Sou daquelas pessoas que guardam lembranças bastante remotas. Algumas, tão distanciadas, que vejo-me incapaz de identificar com exatidão em que circunstância ocorreram – se é que ocorreram. Sim, porque a memória é uma narrativa concebida a partir de recordações evocadas por cheiros, imagens, barulhos, gostos ou sensações que impregnam a pele. Ao longo da nossa história vivenciamos tantas experiências, e tão diversas, que tornaria impossível acumulá-las como sucederam. Então, para não sobrecarregarmo-nos, penduramos esses acontecimentos em fios tênues que, aos poucos, rompem-se, convertendo-se em vestígios esparramados às nossas costas.
A realidade não deixa marcas no corpo, mas impressões fugidias na mente, pois a experiência é sempre subjetiva. Por exemplo: embora filhos da mesma mãe e do mesmo pai, minha irmã e eu descrevemos personagens diferentes como pai e mãe, porque nos relacionamos com eles de maneira diversa. Além disso, a memória atualiza-se: sucedidos que tiveram determinado significado num momento ganham outra relevância no momento seguinte, porque aquele que fui não é este que sou agora. Mais ou menos como quando nos deparamos com um bom livro, cuja apreensão transmuda-se a cada nova leitura. As palavras não se modificam, mas altera-se nosso entendimento do mundo na medida em que escoa o tempo.
Como conservamos dos episódios somente fragmentos, não hesitamos em incorporar lembranças alheias para compor nossas próprias recordações. Relatos de parentes sobre nossa infância, histórias entreouvidas de amigos a respeito de suas famílias, cenas assistidas em filmes, passagens de romances, nossa imaginação, tudo serve para preencher os hiatos e dar sentido à narrativa, que, partindo da invocação de um evento concreto situado no passado, desenvolve-se como fabulação. Se selecionamos os fatos que permanecem arquivados em chaves sensoriais, se o presente contamina o passado, se incorporamos ao nosso os relatos alheios, podemos concluir que a memória, assentada em reconstruções, não contabiliza reminiscências individuais, mas experiências subjetivas. O que fomos ontem existe apenas no que somos hoje – o passado é uma invenção projetada desde o futuro, eternizado no agora.
Apenas duas fotografias cristalizaram meu rosto na infância. O retrato mais antigo exibe um rosto triste ilustrando um corpo franzino revestido de roupas pobres: calção de tecido ordinário, blusa de flanela mal enjambrada, chinelos de dedo gastos. Tenho cinco anos, estou em frente a uma casa longe do meu bairro, ao lado de um casal que desconheço, imerso na tarde fria para sempre perdida. O outro retrato revela duas crianças, uma delas, enfiada na melhor roupa domingueira, exibe os mesmos olhos melancólicos, as mesmas pernas finas, a mesma desolação. Tenho seis anos, estou num estúdio, porque é aniversário do meu colega, Teodorico – como fazíamos anos na mesma data, a mãe dele, de pena, ajuntou-me ao flagrante.
Que passado reconstruo quando avoco o instante dessas fotografias? Estou lá, admito: reconheço-me, mas estranho-me, décadas me separam de mim mesmo. Aquela criança que existiu em mim subsiste no adulto apenas como hipótese. Cada período da minha vida engendrou um indivíduo distinto, que, embora alicerçado em bases comuns, edificou sua própria história. Para reconhecer-me no que fui, reconstituo-me com o manancial de que sou estruturado hoje. Por isso, cada recordação dos dias antigos é a lembrança de uma das minhas várias vidas passadas.
fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/13/opinion
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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12 de out. de 2015
24 de ago. de 2015
A rendeira :: ESPÍNOLA, Adriano
Odilon Redon, 1901
Na teia da manhã que se desvela
a rendeira compõe seu labirinto,
movendo sem saber e por instinto
a rede dos instantes numa tela.
Ponto a ponto, paciente,tenta ela
traçar no branco linho mais distinto
a trama de um desenho tão sucinto
como a jornada humana se revela.
Em frente, o mar desfia a eternidade
noutra tela de espuma e esquecimento,
enquanto, entrelaçado, o pensamento
costura sobre o sonho a realidade.
Em que perdida tela mais extrema
foi tecida a rendeira e este poema?
Beira-sol. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997
7 de ago. de 2015
Sobre a pintura de um ramo florido "Primavera Precoce", de Wang Primavera Precoce :: Su Dong Po
Zhao Chang
Quem disse que a pintura deve parecer-se com a realidade?
Quem o disse vê com olhos de não entendimento
Quem disse que o poema deve ter um tema?
Quem o disse perde a poesia do poema
Pintura e poesia têm o mesmo fim:
Frescura límpida, arte para além da arte
Os pardais de Bain Lun piam no papel
As flores de Zhao Chang palpitam
Porém o que são ao lado destes rolos
Pensamentos-linhas, manchas-espíritos?
