25 de jun. de 2014

Rebecca Kinkead (1968, Natick, Massachusetts, E.U.A)




















A Serenata :: Adélia Prado

Andrew Wyeth

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Igual-desigual. Carlos Drummond de Andrade

Portinari 

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinhos são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais (...)
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

In: Nova reunião. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1983. p.537.

24 de jun. de 2014

Hei de amoldar-me a ti como o rio a seu leito :: Dulce María Loynaz

Victor Pasmore, 1950

Hei de amoldar-me a ti como o rio a seu leito, 
como o mar a sua praia, como a espada a sua bainha.
Hei de correr em ti, hei de cantar em ti, hei de guardar-me em ti
de agora em diante.
Fora de ti há de me sobrar o mundo, como ao rio sobra
o ar, ao mar a terra, à espada a mesa do convite.
Dentro de ti não há de me faltar brancura do limo para
minha corrente, perfil de vento para minhas ondas, ajuste e
repouso para meu aço.
Dentro de ti está tudo; fora de ti não há nada.
Tudo o que tu és está em seu lugar, tudo o que não sejas tu me há
de ser vão.
Caibo em ti, estou feita a tua medida; mas se for em mim onde
algo falte, cresço... Se for em mim onde algo sobre,
corto.

23 de jun. de 2014

Vestida de sonhos :: Livia Garcia Roza

Ekaterina Panikanova

Vestida de sonhos sou completa.
Livia Garcia Roza

Cumprimento :: Dorothy Parker

Kris Heding 

Para tal minha mãe me aqueceu 
e me chamava para casa antes do breu 
e induzia a noite da infância a ficar quieta 
e me dava fortes cereais na minha dieta 
e às oito em ponto me fazia deitar 
e prendia meus cabelos, sem me permitir engordar 
e vigiava meu sentar, minha postura 
para eu me tornar uma mulher madura 
e ouvir um assobio e perder a razão 
e fazer caquinhos do meu coração. 

22 de jun. de 2014

Tomo conta do mundo :: Clarice Lispector

Starry night - Edvard Munch, 1922-1924

Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar e vejo as espessas espumas mais brancas e que durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isto pela marca que as ondas deixam na areia. Olho as amendoeiras da rua onde moro. Antes de dormir tomo conta do mundo e vejo se o céu da noite está estrelado e azul-marinho porque em certas noites em vez do negro o céu parece azul-marinho intenso, cor que já pintei em vitral. Gosto de intensidades.


21 de jun. de 2014

Gilvan Barreto :: Fotografia












 http://www.gilvanbarreto.com

As coisas :: Arnaldo Antunes


As coisas têm peso,
massa,
volume,
tamanho,
tempo,
forma,
cor,
posição,
textura,
duração,
densidade,
cheiro,
valor,
consistência,
profundidade,
contorno,
temperatura,
função,
aprência,
preço,
destino,
idade,
sentido.
As coisas não têm paz.

19 de jun. de 2014

Paratodos :: Chico Buarque (Rio de Janeiro, 19 de junho de 1944)


O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro

Foi Antonio Brasileiro
Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas

Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro

Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho

Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto

Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethania, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista

O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro

Poemeto Rural :: Abgar Renault

Valquiria Barros 
Amplo dia ardente de sertão.
Sol queimante de verão 
fuzilando auriluzente, 
em setas nos olhos da gente. 
Toadas longínquas de trabalhadores no eito. 
Gado engordando lentamente no pastinho estreito. 
Gente engordando sonolentamente dentro de casa. 
Sombras chatas de árvores estendidas no chão... Um ruflo célere de asa 
riscando, às vezes, o ar parado. Silêncio longo. Soledade. 
Monotonia do sertão... Monotonia da felicidade...

18 de jun. de 2014

Anímico de Adélia Prado

Jean-Francois Millet, 1867-1868
Nasceu no meu jardim um pé de mato
que dá flor amarela.
Toda manhã vou lá pra escutar a zoeira
da insetaria na festa.
Tem zoada de todo jeito:
tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre.
É pata, é asas, é boca, é bico, é grão de
poeira e pólen na fogueira do sol.
Parece que a arvorinha conversa.

17 de jun. de 2014

Amizade :: Simone WEIL

 Nikolay Bogdanov-Belsky

A amizade não se deixa desligar da realidade, e tampouco o belo. Ela constitui um milagre, como o belo. E o milagre consiste simplesmente no fato de que ela existe. (...)
Não se deixe aprisionar por nenhuma afeição. Preserve sua solidão. No dia, se porventura ele chegar, em que uma verdadeira afeição lhe for dada, não haverá oposição entre a solidão interior e a amizade, pelo contrário. É inclusive por esse sinal infalível que você a reconhecerá.

WEIL, Simone. A gravidade e a graça. São Paulo: Martins Fontes.  p.72.

Mapa:: Wislawa Szymborska

Plano como a mesa na qual está colocado. Por baixo dele nada se move nem busca vazão. Sobre ele - meu hálito humano não cria vórt...