Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
24 de set. de 2017
23 de set. de 2017
22 de set. de 2017
PROGRAMA :: Rui Manuel Correia Knopfli
Paul Klee
Não faço o que quero
faço o que posso.
E o que posso passa
pelo passo da dificuldade.
Palavras tenho poucas,
duras, despidas estacas,
complicando a minha escolha.
Ermas e perfiladas
ergo-as ao sol na vertical
e são monótonas e dão sombra.
Com elas levanto quatro nuas
paredes, um tecto em forma
de prece. Dificilmente
construo uma casa fácil.
Fácil é fazer difícil,
difícil fazer o fácil.
De Mangas Verdes com Sal (1969)
21 de set. de 2017
Rick e a girafa :: Carlos Drummond de Andrade
Carolina Whitaker
Rick se preocupava com a escada que precisava galgar para alcançar o mundo dos sonhos. Nãoprecisava de escada. Ele já estava lá. No Jardim Zoológico, neste domingo azul, a girafa olha do
alto para as crianças, e parece convidá-las a um passeio no dorso. Há uma escada perto, e se
for encostada ao animal, Ricardo (Rick é o seu apelido) poderá chegar até lá.
O garoto mede a distância que vai do chão ao lombo, e julga-se em condições de vencê-la.
Uma vez lá em cima, cavalgando o pescoço, e segurando-lhe os chifres, pedirá à girafa, depois
de umas voltas pelo Jardim, que o leve por aí, percorrendo o mundo.
Presa há tanto tempo, a girafa há de estar ansiosa de liberdade. Não será difícil transpor a
cerca. Ela espera que Rick lhe proponha a aventura. Ninguém se atreveria a travar-lhe os
passos. E Rick vai dirigi-la nos rumos que aprendeu no atlas escolar.
O problema é descer de vez em quando, para Rick alimentar-se de biscoitos, fazer
necessidades e dormir. Camarada, a girafa irá se deitando aos poucos, primeiro dobrando
devagar as pernas, depois se inclinando lentamente para o lado, e afinal arriando com
suavidade a carga infantil.
Mas para subir outra vez, como se arranjaria ele? Escada não haverá. Mesmo deitada, a girafa
é difícil de subir. A imaginação não lhe fornece recurso plausível. O sonho frustou-se. Rick
levanta o braço direito e, com a mão espalmada em gesto de adeus à girafa que gentilmente o
convidara, esclarece:
— Muito obrigado! Fica para outra ocasião, quando eu crescer.
Àtica Editora, 2001
20 de set. de 2017
Plantar um bosque :: Lya Luft
(...) O Bosque existe: é um dos meus lugares mágicos, onde minha imaginação anda de mãos dadas com a realidade. Ainda somos poucos moradores nesse condomínio na serra, mas algumas casas novas vão aparecendo entre as árvores. A nossa, a menor de todas, foi feita como a gente queria: telhado pontudo, portas e venezianas no que chamo de azul-grego. varandona, lareira e aconchego, grandes vidraças trazendo o bosque para dentro dos quartos.
Eu a batizei de Casa da Bruxa Boa, e mandei botar isso numa placa ao lado do acesso para o carro. E, cada vez que seus telhados e suas venezianas azuis aparecem na curva da ruazinha quando chegamos, ainda me espanta que seja nossa. Nela acontecem coisas especiais.
Como quando meu marido resolveu tocar um Mozart alto e bom som no meio de uma manhã de domingo. Nem tucanos nem bugios, nem uma raposinha, nossos eventuais companheiros. Éramos as árvores e nós: troncos subindo com dificuldade como velhinhas encurvadas ou amantes sensuais. Comentei que certamente era a primeira vez que aquela mata tão antiga escutava música. Meu marido concordou balançando a cabeça. Nem lhe ocorreu dizer que árvores não escutam. Pois quem me diz que árvores, sendo vivas, não sentem nada, nem ouvem, nem enxergam — ainda que do jeito delas, que não entendemos ainda?
