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2 de nov. de 2020

Saudade :: Clarice Lispector



Saudade é um pouco como fome. 
Só passa quando se come a presença.
                                     Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: 
quer-se absorver a outra pessoa toda. 
Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira
 é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.  

fonte: A descoberta do mundo. Francisco Alves, 1992. 

29 de mar. de 2017

Futuro :: Noemi Jaffe


o celular me avisa que não tenho nenhum lembrete futuro. mas gostaria de tê-los. gostaria que o futuro me mandasse lembretes sobre como ele terá sido passado. que o futuro sentisse saudades de não ter acontecido ainda. que ele dissesse: não venha agora não, que por aqui as coisas estão complicadas. ou então o contrário: você não imagina como está bom por aqui, aguardo sua chegada ansioso. que ele indicasse o caminho mais longo para eu seguir até chegar nele. ou então que ele se tocasse da sua inexistência e entendesse que, quando ele chegar, ele não será nada. que ele saísse do aviso do celular e ficasse sossegado lá, sem me encher o saco.

28 de fev. de 2017

Uma vez eu irei de Clarice Lispector

imagem: Clarice Lispector 
Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de dois e dois são quatro é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...
In: Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.


2 de nov. de 2016

Devia ser proibido : Alice Ruiz

Chagall

devia ser proibido
uma saudade tão má
de uma pessoa tão boa
falar, gritar, reclamar
se a nossa voz não ecoa
dizer não vou mais voltar
sumir pelo mundo afora
alguém com tudo para dar
tirar o seu corpo fora
devia ser proibido
estar do lado de cá
enquanto a lembrança voa
reviver, ter que lembrar
e calar por mais que doa
chorar, não mais respirar (ar)
dizer adeus, ir embora
você partir e ficar
para outra vida, outra hora
devia ser proibido...

3 de jul. de 2016

Os Dois Horizontes :: Machado de Assis

          Um horizonte, — a saudade 
          Do que não há de voltar; 
          Outro horizonte, — a esperança 
          Dos tempos que hão de chegar; 
          No presente, — sempre escuro,— 
          Vive a alma ambiciosa 
          Na ilusão voluptuosa 
          Do passado e do futuro. 

          Os doces brincos da infância 
          Sob as asas maternais, 
          O vôo das andorinhas, 
          A onda viva e os rosais; 
          O gozo do amor, sonhado 
          Num olhar profundo e ardente, 
          Tal é na hora presente 
          O horizonte do passado. 

          Ou ambição de grandeza 
          Que no espírito calou, 
          Desejo de amor sincero 
          Que o coração não gozou; 
          Ou um viver calmo e puro 
          À alma convalescente, 
          Tal é na hora presente 
          O horizonte do futuro. 

          No breve correr dos dias 
          Sob o azul do céu, — tais são 
          Limites no mar da vida: 
          Saudade ou aspiração; 
          Ao nosso espírito ardente, 
          Na avidez do bem sonhado, 
          Nunca o presente é passado, 
          Nunca o futuro é presente. 

          Que cismas, homem? – Perdido 
          No mar das recordações, 
          Escuto um eco sentido 
          Das passadas ilusões. 
          Que buscas, homem? – Procuro, 
          Através da imensidade, 
          Ler a doce realidade 
          Das ilusões do futuro. 
          
          Dois horizontes fecham nossa vida. 

Machado de Assis. in Crisálidas. Civilização Brasileira, 1976. 

15 de set. de 2015

Saudade :: Mia Couto

Que saudade

tenho de nascer.
Nostalgia
de esperar por um nome
como quem volta
à casa que nunca ninguém habitou.
Não precisas da vida, poeta.
Assim falava a avó.
Deus vive por nós, sentenciava.
E regressava às orações.
A casa voltava
ao ventre do silêncio
e dava vontade de nascer.
Que saudade
tenho de Deus.

n: Tradutor de Chuvas. Editorial Caminho, 2011.

8 de set. de 2015

O PRATO AZUL-POMBINHO :: Cora Coralina

Gennine
Minha bisavó - que Deus a tenha em glória -
sempre contava e recontava
em sentidas recordações
de outros tempos
a estória de saudade
daquele prato azul-pombinho.

