Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
26 de jul. de 2021
In utilizar :: FLANZER, Sandra Niskier
Gastar, gastar, usar a vida
Deixar que escorra, provar da bica
Gastar, roer, raspar do fundo
Fincar as unhas no umbigo do mundo.
Cravar as mãos, roçar, pegar,
Ir ao encontro de, ralar, ralar
Usar agora, desgastar, se engastar
No tempo breve que passa justo.
Perder, perder, ceder ao outro
O resto pífio desse plano torto
De achar que vivo é o que se encaixa
Quando é a morte que se guarda em caixa.
Porvir, puir, e por ir, desperdiçar
Do impossível, cruzar a faixa
Fuçar o real que no acaso sobrar
E torná-lo inútil a ponto de gostar.
In:_____. Do quarto. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017
20 de jul. de 2021
Por que : Tarso de Melo (Santo André, 1976)
por que
retrair-se à agenda alheia — desistir
dos cinco sentidos — por que o relógio,
as distâncias que cria, o mover-se
a sua sombra — por que as chaves
giradas, o diário trancar-se com a família
— por que a gravata, esperar o fim do dia,
dos dias — por que o espelho, o asseio,
a rotina dos sapatos — por que as senhas,
os códigos, os telefones de emergência,
endereços — por que os passos, os prazos
exíguos, as datas consumidas
como aspirinas
[de Carbono, 2002]
19 de jul. de 2021
Eugénio de Andrade ::Arte dos versos
Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.
ANDRADE, Eugénio de. Rente ao dizer. Fundação Eugénio de Andrade, 1992.
12 de jul. de 2021
Primeiro amor :: Adília Lopes
Primeiro
amor
e não pedi
oiro
Depois pedi oiro e não pedi
amor
Depois
só pedi
pão
depois
perdi-me.
29 de jun. de 2021
Eucanaã Ferraz: "18.05.1961"
Sandro Botticelli
Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam:
Nasci mês de maio, azul
de tardes macias,
de pai José,
mãe Maria.
Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade passa
longe, mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha.
FERRAZ, Eucanaã. "18.05.1961". In:_____. Livro primeiro. Rio de Janeiro: Edições do autor, 1990.
São Pedro :: Fernando Pessoa
Tu, que Diabo?, és velho.
És o único dos três que traz velhice
Às festas. Tuas barbas brancas
Têm contudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um fenómeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.
Carcereiro do céu, isso é o que és.
Basta ver o tamanho dessas chaves –
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquele passo do Evangelho
Do «Tu és Pedro» etcetera (tu sabes),
Que é, afinal uma fraude
Meu velho, uma interpolação.
Carcereiro do céu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangélicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.
Isso – fecharem-me – não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
Que o estar fechado faz-me mal
Até na beatitude do teu céu,
Entre os santos do paraíso,
(A liberdade – Deus dá a Deus –
Um Deus que não sei se é o teu),
O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu
Faz-me terríveis cócegas no juízo.
Enfim, que direi eu de ti, amigo,
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongórica,
Por fruste deselegante,
Como de quem, sem saber nada, exausto,
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existência histórica.
Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O pior é que nada disso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandies cínicos desdéns.
Que diabo, és uma série de ninguéns.
O Santo são as chaves, e não tu.
Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
Para outros as barbas já citadas,
Para uns o tal fatídico chaveiro
Que fecha à chave as almas sublimadas.
Para uns tu fundaste a Roma do Papado
(Andavas bêbado ou enganado
Ou esqueceste
O teu posto quando o fizeste)
E para outros enfim, como é o povo
E segundo as ideias que ele faz,
És quem lhe não vem dar nada de novo –
Umas barbas com S. Pedro lá por trás.
É difícil tratar-te em verso ou prosa,
Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,
Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser
E a alma mais humilde é clamorosa
De qualquer coisa que se possa ver,
Em sonho até, qual se estivesse perto.
Olha, eu confesso
Que nunca escreveria
Este vago poema, em que me apresso
Só para me ver livre do teu nada,
Se não fosse para dar um cunho
A este livro da trilogia
(Santo António, S. João, S. Pedro –
De popular, que bem que soa!)
Mas porque diabo de intuição errada
É que vieste parar a Junho
E a Lisboa?
Isto aqui ainda tem
Um sorriso que lhe fica bem,
Que até, até
No teu dia,
(Ó estupor velho
Como um chavelho,)
Nas ruas
O povo anda com alegria,
É fé,
Não em ti nem nas barbas tuas
Mas no que a alegria é.
Olha, acabei.
Que mais dizer-te, não sei.
Espera lá, olha
Roma, fingindo que viceja,
Lentamente se desfolha.
Teu último gesto seja,
Um gesto volvente e mudo.
