31 de mar. de 2012

Aguardo, equânime, o que não conheço — Fernando Pessoa


Aguardo, equânime, o que não conheço —
Meu futuro e o de tudo.
No fim tudo será silêncio, salvo
Onde o mar banhar nada.

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). - 156.

30 de mar. de 2012

Duy Huynh, pintor vietnamita






São Francisco de Vinícius de Moraes e Paulo Soledade



Afresco na Basilica Superior de São Francisco em Assis, de Giotto.

Lá vai São Francisco
Pelo caminho
De pé descalço
Tão pobrezinho
Dormindo à noite
Junto ao moinho
Bebendo a água
Do ribeirinho.

Lá vai São Francisco
De pé no chão
Levando nada 
No seu surrão
Dizendo ao vento
Bom-dia, amigo
Dizendo ao fogo
Saúde, irmão.

Lá vai São Francisco
Pelo caminho
Levando ao colo
Jesuscristinho
Fazendo festa
No menininho
Contando histórias
Pros passarinhos.


29 de mar. de 2012

Beleza


Hipótese



A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. 
A gente nasce, isto é, começa a piscar. [...] 
a vida das gentes deste mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas. 
Cada pisco é um dia. 
Pisca e mama;  pisca e anda;  pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos;  pisca e geme os reumatismos;
por fim pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre? - pergunta o Visconde.
- Depois que morre? Vira hipótese!
  É ou não é?
Emília, Monteiro Lobato 

28 de mar. de 2012

A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver de Fernando Pessoa


A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida a acção, a acção, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.
fonte: Livro do Desassossego. Vol.II. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1990. - 500.

Não basta abrir a janela de Fernando Pessoa / Alberto Caieiro



Não basta abrir a janela

Para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 75. 

26 de mar. de 2012

La jardinera de Violeta Parra




(...)
Para mi tristeza, violeta azul,
clavelina roja pa’ mi pasión,
y, para saber si me corresponde,
deshojo un blanco manzanillón:
si me quiere –mucho, poquito, nada–,
tranquilo queda mi corazón.

Creciendo irán poco a poco
los alegres pensamientos.
Cuando ya estén florecidos,
irá lejos tu recuerdo.

De la flor de la amapola
seré su mejor amiga.
La pondré bajo la almohada
para dormirme tranquila.

Cogollo de toronjil*,
cuando me aumenten las penas,
las flores de mi jardín
han de ser mis enfermeras.

Y si acaso yo me ausento
antes que tú te arrepientas,
heredarás estas flores:
¡ven a curarte con ellas!


cogollo de toronjil - broto de erva-cidreira 
http://www.youtube.com/watch?v=7-8W_NbhzjI

25 de mar. de 2012

A vida não está por ordem alfabética de Antonio Tabucchi

Portinari 

A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge... ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são miga­lhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e este grão que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado... até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas. in 'Tristano Morre'

Antonio Tabucchi faleceu no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, em 25 de março de 2012, aos 68 anos.

Mario Benedetti Asunción de tí


(...)
Puedes querer el alba 
cuando ames. 
Puedes 
venir a reclamarte como eras. 
He conservado intacto tu paisaje. 
Lo dejaré en tus manos 
cuando éstas lleguen, como siempre, 
anunciándote. 
Puedes 
venir a reclamarte como eras. 
Aunque ya no seas tú. 
Aunque mi voz te espere 
sola en su azar 
quemando 
y tu dueño sea eso y mucho más. 
Puedes amar el alba 
cuando quieras. 
Mi soledad ha aprendido a ostentarte. 
Esta noche, otra noche 
tú estarás 
y volverá a gemir el tiempo giratorio 
y los labios dirán 
esta paz ahora esta paz ahora. 
Ahora puedes venir a reclamarte, 
penetrar en tus sábanas de alegre angustia, 
reconocer tu tibio corazón sin excusas, 
los cuadros persuadidos, 
saberte aquí. 
Habrá para vivir cualquier huida 
y el momento de la espuma y el sol 
que aquí permanecieron. 
Habrá para aprender otra piedad 
y el momento del sueño y el amor 
que aquí permanecieron. 
Esta noche, otra noche 
tú estarás, 
tibia estarás al alcance de mis ojos, 
lejos ya de la ausencia que no nos pertenece. 
He conservado intacto tu paisaje 
pero no sé hasta dónde está intacto sin ti, 
sin que tú le prometas horizontes de niebla, 
sin que tú le reclames su ventana de arena. 
Puedes querer el alba cuando ames. 
Debes venir a reclamarte como eras. 
Aunque ya no seas tú, 
aunque contigo traigas 
dolor y otros milagros. 
Aunque seas otro rostro 
de tu cielo hacia mí.