Era uma estória minuciosa.
Comprida, detalhada.
Sentimental.
Puxada em suspiros saudosistas
e ais presentes.
E terminava, invariavelmente,
depois do caso esmiuçado:
“- Nem gosto de lembrar disso...”
É que a estória se prendia
aos tempos idos em que vivia
minha bisavó
que fizera deles seu presente e seu futuro.

Voltando ao prato azul-pombinho
que conheci quando menina
e que deixou em mim
lembrança imperecível.
Era um prato sozinho,
último remanescente, sobrevivente,
sobra mesmo, de uma coleção,
de um aparelho antigo
de 92 peças.
Isto contava com emoção, minha bisavó,
que Deus haja.

Era um prato original,
muito grande, fora de tamanho,
um tanto oval.
Prato de centro, de antigas mesas senhoriais
de família numerosa.
De fastos de casamento e dias de batizado.

Pesado. Com duas asas por onde segurar.
Prato de bom-bocado e de mães-bentas.
De fios-de-ovos.
De receita dobrada
de grandes pudins,
recendendo a cravo,
nadando em calda.

Era, na verdade, um enlevo.
Tinha seus desenhos
em miniaturas delicadas.
Todo azul-forte,
em fundo claro
num meio-relevo.
Galhadas de árvores e flores,
estilizadas.
Um templo enfeitado de lanternas.
Figuras rotundas de entremez.
Uma ilha. Um quiosque rendilhado.
Um braço de mar.
Um pagode e um palácio chinês.
Uma ponte.
Um barco com sua coberta de seda.
Pombos sobrevoando.

Minha bisavó
traduzia com sentimento sem igual,
a lenda oriental
estampada no fundo daquele prato.
Eu era toda ouvidos.
Ouvia com os olhos, com o nariz, com a boca,
com todos os sentidos,
aquela estória da Princesinha Lui,
lá da China - muito longe de Goiás -
que tinha fugido do palácio, um dia,
com um plebeu do seu agrado
e se refugiado num quiosque muito lindo
com aquele a quem queria,
enquanto o velho mandarim - seu pai -
concertava, com outro mandarim de nobre casta,
detalhes complicados e cerimoniosos
do seu casamento com um príncipe todo-poderoso,
chamado Li.

Então, o velho mandarim,
que aparecia também no prato,
de rabicho e de quimono,
com gestos de espavento e cercado de aparato,
decretou que os criados do palácio
incendiassem o quiosque
onde se encontravam os fugitivos namorados.

E lá estavam no fundo do prato,
- oh, encanto da minha meninice! -
pintadinhos de azul,
uns atrás dos outros - atravessando a ponte,
com seus chapeuzinhos de bateia
e suas japoninhas largas,
cinco miniaturas de chinês.
Cada qual com sua tocha acesa
- na pintura -
para pôr fogo no quiosque
- da pintura.

Mas ao largo do mar alto
balouçava um barco altivo
com sua coberta de prata,
levando longe o casal fugitivo.

Havia, como já disse,
pombos esvoaçando.
E um deles levava, numa argolinha do pé,
mensagem da boa ama,
dando aviso a sua princesa e dama,
da vingança do velho mandarim.

Os namorados então,
na calada da noite,
passaram sorrateiros para o barco,
driblando o velho, como se diz hoje.
E era aquele barco que balouçava
no mar alto da velha China,
no fundo do prato.

Eu era curiosa para saber o final da estória.
Mas o resto, por muito que pedisse,
não contava minha bisavó.
Dali para a frente a estória era omissa.
Dizia ela - que o resto não estava no prato
nem constava do relato.
Do resto, ela não sabia.
E dava o ponto final recomendado.
“- Cuidado com esse prato!
É o último de 92.”

Devo dizer - esclarecendo,
esses 92 não foram do meu tempo.
Explicava minha bisavó
que os outros - quebrados, sumidos,
talvez roubados -
traziam outros recados, outras legendas,
prebendas de um tal Confúcio
e baladas de um vate
chamado Hipeng.

Do meu tempo só foi mesmo
aquele último
que, em raros dias de cerimônia
ou festas do Divino,
figurava na mesa em grande pompa,
carregado de doces secos, variados,
muito finos,
encimados por uma coroa
alvacenta e macia
de cocadas-de-fita.

