Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
11 de jun. de 2015
Metamorfose :: Charles Bukowski
uma namorada entrou
fez minha cama
o chão da cozinha ela lavou e encerou
limpou as paredes
aspirou
limpou o toalete
a banheira
esfregou o chão do banheiro
cortou as unhas do meu pé
meu cabelo.
então
no mesmo dia
veio o encanador que arrumou
a torneira da pia
consertou também a do banheiro
outro cara consertou o aquecedor
aí veio outro e o telefone ele arrumou
agora estou sentando no meio dessa perfeição
tudo silencioso.
com minhas namoradas terminara
melhor me sentia quando a bagunça
imperava.
levarei alguns meses para tudo voltar ao normal:
não posso nem mesmo achar uma barata para conversar.
perdi meu ritmo
não posso comer
não posso dormir
a minha sujeira roubaram
de mim.
Tradução de Alice Dias.10 de jun. de 2015
DIZIAS QUE GOSTAVAS :: José Miguel Silva (Vila Nova de Gaia, 1969)
Picasso
Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei-de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.
in: Vista de Um Pátio seguido de Desordem. Relógio d'Água, 2003
9 de jun. de 2015
O FIM DO AMOR :: SOPHIE HANNAH
O fim do amor devia ser um evento.
Devia envolver salão, cerimonial.
Por que diabos não? É tão normal.
Por que passar sem reconhecimento,
Convites, ternos limpos? Seja qual
For - desentendimento, quebra-pau -
O fim do amor devia ser um evento.
Devia envolver salão, cerimonial.
Melhor que cair, sem um questionamento,
Na mudez, se arrastar do que é cabal
ao escuso, da porta à parede. Um tal
fato anuncie, gaste nesse momento.
O fim do amor devia ser um evento.
Devia envolver salão, cerimonial.
Gosto de dizer:: Fernando Pessoa (Bernardo Soares)
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
fonte: http://arquivopessoa.net/textos/
8 de jun. de 2015
PARTES DE UM MUNDO: FRÉSIAS :: LUÍS QUINTAIS
julie ford oliver
I
Assim as deixei
ali,
frésias sobre
pedra escura,
ali,
onde
a memória
não é canção
nem sentimento,
ali,
sobre pedra
escura,
de tão densa
contra o tempo.
II
Flores brancas
sobre pedra
se acendendo.
Contra o tempo,
entrei
no pequeno bosque.
III
Reverenciaria
o tema procurado,
a enumeração
do infinito desgaste,
a forma
por polir.
IV
Frésias
sobre a campa,
invisíveis
de tanta luz.
7 de jun. de 2015
EXEMPLO :: Wislawa Szymborska
à noite arrancou todas as folhas de uma árvore,
menos uma,
deixada
para balançar só num galho nu.
Com este exemplo
a Violência demonstra
que sim –
às vezes ela gosta de se divertir.
6 de jun. de 2015
Das lembranças :: Marcel Proust
Edvard Munch
Doía-me ter de imaginá-las diferentes, pois o tempo que muda os seres não altera as figuras que deles guardamos. Nada é mais triste do que essa oposição entre a decadência das criaturas e a imarcescibilidade das lembranças do que compreendermos não ser de fato mais a mesma quem com tanto viço surge à memória, não nos ser possível, exteriormente, contemplar a que interiormente tão bela nos parece, e que não obstante almejamos rever.in: O tempo redescoberto. Globo, p. 244
5 de jun. de 2015
Contranarciso :: Paulo Leminski
Enrico Miguel Thomas
Em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós.
4 de jun. de 2015
NOSSA HISTÓRIA :: Yehuda Amichai
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península.
Ficará claro pra cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros.
tradução de Millôr Fernandes
3 de jun. de 2015
Estrada : Rui Knopfli
Segue a viagem dos anos.
Passou o tempo das amoras
e das laranjas furtadas,
a flor da chuva de ouro
para sugar o gostinho a açúcar.
Sonho com uma comprida paisagem de cedros
que nunca vi.
Apetece-me deixar o corpo adormecido
junto ao rádio
e ir passear pelos galhos das árvores
e sobre os fios telefónicos.
Nada feito,
pesada de agruras e desertos
segue a viagem dos anos.
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