29 de abr. de 2025

RUÍNA :: Marcílio Godoi

 

Como que adentrando uma casa muito antiga,

começo a ouvir rumores estranhos

pelo meu combalido corpo. 


Um pigarro, um estalo,

um ranho, um rangido, um estrondo.

Uma caixa de comprimidos que tomba

uma drágea rompendo a cartela,

um alarme celular.


Entre rachaduras, carcomidos

descasos, desfaço e penetro diário

o escuro fosco, embaciado

poeirento e um tanto assombrado 

da casa em que fui e sou.


Da pele das paredes me descasco

do que não sou mais, mancha azulada

sem hemorragia, amarelo sem tombo,

roxo sem trombo, sem soco.


Das janelas, os olhos

embaçados avistam a rua deserta

as outras casas vão cedendo seu lugar

a edifícios sobre-humanos

sou uma das últimas do bairro

feita só de ossos e um bocado

de sangue e cuspe.


Das telhas, poucas resistiram,

é por onde entra a maior parte

da água que me infiltra o porão

e me empresta esse leve olor de mofo.

 

Ratos, morcegos, baratas

posso ouvi-los,

irmanam-se formigáveis a mim

na unidade solidária do sótão.


Por pura sorte, minha espinha dorsal,

a escadaria, manteve-se intacta,

embora discorde de mim

em gênero, número e degrau.


Por ela, desço até a varanda

onde pego um pouco de ar

e limpo as novas teias de aranha

que tentam me impedir o acesso.


Então alcanço um pequeno jardim,

que é onde me sinto melhor,

a parte mais perto de mim

desse casarão, relíquia obsoleta

em que me tornei.

 

Aqui volto a ser um bicho.

Um bicho velho e tranquilo,

acolhido em seu posto

seu pouso ancestral,

no pulso brando e belo da partida

pois a morte, feminina, é triste, senão terrível

para os prédios e os homens.



Nenhum comentário:

Aos Namorados do Brasil :: Carlos Drummond de Andrade

Dai-me, Senhor, assistência técnica para eu falar aos namorados do Brasil. Será que namorado algum escuta alguém? Adianta falar a namorados?...