Se tens poder milagroso,
Se essas chaves abrem tudo
Deixa esse céu lastimoso.
Deixa de vez esse céu,
Desce até à humanidade
E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
As portas do Inferno, e da Verdade.
9.6.1935.
24 de jun. de 2021
22 de jun. de 2021
Por si :: Sandra Niskier Flanzer
que aprenda com o sol:
ele é fogo: por força de si, se impõe.
Mas nasce e morre todos os dias,
ilumina o que vinga e depois esquece
e, a um só tempo, sabe sumir e se pôr.
FLANZER, Sandra Niskier. "Por si". In:_____. O quinto (dos infernos). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.
18 de jun. de 2021
Não sinto :: Angela Melim
Fernando Botero
Não sinto
(muito mais)
falta
nem saudade.
Estou tomando gosto das coisas.
Figuras e linguagem.
Uma laranja
diminutivo
sopinha quente
um sorriso
uma boa chuveirada.
O verão!
Como é colorido.
Super.
O Rio de Janeiro.
Uma viagem.
Contradições. Sinônimos.
Que boa a mão da idade.
In: FÉLIX, Moacir. 41 poetas do Rio. Rio de Janeiro: Funarte, 1998.
15 de jun. de 2021
O momento de :: António Ramos Rosa
Zhang Xiaogang
Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti
neste espaço deserto.
Ele perscruta entre as pedras e as sombras.
Nada vê. Ignora. 0lha.
Que traços são estes,
qual a origem destas palavras nulas?
Ele escreve. O seu desejo é o desejo
de tornar habitável o deserto.
A nuvem sobre a página. Lisboa: Dom Quixote, 1978.
8 de jun. de 2021
7 de jun. de 2021
Um pouco sobre a alma :: Wislawa Szymborska
Às vezes temos uma alma.
Ninguém a tem o tempo todo
e para sempre.
Dia após dia,
ano após ano
podem se passar sem ela.
Às vezes ela só se aninha
por mais tempo
nos enlevos e medos da infância.
Às vezes só no espanto
de estarmos velhos.
Raramente nos assiste
em tarefas maçantes
como mover armários,
carregar malas
ou percorrer uma distância com o
sapato apertado.
Quando é para preencher
formulários
ou picar carne,
costuma tirar folga.
De mil conversas nossas
participa de uma,
e mesmo assim nem sempre,
pois prefere o silêncio.
Quando nosso corpo começa a doer e doer,
sai de fininho do seu plantão.
É difícil de contentar:
não lhe agrada nos ver na multidão,
nem nossa luta por uma vantagem
qualquer,
nem o matraquear dos negócios.
A alegria e a tristeza
para ela são dois sentimentos
diversos.
Somente quando estão unidos
se faz presente entre nós.
Podemos contar com ela
quando não temos certeza de nada
e temos curiosidade de tudo.
Dos objetos materiais,
gosta dos relógios com pêndulo
e dos espelhos, que trabalham com zelo
mesmo quando ninguém está olhando.
Não revela de onde vem
nem quando vai sumir de novo,
mas está claro que espera tais perguntas.
Parece que,
assim como ela nos é necessária,
também nós
para algo lhe somos necessários.
2 de jun. de 2021
Confianças :: Juan Guelman
senta-se à mesa e escreve
“com este poema não tomarás o poder” diz
“com estes versos não farás a revolução” diz
“nem com milhares de versos farás a revolução” diz
e mais: esses versos não vão servir para que
peões professores lenhadores vivam melhor
comam melhor ou ele mesmo coma viva melhor
nem para apaixoná-la servirá
não ganhará dinheiro com eles
não entrará no cinema grátis com eles
não lhe darão roupa por eles
não conseguirá tabaco ou vinho por eles
nem papagaios nem cachecóis nem barcos
nem touros nem guarda-chuvas conseguirá por eles
se contar com eles a chuva o molhará
não alcançará perdão ou graça por eles
“com este poema não tomarás o poder” diz
“com estes versos não farás a revolução” diz
“nem com milhares de versos farás a revolução” diz
Senta-se à mesa e escreve
1 de jun. de 2021
31 de mai. de 2021
DORME, MEU AMOR :: MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA

Jozsef Rippl Ronai
Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos. Fecha os olhos agora e sossega — o pior já passou há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão desvia os passos do medo. Dorme, meu amor — a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste e pode levantar-se como um pássaro assim que adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra não hão-de derrubar-me — eu já morri muitas vezes e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos agora e sossega — a porta está trancada; e os fantasmas da casa que o jardim devorou andam perdidos nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme, meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui, de guarda aos pesadelos — a noite é um poema que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.