Quem me diz que, compadecidas com estes atrapalhados humanos, não nos concedem de propósito essa renovadora paz que recuperamos depois do grande cansaço de quem chega da cidade arrastando deveres, compromissos, fracassos e desilusões? Quem me garante que entre os troncos não se escondem seres de fábula, que nos espiam de noite quando tudo parece dormir, mas aqui e ali alguma coisa se move, rápida? Algo vivo se esgueira, corre com pezinhos como de minúsculos esquilos no telhado — mas não são esquilos, e macacos não andam por aí de noite. Pois eu, em tantas noites quietas, escuto neste mato, neste telhado e neste jardim muitas insólitas coisas: mesmo sem nome nem rosto, elas são reais. Batem asas! sussurram, dão risadinhas divertindo-se com minha incapacidade de enxergar melhor o que não cabe em explicações.
Essas franjas do perceptível permitem que a gente cumpra o cotidiano de trabalhos e correrias, amores a cuidar, contas a pagar, o dinheiro escasso, a burocracia implacável e kafkiana, o carro que precisa ir para a oficina e a eterna lista do supermercado ao lado do computador tudo isso e muito mais, mas sem perder a graça. E, quando a perdemos — ou ela nos escapa —, a lembrança daqueles tons de verde, um colorido fugaz na sombra entre as raízes, os pássaros estranhos que vêm comer frutinhas, tudo isso a traz de volta. Como as vozes das crianças nos balanços quando nos visitam, seu olhar sonado quando descem a escada ainda em suas roupas de dormir, e vem para o nosso colo. Toda a graça, a delicadeza, o consolo e o assombro deste mundo tantas vezes frio e cruel retornam, e nos fazem companhia por mais cansado, aborrecido ou desanimado que a gente esteja – porque às vezes a gente também fica assim.
E, quando resolvi transcrever nesta coluna parte do meu texto sobre o Bosque, pensei que cada um de nós pudesse curtir essa experiência, na paisagem da janela, ainda que uma frestinha de verde entre edifícios; numa caminhada pela praça ou parque; numa viagem de ônibus; ou, melhor ainda, inventar o seu. Plantar um bosque na alma, e curtir a sombra, o vento, a chuva, as crianças, o sossego. Não precisam ser reais. Eu até acho que a realidade não existe: existe o que nós criamos, sentimos, vemos ou simplesmente imaginamos. E é isso que torna a vida suportável. Ou especial.
Fonte: Revista Veja, 27 de abril de 2011
Eu a batizei de Casa da Bruxa Boa, e mandei botar isso numa placa ao lado do acesso para o carro. E, cada vez que seus telhados e suas venezianas azuis aparecem na curva da ruazinha quando chegamos, ainda me espanta que seja nossa. Nela acontecem coisas especiais.
Como quando meu marido resolveu tocar um Mozart alto e bom som no meio de uma manhã de domingo. Nem tucanos nem bugios, nem uma raposinha, nossos eventuais companheiros. Éramos as árvores e nós: troncos subindo com dificuldade como velhinhas encurvadas ou amantes sensuais. Comentei que certamente era a primeira vez que aquela mata tão antiga escutava música. Meu marido concordou balançando a cabeça. Nem lhe ocorreu dizer que árvores não escutam. Pois quem me diz que árvores, sendo vivas, não sentem nada, nem ouvem, nem enxergam — ainda que do jeito delas, que não entendemos ainda?
Quem me diz que, compadecidas com estes atrapalhados humanos, não nos concedem de propósito essa renovadora paz que recuperamos depois do grande cansaço de quem chega da cidade arrastando deveres, compromissos, fracassos e desilusões? Quem me garante que entre os troncos não se escondem seres de fábula, que nos espiam de noite quando tudo parece dormir, mas aqui e ali alguma coisa se move, rápida? Algo vivo se esgueira, corre com pezinhos como de minúsculos esquilos no telhado — mas não são esquilos, e macacos não andam por aí de noite. Pois eu, em tantas noites quietas, escuto neste mato, neste telhado e neste jardim muitas insólitas coisas: mesmo sem nome nem rosto, elas são reais. Batem asas! sussurram, dão risadinhas divertindo-se com minha incapacidade de enxergar melhor o que não cabe em explicações.
