sempre e
sempre.
O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma
ser
e
ritmo.
Os pássaros
retornam. Sempre os
pássaros.
A infância volta devagarinho.
Bio-bibliografia
Orides de Lourdes Teixeira Fontela nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1940. Começou a escrever poemas aos sete anos de idade. Como ela mesma dizia, sua família "não tinha base cultural, meu pai era operário analfabeto, de modo que a cultura que peguei foi na base do ginásio, escola normal e leitura". Aos 27 anos, deixou sua cidade natal e veio morar em São Paulo, com dois sonhos na cabeça: entrar na USP e publicar um livro. Cumpriu os dois: fez Filosofia e publicou seu primeiro livro, Transposição , com a ajuda do professor Davi Arrigucci Jr., seu conterrâneo. Depois de formada, foi professora do primário e bibliotecária em escolas da rede estadual de ensino. Publicou ainda Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Trevo 1969-1988 (1988) e Teia (1996). Com Alba , recebeu o prêmio Jabuti de Poesia, em 1983; e com Teia , recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1996. Sempre com dificuldades financeiras, no final da vida, acabou sendo despejada de seu apartamento no centro da cidade e foi viver com sua amiga Gerda na Casa do Estudante, um velho prédio na Avenida São João. Era uma pessoa irritadiça e muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu em Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 4 de novembro de 1998, de insuficiência cardiopulmonar, na Fundação Sanatório São Paulo.
Fascínio pela vida urbana

Fan Ho é fotógrafo e cineasta, nasceu em Xangai em 1937 e imigrou com a família para Hong Kong. Começou a fotografar ainda muito jovem, com uma câmera Rolleiflex. Em grande parte autodidata, tem fotografias históricas que exibem seu fascínio pela vida urbana, suas fotos são excelentes exemplos de composição minimalista e de domínio de luz e sombra. http://en.wikipedia.org
18 de nov. de 2011
O Amador de Camões
Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar; não tenho, logo, mais que desejar, pois em mim tenho a parte desejada. Se nela está minh’alma transformada, que mais deseja o corpo de alcançar? Em si somente pode descansar, pois consigo tal alma está liada. Mas esta linda e pura semidéia, que, como um acidente em seu sujeito, assi co a alma minha se conforma, está no pensamento como idéia: e o vivo e puro amor de que sou feito, como a matéria simples busca a forma.
Camões
A mais bonita de Chico Buarque (1989)
(...)
Bonita
Pra que os olhos do meu bem
Não olhem mais ninguém
Quando eu me revelar
Da forma mais bonita
Pra saber como levar todos
Os desejos que ele tem
Ao me ver passar
Bonita
Hoje eu arrasei
Na casa de espelhos
Espalho os meus rostos
E finjo que finjo que finjo
Que não sei
17 de nov. de 2011
Balada das meninas de bicicleta de Vinícius de Moraes
Bicicletai, meninada
Aos ventos do Arpoador
Solta a flâmula agitada
Das cabeleiras em flor
Uma correndo à gandaia
Outra com jeito de séria
Mostrando as pernas sem saia
Feitas da mesma matéria.
Permanecei! vós que sois
O que o mundo não tem mais
Juventude de maiôs
Sobre máquinas da paz
16 de nov. de 2011
El espejo no miente
El espejo no miente –continúa–; ahí uno va viendo las nuevas arrugas, las bolsas de los ojos... y sin embargo, a veces, a pesar de los años que se tengan, el espíritu de un cuento o de un poema puede seguir siendo joven. Un poema que tiene alegría, que tiene una cosa vital, lo rejuvenece a uno. Lo mismo sucede muchas veces al escribir una historia de amor, aunque sea inventada: uno vuelve a sentir otra vez una cantidad de sentimientos que creía olvidados.
Mario Benedetti
Mario Benedetti
15 de nov. de 2011
No mistério do Sem-Fim
Imagem : Durer
No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.
Cecília Meireles
14 de nov. de 2011
Montevideo
...Cuando la poesía abre sus puertasuna verdad gratuita y novedosarenueva nuestro manso alrededorcuando la poesía abre sus puertastodo cambia y cambiamos con el cambiotodos traemos desde nuestra infanciauno o dos versos que son como un lemay los guardamos en nuestra memoriacomo una reserva que nos hace bien...