24 de mai. de 2021
PEQUENA CANTIGA À MULHER :: Maria Teresa Horta (20 Maio 1937 Lisboa, Portugal)
Onde uma tem
O cetim
A outra tem a rudeza
Onde uma tem
A cantiga
A outra tem a firmeza
Tomba o cabelo
Nos ombros
O suor pela
Barriga
Onde uma tem
A riqueza
A outra tem
A fadiga
Tapa a nudez
Com as mãos
Procura o pão
Na gaveta
Onde uma tem
O vestígio
Tem a outra
A pele seca
Enquanto desliza
O fato
Pega a outra na
Enxada
Enquanto dorme
Na cama
A outra arranja-lhe
A casa
17 de mai. de 2021
Ah ser um anjo :: FRANK O'HARA 1926 -1966
Edgar Jerins
Ah ser um anjo (se anjos houvesse!) e subir
direto ao céu e dar uma olhada e depois
descer
não estar coberto com aço e alumínio
fulgurantemente feio nas distâncias puras e estalando e
estourando, arfando
mas ser parte do topo das árvores e do azul, invisível,
na escuridão iridescente ao longe,
silencioso, ouvindo ao
ar tornar-se não ar tornar-se ar de novo
...
Oh to be an angel (if there were any!), and go
straight up into the sky and look around and then
come down
not to be covered with steel and aluminum
glaringly ugly in the pure distances and clattering and
buckling, wheezing
but to be part of the treetops and the blueness, invisible,
the iridescent darkness beyond,
silent, listening to
the air becoming no air becoming air again
13 de mai. de 2021
Lágrimas do Sul:: Milton Nascimento e Marco Antônio Guimarães
Hora de humanidade, de acordar
Continente e mais
A canção segue a pedir por ti
África, berço de meus pais
Ouço a voz de seu lamento
De multidão
Grade e escravidão
A vergonha dia a dia
E o vento do teu sul
É semente de outra história
Que já se repetiu
A aurora que esperamos
E o homem não sentiu
Que o fim dessa maldade
É o gás que gera o caos
É a marca da loucura
África, em nome de Deus
Cala a boca desse mundo
E caminha, até nunca mais
A canção segue a torcer por nós”
11 de mai. de 2021
Ai daqueles que nos amam :: Hilda Hilst
Nós, poetas e amantes
o que sabemos do amor?
Temos o espanto na retina
diante da morte e da beleza.
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
Somos inimigos.
Inimigos com muralhas
de sombra sobre os ombros.
E sonhamos. Às vezes
damos as mãos àqueles
que estão chorando.
(os que nunca choraram por nós)
Ah, meus irmãos e irmãs...
Ai daqueles que nos amam
e que por amor de nós se perdem.
Ah, pudéssemos amar um homem
ou uma mulher ou uma coisa...
Mas diante de nós, o tempo
se consome, desaparece e não para.
Ouvi: que vossos olhos se inundem
de pranto e água de todo o mundo!
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
De Balada do Festival (1955)
10 de mai. de 2021
Entre tiros e vírus: diário de um médico do front :: GUSTAVO TREISTMAN (Médico do SUS no Rio de Janeiro)
O silêncio:: Pablo Neruda
12
Agora contaremos até doze
e ficaremos todos quietos.
Por uma vez sobre a terra
não falemos em nenhum idioma,
por um segundo nos detenhamos,
não movamos tanto os braços.
Seria um minuto flagrante,
sem pressa, sem automóveis,
todos estaríamos juntos
em uma quietude instantânea.
Os pescadores do mar frio
não fariam mal às baleias
e o trabalhador do sal
olharia suas mãos rotas.
Os que preparam guerras verdes,
guerras de gás, guerras de fogo,
vitórias sem sobreviventes,
vestiriam um traje puro
e andariam com seus irmãos
pela sombra, sem nada fazer.
Não confundam o que quero
com a inanição definitiva:
a vida é só o que se faz,
não quero nada com a morte.
Se não podemos ser unânimes
movendo tanto nossas vidas,
talvez não fazer nada uma vez,
talvez um grande silêncio possa
interromper esta tristeza,
este não nos entendermos jamais
este ameaçar-nos com a morte,
talvez a terra nos ensine
quando tudo parece morto
então tudo está vivo.
Agora contarei até doze
E você se cala e eu me vou.
1 de mai. de 2021
Os dias felizes :: Cecília Meireles
Fernando Igor Os dias felizes estão entre as árvores, como os pássaros: viajam nas nuvens, correm nas águas, desmancham-se na areia. Todas...

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Tem de haver mais Agora o verão se foi E poderia nunca ter vindo. No sol está quente. Mas tem de haver mais. Tudo aconteceu, Tu...
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A ilha da Madeira foi descoberta no séc. XV e julga-se que os bordados começaram desde logo a ser produzidos pel...