Como que adentrando uma casa muito antiga,
começo a ouvir rumores estranhos
pelo meu combalido corpo.
Um pigarro, um estalo,
um ranho, um rangido, um estrondo.
Uma caixa de comprimidos que tomba
uma drágea rompendo a cartela,
um alarme celular.
Entre rachaduras, carcomidos
descasos, desfaço e penetro diário
o escuro fosco, embaciado
poeirento e um tanto assombrado
da casa em que fui e sou.
Da pele das paredes me descasco
do que não sou mais, mancha azulada
sem hemorragia, amarelo sem tombo,
roxo sem trombo, sem soco.
Das janelas, os olhos
embaçados avistam a rua deserta
as outras casas vão cedendo seu lugar
a edifícios sobre-humanos
sou uma das últimas do bairro
feita só de ossos e um bocado
de sangue e cuspe.
Das telhas, poucas resistiram,
é por onde entra a maior parte
da água que me infiltra o porão
e me empresta esse leve olor de mofo.
Ratos, morcegos, baratas
posso ouvi-los,
irmanam-se formigáveis a mim
na unidade solidária do sótão.
Por pura sorte, minha espinha dorsal,
a escadaria, manteve-se intacta,
embora discorde de mim
em gênero, número e degrau.
Por ela, desço até a varanda
onde pego um pouco de ar
e limpo as novas teias de aranha
que tentam me impedir o acesso.
Então alcanço um pequeno jardim,
que é onde me sinto melhor,
a parte mais perto de mim
desse casarão, relíquia obsoleta
em que me tornei.
Aqui volto a ser um bicho.
Um bicho velho e tranquilo,
acolhido em seu posto
seu pouso ancestral,
no pulso brando e belo da partida
pois a morte, feminina, é triste, senão terrível
para os prédios e os homens.
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