Mostrando postagens com marcador Semente. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Semente. Mostrar todas as postagens

21 de out. de 2021

Exausto de Adélia Prado


Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

23 de ago. de 2016

O remo sou eu mesmo... Mia Couto


Meu pai me queria confessar intimidades. Que o avô tinha falado com ele. E lhe mostrara como ele, o meu pai, não sendo o mais idoso era o mais envelhecido de todos nós. Porque era o mais desistido de tudo, o mais alheio ao alento e à crença. Aquela chuva se imobilizava junto ao solo? Pois também ele, o meu pasmado pai, tinha estancado junto à vida. O avô entendera o porquê da desistência de meu pai viver, o falir da sua esperança. O verdadeiro motivo daquela modorra não era ele ter estado, anos e vidas, fechado nas minas. Todo homem, afinal, está sempre saindo de um subterrâneo escuro. É por isso que tememos os bichos que vivem nas tocas -, partilhamos com eles esse mundo feito de trevas, segredos murmurados por demónios em chamas. O verdadeiro motivo de meu pai ter desistido era porque ele se pensava como o centro de si mesmo. Meu pai estava entupido de si próprio. Ele fora sufocado pelo seu umbigo.
      A solução era sair de dentro de si, arregaçar as mangas e os braços, arregaçar a alma inteira e tomar a dianteira sobre o destino.
      - Você já escavou no fundo da terra. Escave agora no céu.
      Foi assim que o avô falou. Meu pai entendeu, sem mais explicação. O avô queria a viagem. Na outra margem estava Ntoweni. Do outro lado do chuvilho estava um rio parado.
      A canoa e mais a viagem fariam a ponte que faltava.
      - A ponte entre o rio e a chuva? - perguntei.
      - A ponte entre eu e você, meu filho.
      Sim, porque a ponte entre ele e minha mãe já estaria refeita, a paixão renascida da cinza pela fagulha do ciúme.
      - Eu me sinto na boca da mina, espreitando a claridade. Sua mãe me dá à luz. É isso que eu sinto. Você lembra como dizia o avô?
      Dizia? Meu pai já falava do avô no passado. Abanei a cabeça em recusa desse tempo de verbo mais do que em resposta a meu pai.
      - O amor não é a semente. O amor é o semear. Era assim que o mais-velho dizia.
      Nos erguemos, sem pressa, para subir a ladeira. Meu velho espiou-me o semblante para confirmar a minha tristeza.
      - Não fique triste, filho. Que tudo isso é um engano. Não é o morrer que é para sempre. O nascer é que é para sempre.
      E fomos buscar o avô. Trouxemo-lo nos braços como se ele fosse uma criança. Depois o deitámos no barco. Meu pai apontou a proa em direcção ao mar. Eu coloquei os remos dentro da canoa. Mas ele devolveu-mos.
      - Não preciso. O remo sou eu mesmo...
fonte: A Chuva Pasmada. Editorial Caminho, 2004.

4 de nov. de 2015

O Buraco :: Arnaldo Antunes

Paul Gauguin, 1892

o buraco ensina a caber
a semente ensina a não caber em si
a terra sabe receber
a caveira ri
o céu ensina a tudo caber
o corpo cabe
a terra sabe receber
o cadáver

corpo enterrado
sobre corpo enterrado
adubando o chão
a morrer
ninguém foi ensinado
e todos morrerão

a chuva ensina a chorar
o tempo ensina a parar de chover
a terra sabe receber
a chuva
o buraco ensina tudo a acabar
no fundo
a terra sabe receber
o defunto

corpo enterrado
sobre corpo enterrado
adubando o chão
a morrer
ninguém foi ensinado
e todos morrerão

1 de nov. de 2014

O milagre existe :: Clarice Lispector


"Não, não há razão de espanto:
o milagre existe: o milagre é uma sensação.
Sensação de quê? de milagre. 
Milagre é uma atitude assim como o girassol vira lentamente 
sua abundante corola para o sol.
O milagre é a simplicidade última de existir. 
O milagre é o riquíssimo girassol se explodir de caule,
corola e raiz - e ser apenas uma semente. 
Semente que contém o futuro."
fonte:  Um Sopro de Vida

12 de abr. de 2014

Amor de sombras de ocasos e de ovelhas :: Hilda Hilst

Felix Vallotton, 1913
Amor de sombras de ocasos e de ovelhas.
Volto como quem soma a vida inteira
A todos os outonos. Volto novíssima, incoerente
Cógnita
Como quem vê e escuta o cerne da semente
E da altura de dentro já lhe sabe o nome.

E reverdeço
No rosa de umas tangerinas
E nos azuis de todos os começos.


 fonte: Amavisse, 1989

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...