Essas franjas do perceptível permitem que a gente cumpra o cotidiano de trabalhos e correrias, amores a cuidar, contas a pagar, o dinheiro escasso, a burocracia implacável e kafkiana, o carro que precisa ir para a oficina e a eterna lista do supermercado ao lado do computador tudo isso e muito mais, mas sem perder a graça. E, quando a perdemos — ou ela nos escapa —, a lembrança daqueles tons de verde, um colorido fugaz na sombra entre as raízes, os pássaros estranhos que vêm comer frutinhas, tudo isso a traz de volta. Como as vozes das crianças nos balanços quando nos visitam, seu olhar sonado quando descem a escada ainda em suas roupas de dormir, e vem para o nosso colo. Toda a graça, a delicadeza, o consolo e o assombro deste mundo tantas vezes frio e cruel retornam, e nos fazem companhia por mais cansado, aborrecido ou desanimado que a gente esteja – porque às vezes a gente também fica assim.
E, quando resolvi transcrever nesta coluna parte do meu texto sobre o Bosque, pensei que cada um de nós pudesse curtir essa experiência, na paisagem da janela, ainda que uma frestinha de verde entre edifícios; numa caminhada pela praça ou parque; numa viagem de ônibus; ou, melhor ainda, inventar o seu. Plantar um bosque na alma, e curtir a sombra, o vento, a chuva, as crianças, o sossego. Não precisam ser reais. Eu até acho que a realidade não existe: existe o que nós criamos, sentimos, vemos ou simplesmente imaginamos. E é isso que torna a vida suportável. Ou especial.
Fonte: Revista Veja, 27 de abril de 2011
Viuvinha, Flor-de-São-Miguel, Capela-de-viúva, Petréia, Touca-de-viúva, Petrea volubilis
Categoria: Trepadeiras
Clima: Equatorial, Subtropical, Tropical
Origem: América do Sul, Brasil
Altura: 9.0 a 12 metros
Luminosidade: Sol Pleno
Ciclo de Vida: Perene
Trepadeira nativa do Brasil e muito florífera, excelente para recobrir pérgolas, pórticos e caramanchões. As folhas são coriáceas e de margens irregulares e caem no inverno. As flores que se formam em inflorescências grandes como cachos, são azuis-arroxeadas, pequenas e delicadas, de formato estrelado. A floração se dá no final do inverno e início da primavera. Ocorre também uma variedade de flores brancas.
Devem ser cultivadas a pleno sol em solo composto de terra de jardim e terra vegetal, com regas regulares. Necessita de tutoramento para sua formação. Tolerante ao frio. Multiplica-se por sementes e estacas de difícil enraizamento.
18 de set. de 2017
Uma vez eu sonhei que era uma borboleta, :: Chuang-Tzu (século IV a.C.)
Uma vez eu sonhei que era uma borboleta,
voando entre as flores e arbustos do jardim.
Tudo era tão concreto e real
que em momento nenhum do meu sonho
suspeitei que a borboleta era eu
ou que eu fosse a borboleta.
Para todos os efeitos possíveis e imagináveis,
eu era, eu agia e eu realmente me sentia uma borboleta,
cumprindo o destino de uma borboleta qualquer.
De repente, eu acordei
e lá estava eu, sendo a pessoa que eu sempre fui
– ou que sempre imaginei ser.
Sei muito bem
que entre um homem e uma borboleta
há tantas diferenças fundamentais e insuperáveis
que a transformação de um no outro
é algo simplesmente impossível de acontecer no mundo real.
É por isso que, desde então,
eu nunca mais tive sossego
quanto à minha verdadeira identidade.
Pois não há nada que me permita saber,
com toda certeza e rigor,
sem nenhuma margem de dúvida,
se eu sou verdadeiramente um homem,
que um dia sonhou que era uma borboleta,
ou se eu sou uma borboleta,
sonhando que é um homem.
Chuang-Tzu
15 de set. de 2017
Menina :: Ivan Ângelo
“Oh, ela sabia cada vez mais.” (Clarice Lispector, “Perto do coração selvagem”).
Sentar-se, concentrada, contar até um número, por exemplo dez, ou doze, e esperar agudamente um acontecimento importante, era seu exercício mais impreciso, mais despido de maldade, porque ela não escolhia o que ia acontecer, só fazia acontecer.
