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26 de abr. de 2020

DANÇA, CLARICE :: Pedro Américo de Farias

Pyotr Konchalovsky
Canta e dança, Clarice!
que afora isso
só a topada nos leva
canta, Clarice
que além disso
o gesto nos traduz
e a fala nos anuncia
dança, Clarice
que o corpo malhado
pelo sim pelo não
desperta melhor
a cada manhã
dança e canta, Clarice!


Coisas: poemas etc. Linguaraz Editor, Recife, 2015.

24 de ago. de 2015

A rendeira :: ESPÍNOLA, Adriano

Odilon Redon, 1901

Na teia da manhã que se desvela
a rendeira compõe seu labirinto,
movendo sem saber e por instinto
a rede dos instantes numa tela.
Ponto a ponto, paciente,tenta ela
traçar no branco linho mais distinto
a trama de um desenho tão sucinto
como a jornada humana se revela.
Em frente, o mar desfia a eternidade
noutra tela de espuma e esquecimento,
enquanto, entrelaçado, o pensamento
costura sobre o sonho a realidade.
Em que perdida tela mais extrema
foi tecida a rendeira e este poema?



Beira-sol. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997

2 de abr. de 2015

Manhã :: Giuseppe Ungaretti

Sabin Balasa

Manhã
Deslumbro-me
de imenso

Tradução de Haroldo de Campos

....................

Mattina
M’illumino
d’immenso

19 de fev. de 2015

Não é ainda a pele, apenas :: Maria do Rosário Pedreira nasceu (Lisboa, 1959)

Berthe Morisot

Não é ainda a pele, apenas
um rumor de lã nas camisolas, um recado
a lembrar tardes no feno, linho lavado, o sol
mordendo um rio pela manhã ―
assim a distância entre a minha mão e o pessegueiro.

Na estrada
as flores demoram-se até às laranjas,
mas o aroma do pomar faz sede e os olhos cegam
na promessa de gomos novos e doces, os mais doces. Talvez
por isso se continue a viagem sem olhar para trás.

16 de nov. de 2014

Não sei se sabes de Rui Costa

The fire - Rene Magritte, 1943
Não sei se sabes
que a meio da manhã

o verde dos teus lábios

passou para as encostas

e um gomo transparente

adormeceu nos juncos e abriu.

Abriu um brilho qualquer

na gruta fria e pôs uma fogueira

pequenina numa taça

e elevou as mãos quentes

pelo dia.


talvez tu saibas que o principal

do amor

é uma montanha de efeitos secundários.



In: A Nuvem Prateada das Pessoas Graves. Edições Quasi

19 de ago. de 2014

Tirar esse dia pra manhã :: Victor Paes

Theodoros Stamos, 1965

1
Tirar esse dia pra manhã

varrer uma caixa de ramos e relva de si
transportá-la
torná-la tão no centro de uma montanha
que de repente
a caixa
caixa de montanha

2
toda montanha contém uma caixa

26 de jul. de 2014

Os primeiros momentos :: CORAL RUMBLE

Anastasija Kraineva
Amo os primeiros momentos da manhã
aqueles momentos que ainda ninguém usou
tão limpos
que deves lavar os pés antes de os habitares
aqueles momentos que cheiram como pétalas de rosa e erva cortada
e encharcam a tua roupa com orvalho

Irás chocar com segredos
descobrir milagres cobertos habitualmente pelo fumo dos autocarros
escutarás puros ecos sussurros e corridas precipitadas

Amo os primeiros momentos da manhã
quando o sol tem um só olho aberto
e o dia é como uma camisa lavada
sem vincos e pronta a usar
aqueles momentos que prendem a tua atenção
por serem tão sossegados


30 de jun. de 2014

Poemeto Matinal :: Abgar Renault

Patrick DuMouchel
O ar da manhã beija a minha face. 
A minha alma beija o ar leve da manhã 
e olha a paisagem longínqua da cidade, 
que branqueja alegremente na distância 

e sorri humanamente 
um sorriso branco no caiado das casas 
que montam os flancos das colinas azuis 
e espiam pelos olhos escancarados das janelas. 

7 horas. Vai começar a função. 
O despertador das sirenes fura liricamente 
o silêncio doirado da manhã. 
Parece que a vida acorda agora pela primeira vez 

e esfrega os olhos deslumbradamente... 
Meu Ford fordeja dentro da manhã 
e sobe a rua velha do meu bairro, 
arquejando, bufando, fumando gasolina. 

Meu Ford a cabriolar nos buracos da rua descalça 
é um cabrito todo preto a cabriolar, prodigioso. 
O ar leve beija o radiador 
e beija a minha face. 

A meninice de todo o meu ser 
na doirada névoa desta manhã! 

20 de abr. de 2014

Alborada :: Rosalía de Castro

Vaite, noi-
te, -vai fuxin-
do. -Vente, auro-
ra, -vente abrin-
do, -co teu ros-
tro-que, sorrin-
do, -¡¡¡a sombra espanta!!!