Mario Benedetti (1920-2009)
13 de nov. de 2011
12 de nov. de 2011
O Meio de Luiz Tatit
Assim era no princípio
Metáfora pura
Suspensa no ar
Assim era no princípio
Só bocas abertas
Inda balbuciantes
Querendo cantar
Por isso que sempre no início
A gente não sabe como começar
Começa porque sem começo
Sem esse pedaço não dá pra avançar
Mas fica aquele sentimento
Voltando no tempo faria outro som
Porque depois de um certo ponto
Tirando o começo até que foi bom
Por isso é melhor ter paciência
Pois todo começo começa e vai embora
O problema é saber se já foi
Ou se ainda é começo
Porque tem começo que às vezes demora
Que passa um bom tempo
Inda está no começo
Que passa mais tempo
Inda não está na hora
Tem gente que nunca sai do começo
Mas tem esperança de sair agora
Se todo começo é assim
O melhor começo é o seu fim
Um dia ainda há de chegar
Em que todos irão conquistar
Um meio pra não começar
Agora depois do começo
Já estou me sentindo
Bem mais à vontade
Talvez já esteja no meio
Ou começo do meio
Porque bem no meio
Seria a metade
É bom demais estar no meio
O meio é seguro pra gente cantar
Primeiro, acaba o bloqueio
E até o que era feio começa a soar
Depois todo aquele receio
Partindo do meio, podia evitar
Até para as crianças nascerem
Nascendo no meio, não iam chorar
Diria, sem muito rodeio
No princípio era o meio
E o meio era bom
Depois é que veio o verbo
Um pouco mais lerdo
Que tornou tudo bem mais difícil
Criou o real, criou o fictício
Criou o natural, criou o artifício
Criou o final, criou o início
O início que agora deu nisso
Mas tudo tomou seu lugar
Depois do começo passar
E cada qual com seu canto
Por certo ainda vai encontrar
Um meio para nos alegrar
11 de nov. de 2011
O velho de Chico Buarque
O velho sem conselhos
De joelhos
De partida
Carrega com certeza
Todo o peso
Da sua vida
Então eu lhe pergunto pelo amor
A vida iteira, diz que se guardou
Do carnaval, da brincadeira
Que ele não brincou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
Só a caminhada
Longa, pra nenhum lugar
O velho de partida
Deixa a vida
Sem saudades
Sem dívida, sem saldo
Sem rival
Ou amizade
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me diz que sempre se escondeu
Não se comprometeu
Nem nunca se entregou
E diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
E eu vejo a triste estrada
Onde um dia eu vou parar
O velho vai-se agora
Vai-se embora
Sem bagagem
Não sabe pra que veio
Foi passeio
Foi passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco
Mostra um verso manco
De um caderno em branco
Que já fechou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Não
Foi tudo escrito em vão
E eu lhe peço perdão
Mas não vou lastimar
10 de nov. de 2011
Oásis na cidade de Nina Horta
Vocês sentem uma saudade de uma coisa que nunca viram nem tiveram quando enxergam atrás de um portão pequeno e velho uma daquelas casinhas térreas que têm um terraço pequeno na frente, em arco, e a pintura é toda cheia de altos e baixos, como se o pincel fosse puxado para cima a cada pincelada?
São uns oásis que sobram nas cidades, alguma briga por posse, e geralmente não mora ninguém lá, ou só um velho que toma um pouco de conta da coisa que já não tem mais jeito. Na frente, uma bananeira com um cacho ainda bem verde de bananas ou uma goiabeira magra, mas com florzinhas anunciando a fruta.
Você vai andando pelo corredor ao lado até chegar ao fundo, bem em frente do canteiro enlouquecido de remédios. Boldo, alecrim, hortelã. As flores cresceram bonitas, subiram em trepadeiras pelas árvores e as rosas e rosinhas misturam-se com flores de cores nada na moda, coisas de jardim abandonado.
Mas há o poema das galinhas. As galinhas foram feitas para romancear qualquer lugar, dar aquela marca de casa, de gente, de segurança, de esperança. Há a beleza de uma ave andando à sua volta, crista de um vermelho transparente carregando aquele milagre todo do ovo. Por isso, Clarice tornou-se a rainha do Facebook, todo mundo adora uma pessoa que fala de galinhas como se fossem amigas, que entendem a vida das mulheres apesar de não se manifestarem a respeito.
Muita palma de santa Rita, algum dia deve ter estado na moda, retas, duras, enfeitando vasos art déco em salas escuras com cortinas fechadas e cadeiras de espaldar.
