Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
29 de jun. de 2016
28 de jun. de 2016
Príncipe no roseiral:: MATILDE CAMPILHO (Lisboa em 1982)
Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.
27 de jun. de 2016
Meus sapatos amarelos :: Maura Lopes Cançado (1929 - 1993)
Eu os vi mil vezes através de lágrimas,
na sua ingenuidade gasta, resignada,
Ó, meus sapatos - amarelo-girassol.
(28/10/1959)
26 de jun. de 2016
25 de jun. de 2016
Apreender com as palavras a substância mais nocturna :: António Ramos Rosa
Apreender com as palavras a substância mais nocturna é o mesmo que povoar o deserto com a própria substância do deserto
Há que voltar atrás e viver a sombra enquanto a palavra não existe ou enquanto ela é um poço ou um coágulo do tempo ou um cântaro voltado para a sua própria sede
Talvez então no opaco encontremos a vértebra inicial para que possamos coincidir com um gesto do universo e ser a culminação da densidade
Só assim as palavras serão o fruto da sombra
e já não do espelho ou de torres de fumo
e como antenas de fogo nas gretas do olvido
serão inicialmente matéria fiel à matéria
Há que voltar atrás e viver a sombra enquanto a palavra não existe ou enquanto ela é um poço ou um coágulo do tempo ou um cântaro voltado para a sua própria sede
Talvez então no opaco encontremos a vértebra inicial para que possamos coincidir com um gesto do universo e ser a culminação da densidade
Só assim as palavras serão o fruto da sombra
e já não do espelho ou de torres de fumo
e como antenas de fogo nas gretas do olvido
serão inicialmente matéria fiel à matéria
24 de jun. de 2016
Chita
"Com cara de festa do interior e brincadeira de criança, a chita possui ancestrais ilustres: surgiu na Índia medieval e conquistou europeus, num domínio invertido à colonização; seu nome vem do sânscrito e atravessa idiomas, assim como o tecido transpôs mares, povos e culturas para virar vestidinho de menina nas quadrilhas juninas,cortina e toalha de mesa em casa de pau-a-pique, pelos cantos do Brasil. De tempos em tempos, ganha espaço em passarelas, galerias de arte, vitrines e palcos, quando estilistas, artistas plásticos, designers e outros criadores redescobrem estas estampas e as incorporam a suas produções."
In: Que Chita Bacana, A CASA, 2005.
AS NAMORADAS MINEIRAS:: Carlos Drummond de Andrade
Uma namorada em cada município,
e os municípios mineiros são duzentos e quinze,
mas o verdadeiro amor onde se esconderá:
em Varginha, Espinosa ou Caratinga?
Estradas de ferro distribuem a correspondência,
a esperança é verde como os telegramas,
uma carta para cada uma das namoradas
e o amor vence a divisão administrativa.
Para Teófilo Otoni o beijo vai por via aérea,
os carinhos do sul pulam sobre a Mantiqueira,
mas as melhores, mais doces namoradas
são as de Santo Antônio do Monte e Santa Rita.
Enquanto na Capital um homem indiferente,
frio, desdobrando mapas sobre a mesa,
põe o amor escrevendo no mimeógrafo
a mesma carta para todas as namoradas.
Brejo das Almas
23 de jun. de 2016
As experiências da vida são experiências de palavra :: Graciela Chamorro
A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados Guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.
CHAMORRO, Graciela. 2008. Terra MaduraYvy Araguyje: fundamentos da palavra guarani. Dourados: Editora UFGD. p. 56
CHAMORRO, Graciela. 2008. Terra MaduraYvy Araguyje: fundamentos da palavra guarani. Dourados: Editora UFGD. p. 56
22 de jun. de 2016
Epitáfio :: Juan Gelman
Um pássaro vivia em mim.
Uma flor viajava no meu sangue.
Meu coração era um violino.
Quis ou não quis. Mas às vezes
me quiseram. Também me
alegravam: a primavera,
as mãos juntas, o feliz.
Digo que o homem deve sê-lo!
Aqui jaz um pássaro.
Uma flor.
Um violino.
.........
Epitafio
Un pájaro vivía en mí.
Una flor viajaba en mi sangre.
Mi corazón era un violín.
Quise o no quise. Pero a veces
me quisieron. También a mí
me alegraban: la primavera,
las manos juntas, lo feliz.
¡Digo que el hombre debe serlol
Aquí yace un pájaro.
Una flor.
Un violín.
21 de jun. de 2016
Explicação do sopro :: Matilde Campilho
Século XXI. Certos homens se fecham em quartos de hotel porque nos lugares anônimos é muito possível ficar encostado numa parede branca vendo a água correr no chão do chuveiro. Dois rapazinhos pegam as bicicletas e pedalam quatrocentos e vinte quilômetros até achar a costa. Ao alcançá-la, tiram suas roupas e não mergulham: só encostam a zona lombar na areia e repetem até ao infinito a ladainha da tabuada do sete. Um bombeiro termina seu turno de vinte e quatro horas e entra no boteco junto à estátua de São Tarso. Pede um conjunto de sete pães de queijo e nos espaços entre cada um dos pães ele fica procurando um pedaço da túnica de Deus. O motorista do ônibus sabe perfeitamente que dentro da mala da senhora de rosto limpo tem uma caixa de jóias que contém uma caixa de medicamentos que contém uma caixa de anel que contém uma bala. O tocador de kalimba está muito consciente de que hoje o mantra nasce da mistura de um cântico de procissão com o latir do cachorro, e está consciente também de que todo o desenho acha sua acústica perfeita nas pequenas eremitas. Aquele que pinta a natureza, o ladrão de ossos, sabe que deve empreender seu trabalho em posição horizontal, de corpo muito junto ao chão. E se por acaso o observarmos no processo por mais de oito minutos, podemos reparar que sua caixa torácica constantemente toca a tela, sempre na mesma cadência. Porque ele, herdeiro de todos os impressores e selvagens, sabe que só tem uma forma de desenhar as flores: na terra. A moça de vinte e sete anos ainda está sentada ao toucador, de frente para o próprio rosto, absolutamente indecisa sobre qual dos objetos escolher. Entre o baton alaranjado, a carabina calibre 12, o pó de arroz e o crucifixo em miniatura vai uma distância de dois passos a galope.
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