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14 de ago. de 2022

As Mortes Sucessivas :: Adélia Prado

Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu
Me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu
Nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
´deixa, tá bom assim´.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.

27 de jun. de 2020

Por que é importante aprender a cozinhar? Clarice Reichstul




Quando eu era criança, ia à casa da minha avó uma vez por semana. Comíamos sempre a mesma comida: frango assado, cogumelos refogados, batata na manteiga e, de sobremesa, strudel de maçã (um tipo de torta) com creme de leite.
De vez em quando, tinha um peixe frito, mas o forte mesmo era esse menu descrito aí. Nunca mais comi cogumelos refogados como os da casa da minha avó, mas esses momentos que passávamos por lá são inesquecíveis (talvez porque ela deixava a gente tomar guaraná, e a minha mãe não).
Eu aprendi a cozinhar com minha avó. Primeiro foram biscoitinhos amanteigados. Ela fazia a massa e a gente ficava cortando com os cortadores de estrela. Depois foi um estrogonofe de peixe, que ela havia ensinado ao meu pai, quando ele era pequeno.
Na época, ele precisou de uma receita para uma competição de culinária no grupo de escotismo (passou anos reclamando por ter ficado em segundo lugar). O que eu não percebia naquele momento e só fui reconhecer adulta é o quanto aprender a cozinhar é libertador.
Libertador porque não dependemos de outros para ter a nossa comida, porque eu não tenho medo de receita nenhuma e porque, quando fui morar sozinha, não passei pelo aperto de comer miojo todos os dias. Eu já sabia fritar um ovo e fazer arroz. O básico.
A formação de indivíduos independentes se faz de diversas maneiras, algumas bem comuns, como pela cozinha. Como diria a mestra Nina Horta, cozinhar é um modo de se ligar.

2 de nov. de 2016

Devia ser proibido : Alice Ruiz

Chagall

devia ser proibido
uma saudade tão má
de uma pessoa tão boa
falar, gritar, reclamar
se a nossa voz não ecoa
dizer não vou mais voltar
sumir pelo mundo afora
alguém com tudo para dar
tirar o seu corpo fora
devia ser proibido
estar do lado de cá
enquanto a lembrança voa
reviver, ter que lembrar
e calar por mais que doa
chorar, não mais respirar (ar)
dizer adeus, ir embora
você partir e ficar
para outra vida, outra hora
devia ser proibido...

29 de dez. de 2015

BRIONI :: Radovan Ivsic (Zagreb, 1921-2009)

Emil Carlsen
Os cervos são borboletas
as borboletas  são peixes
os peixes são claridade
a claridade é morte
a morte é laranja
a laranja é vulcão
o vulcão é feno
o feno é elefante
o elefante é afogamento
o afogamento é riso
o riso é montanha
a montanha é anel
o anel é solidão
a solidão é areia
a areia é roda
a roda é terremoto
o terremoto é cílios
os cílios são cascata
a cascata é bigorna
a bigorna é lembranças
as lembranças são vermelho
o vermelho é chicote
o chicote é fim
o fim é mel
o mel é nuvem
a nuvem é o infinito
o infinito é infinito

15 de nov. de 2015

Sempre :: Chico Buarque

John William Godward

Sempre
Eu te contemplava sempre
Feito um gato aos pés da dona
Mesmo em sonho estive atento
Para poder lembrar-te sempre
Como olhando o firmamento
Vejo estrelas que já foram
Noite afora para sempre

O teu corpo em movimento
Os teus lábios em flagrante
O teu riso, o teu silêncio
Serão meus ainda e sempre

Dura a vida alguns instantes
Porém mais do que bastantes
Quando cada instante é sempre

25 de jul. de 2015

Emily Dickinson

Alphonse Mucha

Com uma Jóia guardada em meus dedos —
Deitei-me e fui dormir —
O dia era quente, os ventos sem segredos —
Pensei: “Vai resistir” —

Despertei — e meus dedos honestos censurei
Onde a Jóia? — Foi-se embora —
E uma lembrança Ametista
É tudo que tenho agora —

.........................



