24 de fev. de 2025

Os Ninguéns ::Eduardo Galeano

Sonham as pulgas em comprar um cão como sonham os Ninguéns em sair da pobreza: que em algum dia mágico a boa sorte chova de repente, que caia a diluviar a boa sorte; mas não chove boa sorte nem ontem e nem hoje, nem amanhã e nem nunca, nem chuviscando ela cai do céu, por mais que peçam os Ninguéns, até mesmo se lhes coça a mão esquerda, ou se levantam com o pé direito, ou começam o ano trocando de vassoura.


Os Ninguéns: filhos de ninguém, donos de nada.


Os Ninguéns: os nenhuns, os ningueneados, a correr atrás da lebre, a morrer a vida, fodidos e refodidos:


Que não são, mesmo sendo.


Que não falam idiomas, e sim dialetos.


Que não professam religiões, mas superstições.


Que não fazem arte, e sim artesanato.


Que não praticam cultura, e sim folclore.


Que não são seres humanos, e sim recursos humanos.


Que não têm rosto, mas braços.


Que não têm nome, mas número.


Que não estão na história universal, mas na crônica avermelhada da imprensa local.


Os Ninguéns, que custam menos que a bala que os mata.


Tradução: Roy Sollon

.....


Los nadies


SUEÑAN las pulgas con comprarse un perro y sueñan los nadies con salir de pobres, que algún mágico día llueva de pronto la buena suerte, que llueva a cántaros la buena suerte; pero la buena suerte no llueve ayer, ni hoy, ni mañana, ni nunca, ni en lloviznita cae del cielo la buena suerte, por mucho que los nadies la llamen y aunque les pique la mano izquierda, o se levanten con el pie dere-cho, o empiecen el año cambiando de escoba.


Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada.


Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos:


Que no son, aunque sean.


Que no hablan idiomas, sino dialectos.


Que no profesan religiones, sino supersticiones.


Que no hacen arte, sino artesanía.


Que no practican cultura, sino folklore.


Que no son seres humanos, sino recursos humanos.


Que no tienen cara, sino brazos.


Que no tienen nombre, sino número.


Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local.


Los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.


Eduardo Galeano, Los nadies, El libro de los abrazos (1989).




22 de fev. de 2025

Lugares comuns :: Ana Luísa Amaral ,1956.

 


 

Entrei em Londres

num café manhoso (não é só entre nós

que há cafés manhosos, os ingleses também,

e eles tiveram mais coisas, agora

é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas

ilhotazinhas, mais adiante)


Entrei em Londres

num café manhoso, pior ainda que um nosso bar

de praia (isto é só para quem não sabe

fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era

mesmo muito manhoso,

não é que fosse mal intencionado, era manhoso

na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha

suja. Muito rasca.


Claro que os meus preconceitos todos

de mulher me vieram ao de cima, porque o café

só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate

(se fosse em Portugal era sandes de queijo),

mas pensei: Estou em Londres, estou

sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses

até nem se metem como os nossos

e por aí fora...


E lá entrei no café manhoso, de árvore

de plástico ao canto.

Foi só depois de entrar que vi uma mulher

sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me

mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.

Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e

depois eu


Lá pedi o café, que não era nada mau

para café manhoso como aquele e o homem

que me serviu disse: There you are, love.

Apeteceu-me responder: I'm not your bloody love ou

Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois

pensei: Já lhes está tão entranhado

nas culturas e a intenção não era má, e também

vou-me embora daqui a pouco, tenho avião

quero lá saber


E paguei o café, que não era nada mau,

e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta

a ver a tribo toda a comer ovos e presunto

e depois vi as horas e pensei que o táxi

estava a chegar e eu tinha que sair.