Havia outros, menos intensos: gritar “aaaa” de olhos fechados e, abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido; colocar a mão molhada na testa e acompanhar aquele sangue mais frio passeando no seu corpo; imóvel e muda, obrigar a fruteira de cristal brilhante a estilhaçar-se no chão com a força do pensamento; passar sem comer um dia inteiro para preocupar a mãe e ouvir deliciada: “Ana Lúcia, você me mata!”.
Entretanto, era o esperar que algo importante acontecesse quando contasse até doze ou dez que lhe dava aquele segundo de vida intenso do qual ela saía sempre um pouco mais velha, e apressava a sua respiração, como um cansaço ou um beijo de Guilherme em Nilsa. Horas depois, ou nos dias seguintes, quando ouvia as pessoas grandes conversarem segredos ou comentarem graves um fato recente, dizia-se, plena de poder, ela mesma perplexa ante suas possibilidades: “Fui eu. Fui eu que fiz.”
Achava péssimo ir à escola, a professora era horrível. As coisas de que mais gostava: pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando até se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Bom mesmo era fazer nada, nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era impossível gozar o momento, sempre passado. Pois quando o sentia, ele já acabara: ela começara a pensar. Ter aquilo na mesma hora seria morrer? – perturbava-se ela com o pensamento, cada vez sabendo mais.
Sim, cada vez sabendo mais. Sempre sentira esse mistério: não ter pai. Ela, que podia tanta coisa, afinava-se embaraçada de não conseguir dizer “papai” do modo de Tita ou Nina. Era a única coisa que faziam melhor do que ela, dizer “papai”. A diferença talvez só ela percebesse, sutil. Sentia que pai era uma coisa que se tem sempre, como mãe, ou roupas. Tita e Nina sabiam que aquela era uma vantagem:
– Quede seu pai, Ana Lúcia?
– Está viajando.
Disseram-lhe isso, já tinha escutado ou inventara? Ah, cada vez sabia mais, sempre mais.
Guilherme e Nilsa não se beijavam perto da mãe. Se ela chegava, as mãos ficavam quietas nas mãos, a respiração ficava mansinha e não havia mais nada interessante para olhar da janela do quarto. Beijar devia ser proibido. Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais).
– Ana Lúcia, seu pai ainda está viajando?
– Está.
– Mentirosa! Sua mãe é desquitada.
Ficou impotente diante da palavra desconhecida. Uma coisa nova, ainda não se podia saber de que lado olhar para possuí-la toda. Desquitada. Desquitada. Jamais perguntaria a Tita, era uma alegria que não lhe daria. Ficou uns instantes sem saber como sair ilesa dessa armadilha. Tita corada e brilhante de prazer na sua frente.
– E o que é que tem isso?
Tita desmontou como um quebra-cabeça, Ana Lúcia balançara o tabuleiro. Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia demais das coisas fora dela, de um gesto, de uma palavra como desquitada ou parto.
Desquitada. Passou dias tentando solucionar sozinha. Seria uma coisa como burra, feia? Não, não parecia. Flor? Flor parecia, mas não explicava nada: orquídeas, rosas, sempre-vivas, desquitadas… Parecia. “Mentirosa! Sua mãe é desquitada.” Tita dissera como quem diz o quê? o quê? o quê? – “sem-vergonha”. Sim!, como quem diz sem-vergonha: olhando de frente e esperando um tapa.
Nesses dias amou a mãe com muita força, amou-a até sentir lágrimas, defendendo-a contra a palavra que poderia feri-la: desquitada, sem-vergonha. Pensava a palavra de leve, com receio de ferir a mãe. Experimentava baixinho torná-la mais suave, molhando-a de lágrimas e amor: desquitadinha, sem-vergonhinha. Mas a palavra sempre agredia, sempre feria.
Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com a tesoura, amava a mãe intensamente, enquanto ela costurava rápida, bonita mesmo, com aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para provar vestidos, a mãe mandava-a sair. Era feio ver gente grande mudar de roupa, a mãe dizia. Saía contrariada por deixá-la exposta à palavra, em perigo. Abria-se a porta, ela entrava de novo, amando, amando.