I held a Jewel in my fingers —
And went to sleep —
The day was warm, and winds were prosy —
I said: “’Twill keep.” —

I woke — and chid my honest fingers,
The Gem was gone; —
And now, an Amethyst remembrance
Is all I own —


21 de jul. de 2015

Recordação de Marie A. :: Bertolt Brecht

Togyu Okumura

Naquele dia, num mês azul de setembro
Em silêncio, à sombra da ameixeira
Eu a tomei nos braços, amor pálido e
Quieto, como um sonho formoso.
E acima de nós, no belo céu do verão
Havia uma nuvem, que olhei longamente
Era bem alva, estava bem no alto
Ao olhar novamente, desapareceu.
Desde então muitas luas passaram
Mostrando no céu seu alvor
As ameixeiras foram talvez cortadas
E se me perguntas para onde foi o amor
Respondo: Não consigo lembrar.
Mas sim, sei o que queres dizer
Suas feições, porém, para sempre se foram
Sei apenas que naquele dia a beijei.
E mesmo o beijo, já o teria esquecido
Não fosse aquela nuvem no céu
Dela sei e sempre saberei:
Era bem alva, estava bem no alto.
As ameixeiras talvez ainda cresçam
E ela agora deve ter muitos filhos
Mas aquela nuvem cresceu alguns minutos
Ao olhar novamente, desapareceu.

tradução de Paulo César de Souza.

20 de jun. de 2015

Por que sonhei com você esta noite? :: Philip Larkin (1922-1985)

Por que sonhei com você esta noite?
Agora a manhã penteia a cabeleireira com cinzenta luz
E lembranças batem à porta, como bofetadas no rosto;
De bruços, fito a pálida bruma
Por trás da janela.

Quantas coisas eu julgava esquecidas
e à mente retornam com estranha dor:
como cartas enviadas a alguém
que há muito anos se mudou.

--------------------
Why did I dream of you last night?
Now morning is pushing back hair with grey light
Memories strike home, like slaps in the face;
Raised on elbow, I stare at the pale fog
Beyond the window.

So many things I had thought forgotten
Return to my mind with stranger pain:
- Like letters that arrive addressed to someone
Who left the house so many years ago.


19 de jun. de 2015

OS PENSAMENTOS QUE ME VISITAM NAS RUAS MOVIMENTADAS :: Wislawa Szymborska

Rostos.
Bilhões de rostos na face da terra.
Dizem que cada um é diferente
dos que já se foram e dos que virão um dia.
Mas a Natureza – quem é que a entende? –
cansada do trabalho que nunca acaba
talvez repita suas ideias antigas              
e ponha-nos rostos
já usados outrora.

Pode ser Arquimedes de jeans que passa ao seu lado,
a czarina Catarina com roupa de brechó,              
um dos faraós de pasta e óculos.

A viúva de um sapateiro descalço
vinda de uma Varsóvia pequenina ainda,
um mestre da gruta de Altamira
levando as netas para o zoológico,
um Vândalo cabeludo a caminho do museu
para se deliciar com os mestres do passado.

Os que tombaram há duzentos séculos,
há cinco séculos,
há meio século.

Alguém levado em carruagem dourada,
alguém levado em vagão de extermínio.
Montezuma, Confúcio, Nabucodonosor,
suas babás, suas lavadeiras e Semíramis
que só fala inglês.

Bilhões de rostos na face da terra.
Meu, seu, de quem –
você nunca saberá. Talvez a Natureza tenha que ludibriar
para dar conta dos prazos e da demanda
e pesque até o que estava submerso              
no espelho da deslembrança.

15 de jun. de 2015

Despedida :: Rubem Braga

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.

fonte: A Traição das Elegantes.  Sabiá, 1967.  p. 83.

6 de jun. de 2015

Das lembranças :: Marcel Proust

Edvard Munch
Doía-me ter de imaginá-las diferentes, pois o tempo que muda os seres não altera as figuras que deles guardamos. Nada é mais triste do que essa oposição entre a decadência das criaturas e a imarcescibilidade das lembranças do que compreendermos não ser de fato mais a mesma quem com tanto viço surge à memória, não nos ser possível, exteriormente, contemplar a que interiormente tão bela nos parece, e que não obstante almejamos rever.

 in: O tempo redescoberto. Globo, p. 244

16 de mai. de 2015

O Regresso :: Manuel António Pina (1943-2012)

Paul Cezanne

Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E como agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

20 de abr. de 2015

Toda saudade é uma espécie de velhice :: João Guimarães Rosa


 Joan Miro, 1925
“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez esse seja o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”

Grande Sertão: Veredas.