E quando me ia a levantar, a mulher sorriu

Como quem diz: That's it.


e olhou assim à sua volta para o presunto

e os ovos e os homens todos a comer

e eu senti-me mais forte, não sei porquê,

mas senti-me mais forte

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,

que em toda parte

as mesmas coisas são

7 de fev. de 2025

Alvorada :: Cartola ( Agenor de Oliveira)




Alvorada lá no morro, que beleza

Ninguém chora, não há tristeza

Ninguém sente dissabor

O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo

E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo

Você também me lembra a alvorada

Quando chega iluminando

Meus caminhos tão sem vida

E o que me resta é bem pouco

Quase nada, de que ir assim

Vagando numa estrada perdida

Alvorada...

Alvorada lá no morro, que beleza

Ninguém chora, não há tristeza

Ninguém sente dissabor

O sol colorindo...




Compositores: Carlos Moreira De Castro / Agenor de Oliveira  / Zilda Goncalves

3 de fev. de 2025

CASA EXAUSTA :: Marcílio Godoi

 

Tiramos o sábado pra trocar umas lâmpadas

fazer pequenos reparos pela casa

as torneiras com coriza

e a instalação de bienal

em nossos armários.


Tiramos o sábado pra passar

ramos de faxina pela casa toda

acariciar cada canto de sua planta

com a planta bassoura enfeixada

trocando o pó e o mofo

por perfume de lavanda e alecrim.


Tiramos o sábado pra ajeitar

o depósito, o quartinho,

como é carinhosamente chamado

por todos lá de casa

talvez pra compensar o descuido

com que o inoperamos.


Tiramos o sábado pra fazer

respirar sótão e porão,

massageando-lhes o coração

suas caixas adiadas

suas teias, traças e ratos

seus contratos imemoriais

inexoravelmente vencidos.


Tiramos o sábado inteiro

pra retocar o grelado da parede

atrás dos livros, meio úmidos,

dos documentos desguarnecidos

e aparar o mato que já cobria as janelas

tornando sem sol as páginas

de nossas manhãs.


Sábado passado, tiramos

o abandono e o dia todo

em pequenos gestos

as mãos no trabalho de súplica

fazendo um apelo à casa,

como imploramos ao País,

que nunca desista de nós.

25 de jan. de 2025

Carlos Drummond de Andrade:: Relógio do Rosário

Era tão claro o dia, mas a treva,

do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.




ANDRADE, Carlos Drummond de. "Claro enigma". In:_____Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

14 de jan. de 2025

REI MENINO :: Marcílio Godoi

 No galho mais firme da goiabeira

ergo meu trono de Rei menino.


Pássaros ressoam-me trombetas triunfantes

enquanto tatus-bolas passam-me a guarda imperial.


Galhadas insinuantes ao vento coroam-me

com louros perfumados de doce de tacho

e oferecem-me de bandeja deliciosos frutos

verdes, pois que os maduros têm bicho.


Corto a flor das ramagens e condecoro-me

nobre guerreiro a mim mesmo.

Afinal, os dragões brancos dos frutos maduros

foram todos dizimados pela minha ousada política

de antecipação da colheita.


Sob a copa de meu castelo

dois bambus estirados num arame

esvoaçam seus panos à minha glória

bandeira, capa, espada e lança

da minha insigne última batalha

contra os feudos vizinhos de além muro.


Do honroso combate hercúleo

resultaram muitas baixas

mas agora tudo está em paz

no Reino da Goiabas Verdes...


Esperem, ainda não!


Atrás dos manacás da cerca viva

espreitam-me outra vez

os malditos carrapatos

espalhados em minas de carrapichos

por todo o terreno! 


Com meu vasto arsenal de mamonas,

entretanto, com alto poder

de destruição em massa

resistirei bravamente, em posição de sentido

até a morte, se preciso for!


Alto lá! por motivo de força maior

missão abortada, atenção!

Descansar, súditos!


Uma ordem, de repente, nos detém a todos:

Lição de casa, volver!