Estava cansada dessa obrigação e só por isso duvidou de si, subitamente um dia ao tomar leite para dormir: desquitada podia não ser como sem-vergonha! Podia até ser pior, e quem sabe podia ser melhor. Respirando fundo e observando-se, ela seguia pronta para novas descobertas. Refugiou-se no sono.
No dia seguinte recomeçou. Mais uma vez preocupava-se com a palavra, agora não nova, mas mistério, sombra. Não se arriscava a dar um palpite, havia o perigo de outro engano.
A professora feia! pergunta no fim da manhã, recolhendo os cadernos, se alguém tem alguma dúvida. Ana Lúcia acende-se emocionada. Por que não a professora? Talvez ela fosse boa, talvez dissesse logo o que é desquitada, talvez dissesse na mesma hora, sem muitas perguntas como por que você quer saber uma coisa dessas. Levanta-se tímida, insegura. Já de pé, desiste, e não sabe se senta ou chora.
– O que é, Ana Lúcia?
A voz da professora, mansa, mas não ajudando. “Não pergunto, não pergunto” – teima Ana Lúcia, ganhando tempo.
– O que é? – a voz insiste.
As meninas riem, insuportáveis. Helenice e seus dentes enormes impossibilitando tudo. Ana Lúcia sente que vai chorar. Estar perto da mãe é o que mais deseja.
– Sente-se – ordena a professora irritada.
A máquina de costura avançava decidida sobre o pano. Que bonita que a mãe era, com os alfinetes na boca. Gostava de olhá-la calada, estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano com a tesoura.
Interrompia às vezes seu trabalho, era quando a mãe precisava da tesoura. Admirava o jeito decidido da mãe ao cortar pano, não hesitava nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Tita chamava-a de ( ) como quem diz ( ). Tentava não pensar as palavras, mas sabia que na mesma hora da tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo era tão difícil. A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe intensamente agora quase com fome, depressa, depressa antes de morrer, tanto que não se conteve e:
– Mamãe, o que é desquitada? – atirou rápida com uma voz sem timbre.
Tudo ficou suspenso, se alguém gritasse o mundo acabava ou Deus aparecia – sentia Ana Lúcia. Era muito forte aquele instante, forte demais para uma menina, a mãe parada com a tesoura no ar, tudo sem solução podendo desabar a qualquer pensamento, a máquina avançando desgovernada sobre o vestido de seda brilhante espalhando luz luz luz.
A mãe reconstruiu o mundo com uma voz maravilhosa e um riso:
– Eu precisava mesmo explicar para você a situação. Mas você é tão pequena!
Olhou a filha com carinho, procurando o jeito mais hábil. Pouco mais de sete anos, o que poderia entrar naquela cabecinha?
– Desquitada é quando o marido vai embora e a mãe fica cuidando dos filhos.
Pronto, estou livre – sentiu Ana Lúcia. – Desquitada, desquitada, desquitada – repetia sem medo. Sentia-se completa e nova. Alegrou-se por não precisar amar a mãe com aquela força de antes. Sendo apenas uma menina poderia cansar-se e então o que seria da mãe? Bom que desquitada não fosse um insulto. Bom mesmo. Deixava-a livre para pensar e não pensar, coisa tão difícil que
– Marido é o pai? – ela quis confirmar, conquistando áreas que as outras crianças tinham naturalmente. A mãe sorriu e confirmou.
Tita sabia dizer “papai” porque a mãe não era desquitada -ia Ana Lúcia aprendendo, descobrindo. Havia muita coisa em que pensar naquela conversa. Por exemplo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de pai. Essa é uma diferença entre mãe e filha.
Ela sabia cada vez mais.
Para gostar de ler. Editora Ática. volume 10
In: Duas faces. Itatiaia, 1961.
DESQUITE: O termo Desquite foi substituído por Separação Judicial pela Lei 6.515/1977 (Lei do divórcio). Desquite era uma forma de separação do casal e de seus bens materiais, sem romper o vínculo conjugal, o que impedia novos casamentos. O termo desquite faz lembrar algum rompimento conjugal do passado, época em que o casamento era perpétuo e indissolúvel.
Sentar-se, concentrada, contar até um número, por exemplo dez, ou doze, e esperar agudamente um acontecimento importante, era seu exercício mais impreciso, mais despido de maldade, porque ela não escolhia o que ia acontecer, só fazia acontecer.
