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10 de jun. de 2019

As Palavras de Eugénio de Andrade (1923-2005)

Toyota Hokkei

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


1 de dez. de 2014

AS AMORAS :: Eugénio de Andrade (Portugal - Póvoa de Atalaia, 19 de Janeiro de 1923 — Porto, 13 de Junho de 2005)



O meu país sabe às amoras bravas no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

15 de abr. de 2014

A Figueira de Eugénio de Andrade (1923-2005)

Deborah Humphries
Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidavam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde da Agosto
apenas me roçava, e partia.

25 de jul. de 2013

Na luz a prumo de Eugenio de Andrade

Joan Miró 

Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul,qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção
de água corrente. E com elas subisse.
(A ave, as mãos, a voz.)
E fossem chama. Quase.

14 de mai. de 2013

Estou aqui sentado - ali o mar, as palmeiras de Eugénio de Andrade

foto: joerg lehmann

"Estou aqui sentado - ali o mar,
as palmeiras.
O leite fresco, o pão na mesa.
O gesto sempre igual
da luz, o mesmo olhar da ave.
Existe uma secreta harmonia
entre a luz e o mar,
a mesma provavelmente
entre a palmeira e a ave,
o leite e o pão.
E com a palavra, o seu
voo a prumo,
com a palavra qual é a relação?"

Eugénio de Andrade, "O Sal da Língua" in Poesia, 2ª ed., Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2005, pp 514-515.

9 de mar. de 2013

Amor de Eugenio de Andrade


                                                                                                                                      Picasso
O amor
é uma ave a tremer
nas mãos duma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.


12 de nov. de 2012

Gosto das palavras de Eugénio de Andrade


Gosto das palavras que sabem a terra, a água,
aos frutos de fogo do Verão,
aos barcos ao vento;
gosto das palavras lisas como seixos,
rugosas como o pão de centeio.
Palavras que cheiram a feno e a poeira,
a barro e a limão, a resina
e a sol .


in "Rosto Precário", Editora Limiar, 1ª edição, Setembro, 1979

30 de mai. de 2012

O Sal da Língua de Eugénio de Andrade


Yasushi Inoue: Taiji


Escuta escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extingue o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

24 de mai. de 2012

Lisboa de Eugénio de Andrade

foto: Gato em  Alfama, Lisboa

Alguém diz com lentidão:
«Lisboa, sabes…»
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,           
algumas rugas finas
a espreitar-me os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?

11 de mai. de 2012

As mães de Eugénio de Andrade



foto: Dorothea Lange

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasce o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivesse morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes, encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem pelas termas, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês - e que só ela vê, só ela vê.
Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.
1987

7 de mai. de 2012

Herança de Eugénio de Andrade


É a minha herança: o sorriso,
o azul de uma pedra branca.
Posso juntar-lhe, ao acaso da memória,
um ramo de madressilva inclinado
para as abelhas que metodicamente fazem
do outono o lugar preferido do verão,
um melro que deixou o jardim público
para fazer ninho num poema meu,
um barco chamado Cavalinho na Chuva
à espera de reparação no molhe da Foz.
Deve haver mais alguma coisa,
não serei tão pobre, cometemos sempre
a injustiça de não referir, por pudor,
coisas mais íntimas: um verso de Safo
traduzido por Quasimodo, a mão
que por instantes nos pousou no joelho
e logo voou para muito longe,
as cadências do coração
teimoso em repetir que não envelheceu.
In: Os Sulcos da Sede (2001)

4 de mai. de 2012

Prato de figos de Eugénio de Andrade

Giovanna Garzoni (1600-1657) 
Também a poesia é filha
da necessidade –
esta que me chega um pouco já
fora do tempo,
deixou de ser sumarenta alegria
do sol sobre a boca;
esta, perdida a húmida
e nacarada pele adolescente,
mais parece um desses figos
secos ao sol de muitos dias
que no inverno sempre se encontram
postos num prato
para comeres junto ao fogo.

29 de abr. de 2012

Poemas de Eugénio de Andrade


Beijo Querubim de Rogerio Fernandes

Canção
Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?
Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
– mãe, dou-lho ou não?
.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...