Mas, ainda há couves. Couves altas, que vão subindo em busca do sol, nem sei se couve busca sol, mas são duras e crocantes, só arrancar as folhas e colocar numa vasilha com água esperando a hora de serem cortadas bem finas.
No meio do caos tem uma pimenteira, tão cheia de jeito e dengo que deve ser nova, as pimentinhas pequenas e vermelhas, lampejo de saia rodada, de saia de baiana sapeca. Sem esquecer o guaco cheiroso.
Pesquisando com cuidado era capaz de achar mais alguma coisa. Mas só aquilo me serve para imaginar a mulher que um dia viveu ali, feliz, com o marido e os filhos, as vizinhas, a sacola grande de lona que levava para a venda e assinava na caderneta. Chegando em casa tinha um radinho desafinado com um capítulo da novela da Sarita Campos e já começava a cortar a couve na cadeira de balanço. Arroz sobrava sempre do almoço, ia fazer uma sopa de feijão com pão torrado por cima. Depois, uns ovos mexidos de leve, envolvendo a couve e umas fatias quase transparentes de linguiça. O pão bem quente e estalando.
De sobremesa poderiam chupar laranjas doces, do seu Manuel, que plantava de tudo no terreno da frente e vendia para a vizinhança. Um mistério aquele homem sempre sujo de terra, sem família, sem história. Colhia boas alfaces e tinha um caquizeiro chocolate que era o céu.
Olhou pela janela e vinha chegando o filho menor, de calças curtas, o cabelo espetado, as meias três quartos caindo sobre o sapato. Ah, menino, pensou, amanhã vou fazer um empadão de galinha para encher essas canelas finas.
Folha de São Paulo de 10 de novembro de 2011
Quanto maior for a sua própria beleza.
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.
Fernando Pessoa in Livro do desassossego
O vídeo da vovó Magnólia de Jairo Marques
Minha mulher, que lá em casa é minha deusa, compartilhou com os amigos de uma dessas redes que pescam gente, as tais redes sociais, um vídeo que mostrava sua avó, uma típica mineira de palavras curtinhas e de sorriso "facim, facim", contando histórias de vaidades, de saudades, de futebol e de família.
Embora eu não tenha conhecido dona Magnólia, a avó em questão, adorei e me emocionei ao ver aquela senhora sentada em um sofá bem confortável dando uma "entrevista" informal a uma das filhas para ser apreciada a qualquer tempo, inclusive na posteridade, por toda a parentada.
Vó Magnólia usava um roupão cor-de-rosa -quase na mesma tonalidade da flor homônima de seu registro-, óculos grandes e redondos, mas que já pouco serviam, e cabelos irretocáveis, tingidos de castanho. Articulava as ideias com a memória meio barro meio tijolo devido à fúria do Alzheimer, mas nada que comprometesse o conteúdo geral.
Mesmo que por estes dias as câmeras de filmar estejam sempre ao alcance das mãos -há até caneta, botão e broches que gravam tudo em Brasília-, são pouquíssimas as vezes em que os velhos viram "atores" para contar sobre as coisas do mundo, seja de seus mundos, seja de suas coisas.
É bem diferente dos bebês, dos bichinhos e dos engraçados. Esses estão gravados e espalhados por todos os lados, ainda mais no tal universo digital. Não faltam "facebooqueiros" que os postam rotineiramente na internet fazendo fofices, dando cambalhotas desajeitadas, correndo atrás do próprio rabo, tendo atitudes de adultos ou soltando falas anedóticas.
Vovós Magnólias, não as vi muitas. E digo isso para não comprometer a sagacidade de minha memória escrevendo que ela foi a única. Ser velho não tem graça? Ser velho não é bonito? Ser velho não tem alegria? Ser velho não dá o que falar?
Defendo que a mira das lentes seja mais voltada àqueles que a gente ama, àqueles de quem o tempo já não conta a favor, àqueles que justificam de maneira completa a palavra saudade. Mesmo que, rotineiramente, eles digam que "detestam essas coisas modernas", insista, grave escondidinho, brinque de fazer novela, de imitar o Jô Soares entrevistando.
Imagine tirar das gavetas tecnológicas essas lembranças sempre que o coração tiver vontade, que a alma gritar por um banho de recordação. Que delícia seria morrer de rir relembrando o jeito como o vozinho penteava o que chamava de cabelo para, depois, esconder tudo na boina xadrez.