Às vezes, ia de empréstimo
à casa da boa tia Nhorita.
E era certo no centro da mesa
de aniversário, com sua montanha
de empadas, bem tostadas.
No dia seguinte, voltava,
conduzido por um portador
que era sempre o Abdênago, preto de valor,
de alta e mútua confiança.

Voltava com muito-obrigados
e, melhor - cheinho
de doces e salgados.
Tornava a relíquia para o relicário
que no caso era um grande e velho armário,
alto e bem fechado.
- “Cuidado com o prato azul-pombinho” -
dizia minha bisavó,
cada vez que o punha de lado.

Um dia, por azar,
sem se saber, sem se esperar,
antes do salta-caminho,
partes do capeta,
fora de seu lugar, apareceu quebrado,
feito em pedaços - sim senhor -
o prato azul-pombinho.
Foi um espanto. Um torvelinho.
Exclamações. Histeria coletiva.
Um deus-nos-acuda. Um rebuliço.
Quem foi, quem não foi?...

O pessoal da casa se assanhava.
Cada qual jurava por si.
Achava seus bons álibis.
Punia pelos outros.
Se defendia com energia.
Minha bisavó teve “aquela coisa”.
(Ela sempre tinha “aquela coisa” em casos tais.)
Sobreveio o flato.
Arrotando alto, por fim, até chorou...

Eu (emocionada) vendo o pranto de minha bisavó,
lembrando só
da princesinha Lui -
que já tinha passado a viver no meu inconsciente
como ser presente,
comecei a chorar
- que chorona sempre fui.

Foi o bastante para ser apontada e acusada
de ter quebrado o prato.
Chorei mais alto, na maior tristeza,
comprometendo qualquer tentativa de defesa.
De nada valeu minha fraca negativa.
Fez-se o levantamento de minha vida pregressa
de menina
e a revisão de uns tantos processos arquivados.
Tinha já quebrado - em tempos alternados,
três pratos, uma compoteira de estimação,
uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.

Meus antecedentes, até,
não eram muito bons.
Com relação a coisas quebradas
nada me abonava.
E o processo se fez, pois, à revelia da ré,
e com esta agravante:
tinha colado no meu ser magricela, de menina,
vários vocativos
adesivos, pejorativos:
inzoneira, buliçosa e malina.

Por indução e conclusão,
era eu mesma que tinha quebrado o prato azul-pombinho.

Reuniu-se o conselho de família
e veio a condenação à moda do tempo:
uma boa tunda de chineladas.

Aí ponderou minha bisavó
umas tantas atenuantes a meu favor.
E o castigo foi comutado
para outro, bem lembrado, que melhor servisse a todos
de escarmento e de lição:
trazer no pescoço por tempo indeterminado,
amarrado de um cordão,
um caco do prato quebrado.

O dito, melhor feito.
Logo se torceu no fuso
um cordão de novelão.
Encerado foi. Amarrou-se a ele um caco, de bom jeito,
em forma de meia-lua.
E a modo de colar, foi posto em seu lugar,
isto é, no meu pescoço.
Ainda mais
agravada a penalidade:
proibição de chegar na porta da rua.
Era assim, antigamente.

Dizia-se aquele, um castigo atinente,
de ótima procedência. Boa coerência.
Exemplar e de alta moral.

Chorei sozinha minhas mágoas de criança.
Depois me acostumei com aquilo.
No fim, até brincava com o caco pendurado.
E foi assim que guardei
no armarinho da memória, bem guardado,
e posso contar aos meus leitores,
direitinho,
a estória, tão singela,
do prato azul-pombinho.


In: Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965

12 de ago. de 2015

Gramática da felicidade :: Mario Quintana

Virgil Solis

Vivemos conjugando o tempo passado (saudade, para os românticos) 
e o tempo futuro (esperança para os idealistas). Uma gangorra, 
como vês, cheia de altos e baixos — uma gangorra emocional. 
Isso acaba fundindo a cuca de poetas e sábios e maluquecendo de 
vez o homo sapiens. Mais felizes os animais, que, na sua gramática
imediata, apenas lhes sobra um tempo: o presente do indicativo.
E nem dá tempo para suspiros…

in: A vaca e o hipogrifo. 1977.