Havia outros, menos intensos: gritar “aaaa” de olhos fechados e, abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido; colocar a mão molhada na testa e acompanhar aquele sangue mais frio passeando no seu corpo; imóvel e muda, obrigar a fruteira de cristal brilhante a estilhaçar-se no chão com a força do pensamento; passar sem comer um dia inteiro para preocupar a mãe e ouvir deliciada: “Ana Lúcia, você me mata!”.
Entretanto, era o esperar que algo importante acontecesse quando contasse até doze ou dez que lhe dava aquele segundo de vida intenso do qual ela saía sempre um pouco mais velha, e apressava a sua respiração, como um cansaço ou um beijo de Guilherme em Nilsa. Horas depois, ou nos dias seguintes, quando ouvia as pessoas grandes conversarem segredos ou comentarem graves um fato recente, dizia-se, plena de poder, ela mesma perplexa ante suas possibilidades: “Fui eu. Fui eu que fiz.”
Achava péssimo ir à escola, a professora era horrível. As coisas de que mais gostava: pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando até se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Bom mesmo era fazer nada, nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era impossível gozar o momento, sempre passado. Pois quando o sentia, ele já acabara: ela começara a pensar. Ter aquilo na mesma hora seria morrer? – perturbava-se ela com o pensamento, cada vez sabendo mais.
Sim, cada vez sabendo mais. Sempre sentira esse mistério: não ter pai. Ela, que podia tanta coisa, afinava-se embaraçada de não conseguir dizer “papai” do modo de Tita ou Nina. Era a única coisa que faziam melhor do que ela, dizer “papai”. A diferença talvez só ela percebesse, sutil. Sentia que pai era uma coisa que se tem sempre, como mãe, ou roupas. Tita e Nina sabiam que aquela era uma vantagem:
– Quede seu pai, Ana Lúcia?
– Está viajando.
Disseram-lhe isso, já tinha escutado ou inventara? Ah, cada vez sabia mais, sempre mais.
Guilherme e Nilsa não se beijavam perto da mãe. Se ela chegava, as mãos ficavam quietas nas mãos, a respiração ficava mansinha e não havia mais nada interessante para olhar da janela do quarto. Beijar devia ser proibido. Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais).
– Ana Lúcia, seu pai ainda está viajando?
– Está.
– Mentirosa! Sua mãe é desquitada.
Ficou impotente diante da palavra desconhecida. Uma coisa nova, ainda não se podia saber de que lado olhar para possuí-la toda. Desquitada. Desquitada. Jamais perguntaria a Tita, era uma alegria que não lhe daria. Ficou uns instantes sem saber como sair ilesa dessa armadilha. Tita corada e brilhante de prazer na sua frente.
– E o que é que tem isso?
Tita desmontou como um quebra-cabeça, Ana Lúcia balançara o tabuleiro. Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia demais das coisas fora dela, de um gesto, de uma palavra como desquitada ou parto.
Desquitada. Passou dias tentando solucionar sozinha. Seria uma coisa como burra, feia? Não, não parecia. Flor? Flor parecia, mas não explicava nada: orquídeas, rosas, sempre-vivas, desquitadas… Parecia. “Mentirosa! Sua mãe é desquitada.” Tita dissera como quem diz o quê? o quê? o quê? – “sem-vergonha”. Sim!, como quem diz sem-vergonha: olhando de frente e esperando um tapa.
Nesses dias amou a mãe com muita força, amou-a até sentir lágrimas, defendendo-a contra a palavra que poderia feri-la: desquitada, sem-vergonha. Pensava a palavra de leve, com receio de ferir a mãe. Experimentava baixinho torná-la mais suave, molhando-a de lágrimas e amor: desquitadinha, sem-vergonhinha. Mas a palavra sempre agredia, sempre feria.
Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com a tesoura, amava a mãe intensamente, enquanto ela costurava rápida, bonita mesmo, com aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para provar vestidos, a mãe mandava-a sair. Era feio ver gente grande mudar de roupa, a mãe dizia. Saía contrariada por deixá-la exposta à palavra, em perigo. Abria-se a porta, ela entrava de novo, amando, amando.