E o que dizer da cena da mãe nervosa balangando as pernas e reclamando do caçula ingrato que não liga há dois dias? Não gravei nem gravaram minha avó na máquina de costura fazendo bainha ou no fogão frigindo seus famosos bolinhos de polvilho. Seria delicioso poder revê-la de formas simples assim, escutar sua voz e encantar-me, mais uma vez, com seus causos já quase esquecidos.
Embora eu não tenha conhecido dona Magnólia, a avó em questão, adorei e me emocionei ao ver aquela senhora sentada em um sofá bem confortável dando uma "entrevista" informal a uma das filhas para ser apreciada a qualquer tempo, inclusive na posteridade, por toda a parentada.
Vó Magnólia usava um roupão cor-de-rosa -quase na mesma tonalidade da flor homônima de seu registro-, óculos grandes e redondos, mas que já pouco serviam, e cabelos irretocáveis, tingidos de castanho. Articulava as ideias com a memória meio barro meio tijolo devido à fúria do Alzheimer, mas nada que comprometesse o conteúdo geral.
Mesmo que por estes dias as câmeras de filmar estejam sempre ao alcance das mãos -há até caneta, botão e broches que gravam tudo em Brasília-, são pouquíssimas as vezes em que os velhos viram "atores" para contar sobre as coisas do mundo, seja de seus mundos, seja de suas coisas.
É bem diferente dos bebês, dos bichinhos e dos engraçados. Esses estão gravados e espalhados por todos os lados, ainda mais no tal universo digital. Não faltam "facebooqueiros" que os postam rotineiramente na internet fazendo fofices, dando cambalhotas desajeitadas, correndo atrás do próprio rabo, tendo atitudes de adultos ou soltando falas anedóticas.
Vovós Magnólias, não as vi muitas. E digo isso para não comprometer a sagacidade de minha memória escrevendo que ela foi a única. Ser velho não tem graça? Ser velho não é bonito? Ser velho não tem alegria? Ser velho não dá o que falar?
Defendo que a mira das lentes seja mais voltada àqueles que a gente ama, àqueles de quem o tempo já não conta a favor, àqueles que justificam de maneira completa a palavra saudade. Mesmo que, rotineiramente, eles digam que "detestam essas coisas modernas", insista, grave escondidinho, brinque de fazer novela, de imitar o Jô Soares entrevistando.
Imagine tirar das gavetas tecnológicas essas lembranças sempre que o coração tiver vontade, que a alma gritar por um banho de recordação. Que delícia seria morrer de rir relembrando o jeito como o vozinho penteava o que chamava de cabelo para, depois, esconder tudo na boina xadrez.
E o que dizer da cena da mãe nervosa balangando as pernas e reclamando do caçula ingrato que não liga há dois dias? Não gravei nem gravaram minha avó na máquina de costura fazendo bainha ou no fogão frigindo seus famosos bolinhos de polvilho. Seria delicioso poder revê-la de formas simples assim, escutar sua voz e encantar-me, mais uma vez, com seus causos já quase esquecidos.
9 de nov. de 2011
Saber de si
Henri Rousseau - La Bohémienne endormie
A noite chegou bruscamente. Meu coração bateu alheio. Sem saber de si.
Livia Garcia Roza
Guardo junto
"Escolho, desdobro, renovo, substituo e traduzo: guardo junto com as minhas coisas e digo que é meu."
Olívia Niemeyer
Olívia Niemeyer nasceu no Rio de Janeiro e atualmente mora em Campinas. Mestra e doutora em linguística aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recebeu orientação de Nair Kremer, Vera Ferro e Carlos Fajardo nas artes visuais. Participa de salões desde 1997. Seu trabalho artístico privilegia formas interrompidas e fragmentadas, focos de dispersão e multiplicidade.
Olívia Niemeyer nasceu no Rio de Janeiro e atualmente mora em Campinas. Mestra e doutora em linguística aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recebeu orientação de Nair Kremer, Vera Ferro e Carlos Fajardo nas artes visuais. Participa de salões desde 1997. Seu trabalho artístico privilegia formas interrompidas e fragmentadas, focos de dispersão e multiplicidade.
8 de nov. de 2011
A verdadeira crise por Vladimir Saflate
Nós: autobiografismos de Olívia Niemeyer
Imagem: Olívia Niemeyer - Nós: autobiografismos
Harold Pinter
7 de nov. de 2011
Papel de arroz
Mira:
as coisas construídas oscilam
numa frágil arquitetura
(os papéis cultivados
em campos
guardarão sempre a memória seca
dos dias alagados).