24 de mar. de 2012

Duas bagatelas de Paulo Henriques de Britto

Então viver é ísso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vicio,
só isso.

De Liturgia da matéria (1982)

Joaquín Sorolla y Bastida














Joaquín Sorolla y Bastida (Espanha 1863 -1923)

23 de mar. de 2012

Ao que é temporal chamar eterno de Octavio Paz



"[...] Amamos um ser mortal como se fosse imortal. Lope disse isso melhor: ao que é temporal chamar eterno. Sim, somos mortais, somos filhos do tempo e ninguém se salva da morte. Não só sabemos que vamos morrer como a pessoa que amamos também vai morrer. Somos os joguetes do tempo e de seus acidentes: a doença e a velhice, que desfiguram o corpo e extraviam a alma. Mas o amor é uma das respostas que o homem inventou para olhar de frente a morte. Pelo amor roubamos ao tempo que nos mata umas quantas horas que transformamos, às vezes em paraíso e outras em inferno. De ambas as formas o tempo se distende e deixa de ser uma medida. Mais além da felicidade ou infelicidade, embora seja as duas coisas, o amor é intensidade; não nos presenteia com a eternidade mas sim com a vivacidade, esse minuto no qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço - aqui é mais além e agora é sempre. No amor tudo é dois e tudo tende a ser um."

Paz, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994. p.117-8

O amarelo é como estar em festa a cada dia








Coruja







Na mitologia grega, a coruja era a mascote da deusa Atena, geralmente relacionada à Lua. Ave noturna, ela possui os olhos adaptados para localizar suas presas sob a fraca luminosidade do luar, não suportando, por isso mesmo, a luz do Sol. Para os antigos gregos, esse olhar tornou as corujas símbolo do conhecimento racional, em oposição ao conhecimento intuitivo. O primeiro tipo de conhecimento vem da reflexão racional sobre os fatos, enquanto a intuição vem da percepção simples e imediata das coisas. Ora, como as corujas se orientam pela reflexão (da luz solar na Lua) e não pela percepção direta (da luz solar), os gregos as associaram ao conhecimento, fruto da reflexão e da sabedoria.
fonte: http://super.abril.com.br/superarquivo/1990/conteudo_111926.shtml

22 de mar. de 2012

Se Enamora - Cantora Tiê


Quando você chega na classe
Nem sabe
Quanta diferença que faz
E às vezes
Faço que não vejo e nem ligo
E finjo, ser distraída demais

Quantas vezes te desenhei
Mas não consigo
Ver o teu sorriso no fim
Te sigo
Caminhando pelo recreio
Quem sabe
Você tropeça em mim

Se enamora
Quem vê você chegar com tantas cores
E vê você passar perto das flores
Parece que elas querem te roubar

Se enamora
Quem vê você chegar com tantos sonhos
E os olhos tão ligados nesses sonhos
Tesouros de um amor que vai chegar

Quando toca o despertador
De manhãzinha
Me levanto e vou me arrumar
E vejo
A felicidade no espelho
Sorrindo
Claro que vou te encontrar

Fico só pensando em você
E juro
Que vou te tirar pra dançar
Um dia
Mas uma canção é tão pouco
Nem cabe
Tudo que eu quero falar

Se enamora
Quem vê você chegar com tantas cores
E vê você passar perto das flores
Parece que elas querem te roubar

Se enamora
Quem vê você chegar com tantos sonhos
E os olhos tão ligados nesses sonhos
Tesouros de um amor que vai chegar

Se enamora
E fica tão difícil
De ir embora
E às vezes escondido
A gente chora
E chora mesmo sem saber porque
Se enamora
A gente de repente
Se enamora
E sente que o amor
Chegou na hora
E agora gosto muito de você

El Colibrí y la Flor de Silvio Rodriguez


Creció una flor a orillas de una fuente,
más pura que la flor de la ilusión
y el huracán tronchola de repente,
cayendo al agua la preciosa flor.

un colibrí que en su enramaje estaba
corrió a salvarla solícito y veloz,
y cada vez que con el pico la tocaba,
sumergíase en el agua con la flor.

el colibrí la persiguió constante
sin dejar de buscarla en su aflicción
y cayendo desmayado en la corriente
corrió la misma suerte que la flor.