Estava cansada dessa obrigação e só por isso duvidou de si, subitamente um dia ao tomar leite para dormir: desquitada podia não ser como sem-vergonha! Podia até ser pior, e quem sabe podia ser melhor. Respirando fundo e observando-se, ela seguia pronta para novas descobertas. Refugiou-se no sono.
No dia seguinte recomeçou. Mais uma vez preocupava-se com a palavra, agora não nova, mas mistério, sombra. Não se arriscava a dar um palpite, havia o perigo de outro engano.
A professora feia! pergunta no fim da manhã, recolhendo os cadernos, se alguém tem alguma dúvida. Ana Lúcia acende-se emocionada. Por que não a professora? Talvez ela fosse boa, talvez dissesse logo o que é desquitada, talvez dissesse na mesma hora, sem muitas perguntas como por que você quer saber uma coisa dessas. Levanta-se tímida, insegura. Já de pé, desiste, e não sabe se senta ou chora.
– O que é, Ana Lúcia?
A voz da professora, mansa, mas não ajudando. “Não pergunto, não pergunto” – teima Ana Lúcia, ganhando tempo.
– O que é? – a voz insiste.
As meninas riem, insuportáveis. Helenice e seus dentes enormes impossibilitando tudo. Ana Lúcia sente que vai chorar. Estar perto da mãe é o que mais deseja.
– Sente-se – ordena a professora irritada.
A máquina de costura avançava decidida sobre o pano. Que bonita que a mãe era, com os alfinetes na boca. Gostava de olhá-la calada, estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano com a tesoura.
Interrompia às vezes seu trabalho, era quando a mãe precisava da tesoura. Admirava o jeito decidido da mãe ao cortar pano, não hesitava nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Tita chamava-a de ( ) como quem diz ( ). Tentava não pensar as palavras, mas sabia que na mesma hora da tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo era tão difícil. A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe intensamente agora quase com fome, depressa, depressa antes de morrer, tanto que não se conteve e:
– Mamãe, o que é desquitada? – atirou rápida com uma voz sem timbre.
Tudo ficou suspenso, se alguém gritasse o mundo acabava ou Deus aparecia – sentia Ana Lúcia. Era muito forte aquele instante, forte demais para uma menina, a mãe parada com a tesoura no ar, tudo sem solução podendo desabar a qualquer pensamento, a máquina avançando desgovernada sobre o vestido de seda brilhante espalhando luz luz luz.
A mãe reconstruiu o mundo com uma voz maravilhosa e um riso:
– Eu precisava mesmo explicar para você a situação. Mas você é tão pequena!
Olhou a filha com carinho, procurando o jeito mais hábil. Pouco mais de sete anos, o que poderia entrar naquela cabecinha?
– Desquitada é quando o marido vai embora e a mãe fica cuidando dos filhos.
Pronto, estou livre – sentiu Ana Lúcia. – Desquitada, desquitada, desquitada – repetia sem medo. Sentia-se completa e nova. Alegrou-se por não precisar amar a mãe com aquela força de antes. Sendo apenas uma menina poderia cansar-se e então o que seria da mãe? Bom que desquitada não fosse um insulto. Bom mesmo. Deixava-a livre para pensar e não pensar, coisa tão difícil que
– Marido é o pai? – ela quis confirmar, conquistando áreas que as outras crianças tinham naturalmente. A mãe sorriu e confirmou.
Tita sabia dizer “papai” porque a mãe não era desquitada -ia Ana Lúcia aprendendo, descobrindo. Havia muita coisa em que pensar naquela conversa. Por exemplo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de pai. Essa é uma diferença entre mãe e filha.
Ela sabia cada vez mais.
Para gostar de ler. Editora Ática. volume 10
In: Duas faces. Itatiaia, 1961.
DESQUITE: O termo Desquite foi substituído por Separação Judicial pela Lei 6.515/1977 (Lei do divórcio). Desquite era uma forma de separação do casal e de seus bens materiais, sem romper o vínculo conjugal, o que impedia novos casamentos. O termo desquite faz lembrar algum rompimento conjugal do passado, época em que o casamento era perpétuo e indissolúvel.
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