Quem teria pensado que um pontinho vermelho
Provocaria o desabrochar da primavera?
18 de mar. de 2015
Vive : Fernando Pessoa
Felix Vallotton
Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar
nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
Poemas Inconjuntos
In: Fernando Pessoa – Antologia Poética.
Editora Ulisses
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar
nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
Poemas Inconjuntos
In: Fernando Pessoa – Antologia Poética.
Editora Ulisses
25 de dez. de 2014
Não serei o poeta de um mundo caduco :: Carlos Drummond de Andrade
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Sentimento do mundo. Rio de Janeiro : Pongetti, 1940.
11 de nov. de 2014
Um corpo :: Adélia Prado
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
4 de nov. de 2014
Quando vim da minha terra :: Wislawa Szymborska
Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.
Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é conseqüência
de um certo nascer ali.
Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.
Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.
Novas coisas sucedendo-se
iludem a nossa fome
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
do mais obscuro real,
essa ferida alastrada
na pele de nossas almas.
Quando vim da minha terra
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado,
enganoso.
28 de out. de 2014
O homem, quando jovem :: HÉLIO PELLEGRINO.
"O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio.
Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma.
Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome."
Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma.
Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome."
17 de jun. de 2014
Amizade :: Simone WEIL
Nikolay Bogdanov-Belsky
Não se deixe aprisionar por nenhuma afeição. Preserve sua solidão. No dia, se porventura ele chegar, em que uma verdadeira afeição lhe for dada, não haverá oposição entre a solidão interior e a amizade, pelo contrário. É inclusive por esse sinal infalível que você a reconhecerá.
WEIL, Simone. A gravidade e a graça. São Paulo: Martins Fontes. p.72.
25 de mar. de 2014
Falem se parar de Paulo Henriques Britto
Octavio Ocampo
A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.
Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.
Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída – falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o “porquê”, o sim”,
todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem se parar. Mesmo sem assunto.
do livro Macau
2 de mar. de 2014
O pastor amoroso perdeu o cajado de Fernando Pessoa
O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo;
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.
10-7-1930
30 de ago. de 2013
Hoje não escrevo de Carlos Drummond de Andrade
Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos.
Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.
17 de ago. de 2013
T.S. Elliot Quatro Quartetos
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espirito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisíveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos com eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, reflectidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente.. contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o gênero humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
T.S. Elliot. Quatro Quartetos. Tradução de Maria Amélia Neto. 3ª edição. ÁTICA, 1983
5 de fev. de 2013
Poesia de Paulo Henriques Britto
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme inacessível?
Vejamos só os anúncios.
São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.
30 de jan. de 2013
Para Maria da Graça – Paulo Mendes Campos
Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: “A minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo” Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor. Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
fonte: Primeiras leituras: crônicas. Boa Companhia, 2012
4 de nov. de 2012
11 de ago. de 2012
A terceira margem do rio de Hélio Pellegrino
Com
o passar do tempo, e em virtude do processo de minha própria maturação,
percebo, literalmente, que não posso viver de ilusão. Os objetos externos se
impõem, cada vez mais e, com sua autonomia, me fazem perceber as falhas de meus
jogos – e dispositivos – imaginários. Preciso da realidade e dos outros, cada vez
com mais urgência. A negação da realidade, pela qual construí meu sentimento de
completude narcísica, tem que agora ser, por sua vez, negada. A negação dessa
negação é o simbólico. Perco a capacidade de fechar os olhos ao mundo, através
de minhas construções imaginárias mas, abrindo mão delas, vou simbolizá-las, no
mundo exterior segundo as leis que o regem e, acima de tudo, segundo as leis da
linguagem e da cultura. A linguagem, portanto, é a terceira margem do rio,
confluência do sonho e da realidade, núpcias da pulsão e do Logos, que, no
transporte da paixão, engendra o verbo. Há quem pense que, com a dominância do
princípio da realidade, o sonho se acabe. Em verdade, não acaba nunca. O sonho
é centelha que salta do desejo e é através dela que vou acender as fogueiras
através das quais o rosto do mundo se ilumina. O sonho, levado aos ombros da realidade,
que o simboliza, é o projeto profundo do homem e a teleologia da história. O
sonho, vivido, enraizado no real, que o suporta, vai ser a matriz da utopia, o
eixo das grandes transformações que fazem a grandeza do processo civilizatório.
Pellegrino, Hélio. Édipo e Paixão in: Os Sentidos da Paixão . Companhia das Letras, São Paulo, 1986. p. 311-321
25 de mar. de 2010
Dá-me a tua mão desconhecida - Clarice Lispector
Dá-me a tua mão desconhecida que a vida está me doendo e eu não sei como falar-
a realidade é delicada demais,
só a realidade é delicada,
minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas."
In: A paixão segundo G.H. Editora Sabiá, 1964. p. 34
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