Así hay en este mundo seres
que la vida cuesta un tesoro.
yo soy el colibrí si tú me quieres,
mi pasión es el torrente y tú la flor.

http://www.youtube.com/watch?v=ra2j3AhNzco

21 de mar. de 2012

Encaixe no mundo de Charles Schulz


Fala, amendoeira de Carlos Drummond de Andrade



Fala, amendoeira – por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

-- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

-- E vais outoneando sozinha?

-- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

-- Somos todos assim.

-- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

-- Não me entristeças.

-- Não, querido, sou tua árvore-de-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonize com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-se com dignidade, meu velho.

20 de mar. de 2012

As palavras mais preciosas de Chico Buarque


"A horas mortas, eu corria os olhos pela minha prateleira repleta de livros gêmeos, escolhia um a esmo e o abria a bel-prazer. Então anotava num moleskine as palavras mais preciosas, a fim de esmerar o vocabulário com que eu embasbacaria as moças e esmagaria meus rivais."
Chico Buarque no prefácio do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa: Ideias Afins/Thesaurus de Francisco Ferreira Dos Santos Azevedo. LEXIKON, 2010.

Libertinagem de Manuel Bandeira


Não sei dançar
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!

(...) (Libertinagem, Manuel Bandeira)

19 de mar. de 2012

Fellini - Gosto de, não gosto de ...


As minhas estranhas dores de Samuel Beckett

No entanto hei-de falar-vos delas um dia, se me lembrar, se puder, das minhas estranhas dores, em pormenor, distinguindo entre os diferentes gêneros, para maior clareza, as do entendimento, as do coração ou afetivas, as da alma (mais bonitas não há) e finalmente as do corpo propriamente dito, primeiro as internas ou latentes, depois as da superfície, começando pelo cabelo e couro cabeludo e descendo metodicamente, sem pressas, até aos adorados pés, lugar dos calos, caibras, frieiras, joanetes, unhas encravadas, pústulas, gangrena, pé boto, pé de pato, pé-de-galo, pé-de-cabra, pé chato, pé de atleta e outras bizarrias. E, aos que tiverem a gentileza de me ouvir, falarei também, na mesma ocasião, de acordo com um sistema inventado já não me lembro por quem, daqueles instantes em que, sem se estar drogado, nem bêbado, nem em êxtase, não se sente nada.
Samuel Beckett in Primeiro Amor

Su Blackwell e os livros-escultura





fonte: http://www.sublackwell.co.uk/

18 de mar. de 2012

Em rede de algodão rendada de Guimarães Rosa



Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo uma moça. Otacília. Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava mais linda, me saudou com o salvável carinho, adianto de amor.
João Guimarães Rosa in: Grande Sertão: Veredas

17 de mar. de 2012

Zebrinha de Wania Amarante




Coitada da Zebra!
É tão pobrezinha!
Só tem uma roupa
A coitadinha!
Dorme de pijama,
Pijama de listrinhas
E passa dias inteiros
Vestida de pijaminha.
Que tal a gente se juntar
E fazer uma vaquinha
pra comprar pra zebrinha
vestido de bolinha?

In: AMARANTE, Wania. Cobras e Lagartos. Belo Horizonte, Miguilim, 1987

16 de mar. de 2012

Acalanto de Paulo Henriques Britto


Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de urna dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, e um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
no aconchego de um outro corpo morno. 

fonte: BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Ode ao gato de José Jorge Letria



Tu e eu temos de permeio 
a rebeldia que desassossega, 
a matéria compulsiva dos sentidos. 
Que ninguém nos dome, 
que ninguém tente 
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza, 
pois nós temos fôlegos largos 
de vento e de névoa 
para de novo nos erguermos 
e, sobre o desconsolo dos escombros, 
formarmos o salto 
que leva à glória ou à morte, 
conforme a harmonia dos astros 
e a regra elementar do destino. 

in Animália Odes aos Bichos