Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
6 de jul. de 2013
5 de jul. de 2013
Arte de Ser Feliz de Cecília Meireles
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz. Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? quem as comprava? em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? e que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
MEIRELES, Cecília. Arte de Ser Feliz. In: ANDRADE, Carlos Drummond de et alii . Quadrante. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962. p. 13-15)
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
MEIRELES, Cecília. Arte de Ser Feliz. In: ANDRADE, Carlos Drummond de et alii . Quadrante. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962. p. 13-15)
4 de jul. de 2013
Filosofia de Pablo Neruda
Queda probada la certeza Fica provada a certeza
del árbol verde en primavera da árvore verde na primavera
y de la corteza terrestre: e do córtex terrestre
nos alimentan los planetas – alimentam-nos os planetas
a pesar de las erupciones apesar das erupções
y el mar nos ofrece pescados e o mar nos oferece peixes
a pesar de sus maremotos: apesar de seus maremotos –
somos esclavos de la tierra somos escravos da terra
que también es dueña del aire. que também é dona do ar.
Paseando por una naranja Passeando por uma laranja
me pasé más de una vida eu passei mais de uma vida
repitiendo el globo terrestre: repetindo o globo terrestre
la geografía y la ambosía: – a geografia e a ambrosia –
los jugos colos de jacinto os jogos cor de jacinto
y un olor blanco de mujer e um cheiro branco de mulher
como las flores de la harina como as flores da farinha.
No se saca nada volando Nada se consegue voando
para escaparse de este globo para se escapar deste globo
que te atrapó desde nacer. que te aprisionou ao nascer.
Y hay que confesar esperando E há que confessar esperando
que el amor y el entendimiento que o amor e o entendimento
vienen de abajo, se levantan vêm de baixo, se levantam
y crecen dentro de nosotros e crescem dentro de nós
como cebollas, como encinas, como cebolas, azinheiras,
como galápagos o flores, como tartarugas ou flores,
como países, como razas, como países, como raças,
como caminos y destinos. como caminhos e destinos.
del árbol verde en primavera da árvore verde na primavera
y de la corteza terrestre: e do córtex terrestre
nos alimentan los planetas – alimentam-nos os planetas
a pesar de las erupciones apesar das erupções
y el mar nos ofrece pescados e o mar nos oferece peixes
a pesar de sus maremotos: apesar de seus maremotos –
somos esclavos de la tierra somos escravos da terra
que también es dueña del aire. que também é dona do ar.
Paseando por una naranja Passeando por uma laranja
me pasé más de una vida eu passei mais de uma vida
repitiendo el globo terrestre: repetindo o globo terrestre
la geografía y la ambosía: – a geografia e a ambrosia –
los jugos colos de jacinto os jogos cor de jacinto
y un olor blanco de mujer e um cheiro branco de mulher
como las flores de la harina como as flores da farinha.
No se saca nada volando Nada se consegue voando
para escaparse de este globo para se escapar deste globo
que te atrapó desde nacer. que te aprisionou ao nascer.
Y hay que confesar esperando E há que confessar esperando
que el amor y el entendimiento que o amor e o entendimento
vienen de abajo, se levantan vêm de baixo, se levantam
y crecen dentro de nosotros e crescem dentro de nós
como cebollas, como encinas, como cebolas, azinheiras,
como galápagos o flores, como tartarugas ou flores,
como países, como razas, como países, como raças,
como caminos y destinos. como caminhos e destinos.
3 de jul. de 2013
As pedras são muito mais lentas - Arnaldo Antunes
Joan Miró: Hirondelle Amour
A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011
2 de jul. de 2013
José de Almada Negreiros "A sombra sou eu"
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
1 de jul. de 2013
Di Cavalcanti (1897-1976)
"... A arte de Di Cavalcanti, bem como sua pessoa humana, bem como seu método d ofício, está fundada na liberdade. Uma vocação de liberdade que tem sido a linha dominante de sua vida que fez dele - em certa época o único pintor social militante do Brasil - um revoltado contra as imposições drásticas dos partidos, um homem que sempre examina seus problemas, e que atingiu um elevado nível de consci6encia artística. Debaixo de apar6encias ligeiras, a carreira do Di Cavalcanti tem assumido aspectos patéticos de alto drama intelectual: este homem inquieto tem vivido em encruzilhadas, à procura de soluções plásticas, políticas e críticas, debatendo continuamente o caso do Brasil, o caso da anarquia universal e seu próprio caso que se misturou com outros.
Eis o aparente paradoxo de Emiliano Di Cavalcanti: este grande individualista é u m pintor social, este boêmio dispersivo é um trabalhador obstinado, este copiador de histórias pitorescas é um espírito sério capaz de disciplina. O homem Di Cavalcanti é rico em surpresas e imprevistos, solidário com outros no sofrimento e na alegria. Sabe que o prazer sempre foi um elemento importante na criação da obra de arte. Sabe que o prazer encerra também conflitos, abismos, contradições. Daí o aspecto triste, às vezes mesmo sinistro, de certos personagens festeiros de seus quadros. Todos nós sabemos que o substrato da alegria brasileira é carregado de tristeza. Em alguns dos melhores momentos de sua carreira Di Cavalcanti atingiu pela força da verdade plástica o cerne da nossa própria verdade metafísica na unificação de seus contrastes: de fato a gente brasileira foi ali recriada em síntese erudita...".