31 de jul. de 2015

Saudade :: Mia Couto

Paul Klee

A saudade é uma tatuagem na alma: 
só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.


In: O Outro Pé da Sereia

15 de jun. de 2015

Despedida :: Rubem Braga

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.

fonte: A Traição das Elegantes.  Sabiá, 1967.  p. 83.

28 de mai. de 2015

Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda :: Fernando Pessoa

Miró
Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda,
Ó meu guizo de prata,
Meu colar de pérolas deixado em cima da cómoda,
Minha aliança de ouro em dedos já velhinhos e fieis,
Minha cantiga de raparigas ao poente,
Ó meu fumo de cigarro, tão inútil e tão necessário,
Minha Bíblia para as crianças brincarem,
Minha amante que eu queria trazer ao colo como uma filha...
Olha, tenho as mãos em febre...
Tenho a testa a escaldar, tenho os olhos muito estranhos...
Todos olham para o brilho dos meus olhos e espetam-se neles...
Eu tenho febre e tenho sede e lembro-me de ti por causa disso
Porque se eu te tivesse como te quereria ter
(Não sei se é de um modo físico, ou de um modo psíquico)
Eu não teria nem febre, nem sede, nem a testa a arder,
Nem os olhos secos, muito secos, sob a fronte...
Tu não sabes o que tem sido a minha vida!...
Tu não sabes que martírio tem sido o meu...
Se tu soubesses o que é amar as coisas simples e calmas
E não ter jeito para procurar senão as outras coisas!
Se tu soubesses porque é que quando eu estou na minha quinta de dia
Tenho saudades dela como se não estivesse lá...
Se tu soubesses o que eu sinto à noite, nos hotéis, pelas ruas,
Se tu soubesses! Mas eu próprio não sei o que é que sinto...
Minha lantejoula, minha casa de bonecas,
Ó meus brinquedos da minha infância atados com cordéis!
Ó meu regimento que passa com a banda à frente,
Minha noite no circo, nos cavalinhos, a rir dos palhaços...
Ó minha (...)
s.d.
Poemas de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Edição crítica de Cleonice Berardinelli.) Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.  - 325.

25 de mai. de 2015

Rua do Bonjardim :: Inês Lourenço

Vindo do marquês, o autocarro
chiava na curva estreita, soltando
os seus vapores de gasóleo, e
num portal surgia um gato pardo
para o qual me inclinei, sabendo
que fugiria ao contacto
da minha mão, ou apenas ao
esboço de carícia, como fazem
os gatos, tão fugidios na presença
de estranhos. Mas o animal, no
instante do recuo, aceitou o
deslizar dos meus dedos,
em troca de amáveis energias. E
uma longa saudade subiu-me pelo
braço, no arquear festivo
daquele pequeno tigre.

22 de mai. de 2015

Saudades! :: Fernando Pessoa


Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
 
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?». E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
fonte: http://arquivopessoa.net/

23 de abr. de 2015

COSTURANDO A VIDA :: Janaína Cavallin

 Victor Borisov-Musatov

A gente podia poder costurar o tempo,
bordando em cima dos erros para que eles sumissem.
Costurar as pessoas que gostamos pertinho.
Costurar os domingos, um mais perto do outro.
Costurar o amor verdadeiro no peito de quem a gente ama.
Costurar a verdade na boca dos seres.
Costurar a saudade no fundo de um baú para que ela de lá não fuja.
Costurar a auto estima bem alto, pra que nunca ela caia.
Costurar o perdão na alma e a bondade na mão.
Costurar o bem no bem e o bem sobre o mal.
Costurar a saúde na enfermidade e a felicidade em todo lugar.

20 de abr. de 2015

Toda saudade é uma espécie de velhice :: João Guimarães Rosa


 Joan Miro, 1925
“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez esse seja o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”

Grande Sertão: Veredas.

10 de mar. de 2015

Canção para Sarojíni* :: Cecília Meireles


Passei por aqui.
Como já não podes ver o que estou vendo,
Vejo por ti.

Sedas vermelhas para Sarojíni !

Tudo quanto amavas, tudo que cantavas encontrei aqui:

Ouro, prata, véus, marfim, bogari.