7 de jan. de 2025

O gato e o pássaro :: Jacques Prévert

O gato e o pássaro

Uma cidade escuta desolada

O canto de um pássaro ferido

É o único pássaro da cidade

E foi o único gato da cidade

Que o devorou pela metade

E o pássaro deixa de cantar

E o gato deixa de ronronar

E de lamber o focinho

E a cidade prepara para o pássaro

Funerais maravilhosos

E o gato que foi convidado

Segue o caixãozinho de palha

Em que deitado está o pássaro morto

Levado por uma menina

Que não pára de chorar

Se soubesse que você ia sofrer tanto

Lhe diz o gato

Teria comido ele todinho

E depois teria te dito

Que tinha visto ele voar

Voar até o fim do mundo

Lá onde o longe é tão longe

Que de lá não se volta mais

Você teria sofrido menos

Só tristeza e saudades

É preciso nunca fazer as coisas pela metade.


Imagem pixabay






29 de dez. de 2024

A CERCA, O CÓRREGO :: Marcílio Godoi

 


Quando falava de suas poucas reservas, de saúde e de dinheiro, meu velho pai dizia, “talvez dê pra chegar com a cerca no córrego!”. Desde sempre era isso, e a gente assim, nesse mistério, que cerca é essa? Que córrego é esse, meu deus?


Agora me encontro na mesma idade em que ele andava pela casa dizendo coisas como “cumê mais pôco, cumê mais pôco!”. E, claro, essa eterna indefectível e um tanto indecifrável imagem da cerca chegando lá embaixo, no córrego, que eu adoro.


O tempo me tirou muita coisa, devo reconhecer, mas com outras ele generosamente me presenteou. Saber fluentemente a língua do seu Marciano foi uma delas.


Não gosto de explicar imagem nenhuma a ninguém, traduzir é trair, pois que, como na poesia, se explicar, “trapaia tudo”. Mas hoje minha médica me deu o diagnóstico dela sobre o sopro que tenho no coração — sim, além de cabelos, perdi colágeno e elastina. 


Ela analisou os meus exames e proferiu o veredito: você “renovou o seu visto para mais uma temporada”. Fiquei feliz com a imagem alvissareira. E respondi: Quer dizer então que eu vou chegar com a cerca no córrego? — Então ela respondeu: Oi?


Aí tive que explicar a ela a metáfora do velho, que a cerca são os paus e o arame que a gente vai gastando para delimitar nossa passagem por aqui. Uma figura simples, trazida do léxico sertanejo, do fazer e do trazer que compõe a vida propriamente dita. Sendo o córrego, sua divisa, seu limite, ou, por assim dizer, a morte mesmo. Sendo que, finalizei, sobre o outro lado do córrego, nada se pode dizer.


No idioma marciano, Dra. Fernanda, chegar com a cerca no córrego é isso: humildemente fazer empatar nossos recursos com nossa existência, uma espécie de realização, de prodígio, que justifica, ao final, a nossa passagem por aqui.


Há uma certa dignidade em se poder dizer isso, não é mesmo? É como afirmar, senão a consagração, ao menos o cumprimento daquilo que foi acertado ao nascer: não deixar que falte pau nem arame ainda se estando muito longe do córrego da morte. Os gregos não têm o Aqueronte, rio que leva ao Hades, o reino dos mortos? Pois então.


Ela sorriu, gostou de ouvir meu pequeno devaneio de sobrevivente. Agora, enquanto escrevo, é que me dou conta, final de ano, a gente sempre fica meio bobo, né? E fica imaginando essas coisas, teremos estoque para mais uma jornada na terra? Estaremos bem aqui, esticando arame, fincando nossas modestas estacas no chão do agora?


Tudo isso lembra um pouco a feliz imagem do pau e da pedra no fim do caminho, do resto de toco um pouco sozinho que o Jobim magistralmente nos legou em Águas de Março.


Feliz 2025 pra você, doutora, obrigado por carimbar meu visto! 

Cinco Elegias :: Hilda Hilst

Eugene Boudin Não te espantes da vontade Do poeta Em transmudar-se: Quero e queria ser boi Ser flor Ser paisagem. Sentir a brisa da tarde Ol...