Murilo Mendes
1949
Crônicas de Viagem de Cecília Meireles
E o viajante apenas inclina a cabeça nas mãos, na sua janela, para entender dentro de si o que é sonho
e o que é verdade. E todos os dias são dias novos e antigos, e todas as ruas são de hoje e da
eternidade: e o viajante imóvel é uma pessoa sem data e sem nome, na qual repercutem todos os
nomes e datas que clamam por amor, compreensão, ressurreição. (1999, p. 104)
MEIRELES, Cecília. Crônicas de Viagem, vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
30 de jun. de 2013
Tenho uma folha branca de ANA CRISTINA CESAR
Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite:
tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.
29 de jun. de 2013
Eucanaã Ferraz, "Carícia"
Chagall, 1931
Demore-se no carinho,
de modo que no rosto do outro
vá a mão como se não fora
voltar. Repita,
demorando-se mais,
de modo que a mão descanse
naquele rosto, como se,
e se esqueça de que.
Repita, demore-se no carinho
como se a mão desse adeus,
agarrada ao rosto que se vai.
Outra vez: repita,
demorando-se mais
e mais, como se a mão bebesse
daquele rosto para, saciada, dormir
ali mesmo, ao pé da fonte.
Como rasurar a paisagem :: Ana Cristina César
a fotografia é um tempo morto
fictício retorno à simetria
secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta
28 de jun. de 2013
Palavras aladas de Marina Colassanti
Madeleine Colaço
Silêncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E de que, a cada dia, mais parecia gostar. Qualquer ruído, dizia, era faca em seus ouvidos.
Por isso, muito jovem ainda, mandou construir altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro. Agora sim, nenhum som entrava no castelo.O mundo podia gritar lá fora, que dentro nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se muda, sem que rolar de trovão ou correr de vento perturbassem a serenidade das sedas.
-Ouçam que preciosidade!- dizia o rei.E toda a corte se calava ouvindo embevecidamente coisa alguma.
Mas se os sons não podiam entrar, verdade é que também não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou porta esquecida aberta. Pois se ainda era possível escapar às paredes, nada os libertava da redoma.
Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato arranhou os corredores.
E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem depressa, uma galinha.
Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do rei. Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre trancados no mais profundo calabouço.
Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir cortinas e a rastejar sob os móveis. A audição certeira abatia exclamações em pleno vôo, algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de monóculo fez montinhos de monossílabos. E houve até quem garantisse ter apanhado entre os dedos o delicado não de uma donzela. Enfim, divertiram-se tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual de Caça à Palavra.
De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sons, enchia-se o calabouço de conversas. A tal ponto que o momento chegou em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o Mordomo Real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos esquecidos do primeiro andar.
Foi portanto por acaso que o rei passou frente a um desses cômodos. E passando ouviu um murmúrio, rasgo de conversa. Pronto a reclamar, já a mão pousava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de joelhos talvez, derramava sua paixão aos pés da amada.
A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada do passado, vinha agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.
-Que se abram as portas!- gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E escancarou os batentes à sua frente.
-Que se derrube a redoma!- lançou então o rei com todo o poder de seus pulmões. - Que se abatam os muros!
E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar, subindo, planando, pássaro-grito que no azul se afasta, trazendo atrás de si em revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopéias, discursos e recados, e ao longe maritacas! Um bando de risadas. Sons que no espaço se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se vão.
COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. São Paulo: Global, 1999.
Por isso, muito jovem ainda, mandou construir altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro. Agora sim, nenhum som entrava no castelo.O mundo podia gritar lá fora, que dentro nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se muda, sem que rolar de trovão ou correr de vento perturbassem a serenidade das sedas.
-Ouçam que preciosidade!- dizia o rei.E toda a corte se calava ouvindo embevecidamente coisa alguma.
Mas se os sons não podiam entrar, verdade é que também não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou porta esquecida aberta. Pois se ainda era possível escapar às paredes, nada os libertava da redoma.
Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato arranhou os corredores.
E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem depressa, uma galinha.
Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do rei. Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre trancados no mais profundo calabouço.
Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir cortinas e a rastejar sob os móveis. A audição certeira abatia exclamações em pleno vôo, algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de monóculo fez montinhos de monossílabos. E houve até quem garantisse ter apanhado entre os dedos o delicado não de uma donzela. Enfim, divertiram-se tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual de Caça à Palavra.
De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sons, enchia-se o calabouço de conversas. A tal ponto que o momento chegou em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o Mordomo Real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos esquecidos do primeiro andar.