¡Canta
paxariño, can-
ta -de ponliña en pon-
la, -que o sol se levan-
ta-polo monte ver-
de, -polo verde mon-
te, -alegrando as her-
bas, -alegrando as fon-
tes...!


¡Canta, paxariño alegre,
canta!
¡Canta porque o millo medre,
canta!
¡Canta porque a luz de te escoite,
canta!
Canta que fuxéu a noite.

Noite escura
logo ven
e moito dura
co seu manto
de tristura,
con meigallos
e temores,
agoreira
de dolores,
agarimo
de pesares,
cubridora
en todo mal.
¡Sal...!

Que a auroriña
co ceu colora
cuns arbores
que namora,
cun sembrante
de ouro e prata
teñidiño
de escalarta.
Cuns vestidos
de diamante
que lle borda
o sol amante
antre as ondas
de cristal.

¡Sal...!,
señora en todo mal,
que o sol
xa brila
nas cunchiñas do areal;
que a luz
do día
viste a terra de alegría;
que o sol
derrete con amor a escarcha fría.

II
Braca auro-
ra-ven chegan-
do, -i ás porti-
ñas-vai chaman-
do-dos que dor-
men-esperan-
do-¡o teu folgor...!

Cor...
de alba hermosa
lles estende
nos vidriños
cariñosa,
donde o sol
tamén suspende,
cando aló
no mar se tende,
de fogax
larada viva,
dempóis leve,
fuxitiva,
triste, vago 
resprandor.

Cantor
dos aires,
paxariño alegre,
canta,
canta porque o millo medre;
cantor
da aurora,
alegre namorado,
ás meniñas dille
que xa sal o sol dourado;
que o gaiteiro,
ben lavado,
ben vestido,
ben peitado,
da gaitiña
acompañado
¡á porta está...!
¡Xa...!

Se espricando
que te esprica,
repinica,
repinica
na alborada
ben amada
das meniñas
cantadeiras,
bailadoras,
rebuldeiras;
das velliñas
alegriñas;
das que saben
ben ruar.

¡Arriba
todas, rapaciñas do lugar,
que o sol
i a aurora xa vos vén a dispertar!
¡Arriba!
¡Arriba, toleirona mocidad,
que atru-
xaremos-cantaremos o ala...lá...!!!

Nota da autora:
A máis grande dificultade que achéi pra escribir esta alborada, foi o meu deseio de que saíse nun todo arregrada á música. Conseguín esto, pro foi a custa da poesía; non podía ser de outro modo, cando se dá cun aire tan estraño e tan difícile de acomodarlle letra algunha.

10 de jan. de 2014

Mário de Andrade: Manhã (1912)

Arnaud Julien Pallière, Ouro Preto - 1820.

O jardim estava em rosa ao pé do Sol
E o ventinho de mato que viera do Jaraguá,
Deixando por tudo uma presença de água,
Banzava gozado na manhã praceana.

Tudo limpo que nem toada de flauta.
A gente si quisesse beijava o chão sem formiga,
A boca roçava mesmo na paisana de cristal.

Um silêncio nortista, muito claro!
As sombras se agarravam no folheto das árvores
Talqualmente preguiças pesadas.
O sol sentava nos bancos tomando banho-de-luz.

Tinha um sossego tão antigo no jardim,
Uma fresca tão de mão lavada com limão,
Era tão marupiara e descansante
Que desejei… Mulher não desejei não, desejei…
Se eu tivesse ao meu lado ali passeando
Suponhamos Lênin, Carlos Prestes, Ghandi, um desses!…

Na doçura da manhã quase acabada
Eu lhes falava cordialmente: – Se abanquem um bocadinho.

E havia de contar pra eles os nomes dos nossos peixes,
Ou descrevia Ouro Preto, a entrada de Vitória, Marajó,
Coisa assim, que pusesse um disfarce de festa
No pensamento dessas tempestades de homens.

8 de nov. de 2013

Canto esponjoso de Carlos Drummond de Andrade

Richard Pousette-Dart
Bela
esta manhã sem carência de mito,
E mel sorvido sem blasfêmia.

Bela 
esta manhã ou outra possível, 
esta vida ou outra invenção, 
sem, na sombra, fantasmas. 

Umidade de areia adere ao pé. 
Engulo o mar, que me engole. 
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz 
azul 
completa 
sobre formas constituídas. 

Bela 
a passagem do corpo, sua fusão 
no corpo geral do mundo. 
Vontade de cantar. Mas tão absoluta 
que me calo, repleto.

9 de fev. de 2012

Voltar aos 17 de Violeta Parra


O rapto de Psique (1895) William-Adolphe Bouguereau

De par a par la ventana
Se abrió como por encanto,
Entró el amor con su manto
Como una tibia mañana,
Al son de su bella diana
Hizo brotar el jazmín,
Volando cual serafín
Al cielo le puso aretes
Y mis años en dicisiete
Los convirtió el querubín 
......................................................................................

De par em par a janela se abriu como por encanto
Entrou o amor com seu manto como uma cálida manhã
Ao som de sua bela alvorada fez brotar o jasmim
Voando qual serafim ao céu lhe pôs brincos
Meus anos em 17 os converteu o querubim


Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...