Colares de flores para Sarojíni !

Lembrei-me de versos que um dia escreveste

E que um dia li.
Lembrei-me de ti.

Cantai, pregoeiros, para Sarojíni !

Tudo é teu aqui.

(Falo para aquele Rouxinol da Índia que não conheci.)

Incensos, queimai-vos para Sarojíni !

Ao mundo que habitas, tão fora daqui,

Vão minhas saudades, pássaros de ausência,
Sonhando por ti.

Brilhai, luas de ouro, para Sarojíni !


In:  Doze noturnos da Holanda e outros poemas. Nova Fronteira, 1986. 


* Sarojini Naidu ou Sarojini Chattopadhyaya (Hyderabad, 13 de fevereiro de 1879 - Lucknow, 2 de março de 1949), também conhecida pela alcunha Bharatiya Kokila (o rouxinol da Índia), foi uma criança prodígio, lutadora pela liberdade, e poeta. Naidu foi a primeira mulher indiana a se tornar o presidente do Congresso Nacional Indiano e a primeira mulher a tornar-se a governadora da província de Uttar Pradesh.

17 de fev. de 2015

Navio que partes para longe :: Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Rafal Olbinski

Navio que partes para longe,
Porque é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?
Porque quando te não vejo, deixaste de existir.
E se se tem saudades do que não existe,
Sente-se em relação a coisa nenhuma,
Não é do navio, é de nós, que sentimos saudades.

29-5-1918
“Poemas Inconjuntos”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994.   143.

12 de out. de 2014

À MARGEM de Diego Engenho Novo

 Camille Pissarro
Hoje tirei um tempo pra margear um caderno. Ou melhor, tirei um tempo pra voltar no tempo. O cheiro bom da minha mãe, a ansiedade de um novo ano na escola. Sim, eu já fui criança.
Traçar aquelas linhas bobas não fazia sentido pra mim (não que hoje faça), mas, sem querer aos poucos a gente foi traçando as linhas da própria vida, reforçando os traços do nosso próprio caráter, indicando a direção que os sonhos deviam tomar.
Quando criança eu sentia estar perdendo tempo cobrindo de outra cor uma linha que já existia. Avisando àquele muro magro que ele devia barrar a passagem das letras, deter as ideias, frear os meus tantos pensamentos. Mas hoje, margeando um caderno qualquer, me lembrei que a minha mãe, na primeira série, fez esse árduo trabalho por mim, por horas, pouco depois de cobrir as capas com um plástico bonito, que eu mesmo escolhi.
No ano seguinte, ela segurou na minha mão para que eu não deixasse a reta torta. Mesmo com tudo torto, borrado, mesmo que eu parecesse um paciente precoce de Parkinson, mamãe elogiava. Pra ela tudo estava lindo; pra ela, o lindo era eu existindo.
Nos anos seguintes, eu mesmo cuidava de tudo. Eu mesmo bati o pé e reclamei das capas com bolinhas e bichinhos. O rapazinho reclamão, andava cheio de vontades, e mamãe ainda assim, achava graça de tudo. “Reclamar vai fazer com que isso termine mais cedo?”, não ia. E eu me contentava em chicotear as bordas do caderno com a bic mordida.
Hoje, margeando um caderno entendi que o tempo de quem tanto reclamei, passou. Eu rezei tanto pra crescer, que cresci sem medida. O mundo não é definido pelas margens chatas, retas ou tortas. O mundo acontece, metade, margem à dentro e, bem mais, margem a fora. Saudade boa, mãe.


6 de out. de 2014

Vaidade :: Florbela Espanca

Florbela Espanca

Sonho que sou a Poetisa eleita, 
Aquela que diz tudo e tudo sabe, 
Que tem a inspiração pura e perfeita, 
Que reúne num verso a imensidade! 

Sonho que um verso meu tem claridade 
Para encher todo o mundo! E que deleita 
Mesmo aqueles que morrem de saudade! 
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita! 

Sonho que sou Alguém cá neste mundo... 
Aquela de saber vasto e profundo, 
Aos pés de quem a Terra anda curvada! 

E quando mais no céu eu vou sonhando, 
E quando mais no alto ando voando, 
Acordo do meu sonho...E não sou nada!...

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...