Foi portanto por acaso que o rei passou frente a um desses cômodos. E passando ouviu um murmúrio, rasgo de conversa. Pronto a reclamar, já a mão pousava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de joelhos talvez, derramava sua paixão aos pés da amada.
A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada do passado, vinha agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.
-Que se abram as portas!- gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E escancarou os batentes à sua frente.
-Que se derrube a redoma!- lançou então o rei com todo o poder de seus pulmões. - Que se abatam os muros!
E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar, subindo, planando, pássaro-grito que no azul se afasta, trazendo atrás de si em revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopéias, discursos e recados, e ao longe maritacas! Um bando de risadas. Sons que no espaço se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se vão.
COLASANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. São Paulo: Global, 1999.
27 de jun. de 2013
Narciso de Manuel António Pina
e já estou tão próximo de ti
que sou eu quem me chama e quem te chama
e é o meu amor que em ti me ama.
Se me olhas sou eu que me contemplo
longamente através do teu olhar
e moro em ti e sou eu o lugar
e demoro-me em ti e sou o tempo.
Eu sou talvez aquilo que me falta
(a alma se sou corpo, o corpo se sou alma)
em ti, e afogo-me na tua vida
como na minha imagem desmedida:
Sol, Lua, água, ouro,
horizontalidade, concordância,
indiferente ordem da infância,
união conjugal, morte, repouso.
26 de jun. de 2013
Lembrança do mundo antigo - Carlos Drummond de Andrade
Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
25 de jun. de 2013
Albrecht Dürer (Nuremberg, 21 de maio de 1471 — Nuremberg, 6 de abril de 1528)
"Desenhar é a integridade da arte. Não há possibilidade de trapacear. Ou é bom ou é ruim." Salvador Dalli
24 de jun. de 2013
Foguete canta Maria Bethania
Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha
É como diz João Cabral de Mello Neto
Um galo sozinho não tece uma manhã
Senti na pele a mão do teu afeto
Quando escutei o canto de acauã
A brisa veio feito cana mole
Doce, me roubou um beijo
Flor de querer bem
Tanta lembrança este carinho trouxe
Um beijo vale pelo que contém
Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha
Tirei a renda da naftalina
Forrei cama, cobri mesa
E fiz uma cortina
Varri a casa com vassoura fina
Armei a rede na varanda
Enfeitada com bonina
Você chegou no amiudar do dia
Eu nunca mais senti tanta alegria
Se eu soubesse soltava foguete
Acendia uma fogueira
E enchia o céu de balão
Nosso amor é tão bonito, tão sincero
Feito festa de São João
http://letras.mus.br/maria-bethania/569723/
Compositor: J. Velloso / Roberto Mendes
23 de jun. de 2013
Canção dos que partem - Luis Enrique Belmonte (Caracas, 1971)
Os que partem a cantarolar uma canção
a deixar que a luz ocupe seu lugar nas esquinas,
nos rostos que chegam,
nas mãos que palpam o espaço habitável
Os que se aproximam do horizonte
procurando pássaros que adejam na escuridão
Os que no seu andar desprendem gravetos, espinhos,
cascas que assinalam o sentido
do que não puderam dizer a tempo
quando era preciso dizê-lo.
Os que se vão não devem olhar o rasto do seu passo
senão a cintilação da terra prometida
que não é mais que o lampejo de seus próprios corpos
a trafegar caminhos no mais côncavo da noite.
Escutemos a canção
sobre os telhados de povos afantasmados,
nos gonzo de portas entreabertas,
nos sótãos do vento.
É a canção que anuncia aos que chegam
e torna mais leve a travessia dos que partem.
.........................
Los que se van tarareando una canción
dejando que la luz ocupe su lugar en las esquinas,
en los rostros que llegan,
en las manos que tantean el espacio habitable.
Los que se van arrimando al horizonte
buscando pájaros que aletean en la oscurana.
Los que en su marcha desprenden astillas, espinas,
cáscaras que señalan el sentido
de lo que no pudieron decir a tiempo
cuando era justo decirlo.
Los que se van no deben mirar la estela de su paso
sino el relumbre de la tierra prometida
que no es más que el destello de sus propios cuerpos
trasegando caminos en lo más cóncavo de la noche.
Escuchemos la canción
sobre los tejados de pueblos afantasmados,
en los goznes de puertas entreabiertas,
en los áticos del viento.
Es la canción que anuncia a los que llegan
y hace más ligera la travesía de los que parten.
Luis Enrique Belmonte. Nasceu em Caracas, em 1971. É médico cirurgião (UCV), especializou-se em Bioética na Universidade Ramón Llull e em História das Ciências na Universidade Autónoma de Barcelona. Recebeu diferentes reconhecimentos literários, entre eles o Prêmio de Poesia Fernando Paz Castillo (1996), por Corpo baixo lâmpada; o Prêmio Adonais (1998), convocado pela editorial Rialp de Madri, por Inútil registo; e o Prêmio de Poesia da IV Bienal de Literatura Mariano Picón Salas (2005), por O encanto.
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