Mostrando postagens com marcador Paulo Henriques Britto. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Paulo Henriques Britto. Mostrar todas as postagens

29 de set. de 2014

CIRCULAR :: Paulo Henriques Britto


Neste mesmo instante, em algum lugar,
alguém está pensando a mesma coisa
que você estava prestes a dizer.
Pois é. Esta não é a primeira vez.

Originalidade não tem vez
neste mundo, nem tempo, nem lugar.
O que você fizer não muda coisa
alguma. Perda de tempo dizer

o que quer que você tenha a dizer.
Mesmo parecendo que desta vez
algo de importante vai ter lugar,
não caia nessa: é sempre a mesma coisa.

Sim. Tanto faz dizer coisa com coisa
ou simplesmente se contradizer.
Melhor calar-se para sempre, em vez
de ficar o tempo todo a alugar

todo mundo, sem sair do lugar,
dizendo sempre, sempre, a mesma coisa
que nunca foi necessário dizer.
Como faz este poema. Talvez.

Formas do nada.  Companhia das Letras.  

25 de mar. de 2014

Falem se parar de Paulo Henriques Britto

Octavio Ocampo

A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.

Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.

Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída – falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o “porquê”, o sim”,

todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem se parar. Mesmo sem assunto.

do livro Macau

28 de fev. de 2013

Sonetilho de verão de Paulo Henriques Britto

Traído pelas palavras. 
O mundo não tem conserto. 
Meu coração se agonia. 
Minha alma se escalavra. 
Meu corpo não liga não. 
A idéia resiste ao verso, 
o verso recusa a rima, 
a rima afronta a razão 
e a razão desatina. 
Desejo manda lembranças. 

O poema não deu certo. 
A vida não deu em nada. 
Não há deus. Não há esperança. 
Amanhã deve dar praia.

25 de fev. de 2013

Pomo (de Mínima lírica) de Paulo Henriques Britto

Gürbüz Doğan Ekşioğlu 

Da vida só têm substância 
a casca e o caroço. 
No meio só tem amido, 
embromações do carbono. 
Porém todo o gosto reside 
nessa carne intermediária, 
sem valor alimentício, 
sem realidade, sem nada. 

É nela que os dentes encontram 
o que os mantém afiados; 
com ela é que a língua elabora 
a doce palavra.


23 de fev. de 2013

Mínima poética de Paulo Henriques Britto


Poesia como forma de dizer

o que de outras formas é omitido—

não de calar o que se vive e vê 

e sente por vergonha do sentido. 

Poesia como discurso completo, 

ao mesmo tempo trama de fonemas, 

artesanato de éter, e projeto 

sobre a coisa que transborda o poema 

(se bem que dele próprio projetada). 

Palavra como lâmina só gume 

que pelo que recorta é recortada, 

cinzel de mármore, obra e tapume: 

a fala —esquiva, oblíqua, angulosa- 

do que resiste à retidão da prosa. 


De Mínima lírica (1989) [ metapoesia ]

21 de fev. de 2013

Materiais (de Liturgia da matéria) de Paulo Henriques Britto


A utilidade da pedra: 
fazer um muro ao redor 
do que não dá para amar 
nem destruir. 
A utilidade do gelo: 
apaga tudo que arde 
ou pelo menos disfarça. 

A utilidade do tempo: 
o silêncio.

5 de fev. de 2013

Poesia de Paulo Henriques Britto

A realidade é um calhamaço insuportável?
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme  inacessível?
Vejamos só os anúncios.

São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.

24 de mar. de 2012

Duas bagatelas de Paulo Henriques de Britto

Então viver é ísso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vicio,
só isso.

De Liturgia da matéria (1982)

16 de mar. de 2012

Acalanto de Paulo Henriques Britto


Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de urna dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, e um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
no aconchego de um outro corpo morno. 

fonte: BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...