Também as palavras revelam somente o que escondem:
eis a solução de uma questão
delicada.
Ana Martins Marques
6 de nov. de 2011
Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres de Clarice Lispector
brincos de www.envedette.com.br
Usaria brincos?
Hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples,
alguma coisa modestamente nua...
Clarice Lispector In: Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres
Arco-íris duplo
O Departamento de Meteorologia da Austrália e a Associação Meteorológica e Oceanográfica Australiana divulgaram as fotos que farão parte do seu calendário de 2012. Acima, um arco-íris duplo na praia de Wombarra, em New South Wales.
Com um pouquinho de medo
Descobrir, em qualquer parte do Brasil, uma reserva de escuro e silêncio absolutos.
Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira.
Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
Maria Rita Kehl
Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira.
Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
Maria Rita Kehl
5 de nov. de 2011
Antes de morrer :: Maria Rita Kelh
Muitos anos antes de morrer já estou convencida de que finjo que a vida é literatura. Não vou mudar isso justo antes de morrer. Quem sabe, no máximo, melhorar o enredo. E transitar melhor entre os gêneros.
1) Viver a vida de uma outra mulher, muito diferente de mim. Uma mulher da roça, como eu gostava de brincar na infância. Das que acorda antes do sol, trabalha na horta, dorme ao escurecer, sem luz e sem televisão. Fogão de lenha, bichos no quintal, solidão sem abandono. A mulher que nunca fui na roça que não há.
2) Descobrir, em qualquer parte do Brasil, uma reserva de escuro e silêncio absolutos. Caminhar no escuro no meio das estrelas uma noite inteira. Com um pouquinho de medo: o medo é uma espécie de embriaguez.
3) Gravar um CD cantando, sozinha, músicas das que mais gosto de cantar. Ou, radicalizando, mudar de profissão. Virar cantora. De boate, se é que ainda existem.
4) Ficar amiga do Chico Buarque. Só amiga. Andar a pé pelo Rio conversando com ele, horas a fio. Recordar letras de música, sambas antigos. Contar e ouvir coisas da vida.
5) Conhecer um compositor (não precisa ser o Chico Buarque) que me peça letras para as músicas dele. Virar parceira, ouvir nossos sambas no rádio.
6) Virar artista plástica. Trocar a noite pelo dia em um atelier enorme, brincando com os materiais, com as tintas, com o peso e a densidade da matéria. Encontrar o estranho silêncio da matéria. Desintoxicar a mente do excesso de palavras.
7) Virar escritora de ficção. Acordar todos os dias com saudades de meus personagens, ansiosa para entrar mais uma vez na vida deles.
8) Queimar – isso é urgente – todos os meus diários, dos quinze aos quarenta e cinco anos. Uma fogueira e tanto.
9) Ir a um pai ou mãe de santo para iniciar-me no Candomblé; virar mãe de santo também, receber entidades, aprender a jogar búzios. Gostaria de ter acesso à experiência do inconsciente pré freudiano – o inconsciente revelado a contrapelo da psicanálise.
10) Saber como é a morte. Ficar acordada até o fim. Despedir-me de tudo. Dizer a meus filhos, como o Coelho, do John Updike: “não é tão mau assim”.
4 de nov. de 2011
Pensamento musical
Belle, bonne, sage, plaisante et gente,
A ce jour cy que l'an se renouvelle,
Vous fais le don d'une chanson nouvelle
Dedans mon cuer qui a vous se presente.
De recevoir ce don ne soyés lente,
Je vous suppli, ma doulce damoyselle;
(Belle, bonne, sage...)
Car tant vous aim qu'aillours n'ay mon entente,
Et sy scay que vous estes seulle celle
Qui fame avés que chascun vous appelle:
Flour de beauté sur toutes excellente.
(Belle, bonne, sage...)
3 de nov. de 2011
O bom marido
Nunca vou esquecer a palavra ingrediente
no plural.
À tarde, Arabela conversava
com Tereza na sala de visitas.
Passei perto, ouvi:
- Custódio tem todos os ingredientes
para ser um bom marido.
- Quais são os ingredientes ?
a outra lhe pergunta.
Arabela sorri, sem responder.
Guardo a palavra com cuidado,
corro ao dicionário:
continua o mistério.
Carlos Drummond de Andrade
2 de nov. de 2011
Tenhamos paciência, andorinhas curtas
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
Mário de Andrade
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