16 de abr. de 2015

O PROFISSIONAL DA MEMÓRIA :: João Cabral de Melo Neto


Passeando presente dela
pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina,

para quando fosse dali
poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças.

Assim, foi entretecendo
entre ela, e Sevilha fios
de memória, para tê-las
num só e ambíguo tecido;

foi-se injetando a presença
a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada .

Mas desconvivendo delas,
longe da vida e do corpo,
viu que a tela da lembrança
se foi puindo pouco a pouco;

já não lembrava do que
se injetou em tal esquina,
que fonte o lembrava dela,
que gesto dela, qual rima.

A lembrança foi perdendo
a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga.

Mas o que perdeu de exato
de outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de um
traz da outra sua atmosfera.

Museu de Tudo. José Olympio, 1975. 

10 de mar. de 2015

Canção para Sarojíni* :: Cecília Meireles


Passei por aqui.
Como já não podes ver o que estou vendo,
Vejo por ti.

Sedas vermelhas para Sarojíni !

Tudo quanto amavas, tudo que cantavas encontrei aqui:

Ouro, prata, véus, marfim, bogari.

Colares de flores para Sarojíni !

Lembrei-me de versos que um dia escreveste

E que um dia li.
Lembrei-me de ti.

Cantai, pregoeiros, para Sarojíni !

Tudo é teu aqui.

(Falo para aquele Rouxinol da Índia que não conheci.)

Incensos, queimai-vos para Sarojíni !

Ao mundo que habitas, tão fora daqui,

Vão minhas saudades, pássaros de ausência,
Sonhando por ti.

Brilhai, luas de ouro, para Sarojíni !


In:  Doze noturnos da Holanda e outros poemas. Nova Fronteira, 1986. 


* Sarojini Naidu ou Sarojini Chattopadhyaya (Hyderabad, 13 de fevereiro de 1879 - Lucknow, 2 de março de 1949), também conhecida pela alcunha Bharatiya Kokila (o rouxinol da Índia), foi uma criança prodígio, lutadora pela liberdade, e poeta. Naidu foi a primeira mulher indiana a se tornar o presidente do Congresso Nacional Indiano e a primeira mulher a tornar-se a governadora da província de Uttar Pradesh.

11 de fev. de 2015

Short trip :: Alice Ruiz


minha cidade
cai pela janela
como um cisco

meu olho
caleidoscópio
é o coração que acolhe
fragmento por fragmento
até que toda cidade
e sua história
caiba dentro

nessa rua, por exemplo,
já passei há muito tempo
mas não tinha esse olhar
indo embora

para o futuro,
a memória desse momento
que passou agora
será a lembrança de outro
e ainda outro mais antigo

caio como um cisco
na cidade
somos, as duas,
uma rápida paisagem.
De passagem.



29 de jan. de 2015

JANELA :: Czeslaw Milosz (1911-2004)

Gustave Klimt

Olhei pela janela ao raiar do dia e vi uma jovem macieira, diáfana em meio à luz.
Quando olhei de novo ao raiar do dia lá estava uma grande macieira, carregada de fruto.
Passaram-se decerto muitos anos, mas não me lembro de nada do que aconteceu neste sonho.

     

13 de jan. de 2015

Quando acordares lembra-te de mim :: Manuel António Pina

Marc Chagall, 1981

"Quando acordares lembra-te de mim. Eu sou aquele que te pegou na mão, e o que te acariciou os cabelos. Estavas cheio de medo e o sono não conseguia arrastar-te para dentro de ti, nem o tempo para dentro de tua mais íntima idade. Precisavas de alguém que te amparasse a cabeça e te falasse em voz alta. Tantas vozes, lembras-te? Tanto silêncio, lembras-te? Eu estava lá e só eu te ouvia."

 in Todas as palavras

9 de jan. de 2015

Lembranças :: Manuel António Pina


1. Deveria lembrar-me de lembranças minhas, mas lembro-me de lembranças alheias (lembranças de pessoas que nunca conheci nem nunca me conheceram).

2. Um dia, há muitos anos, cruzei-me na rua comigo numa cidade estrangeira. Recordo agora, do lado de fora, esse instante.

in Todas as palavras - poesia reunida

8 de nov. de 2014

O corpo e a mente - Luis Fernando Veríssimo

Rene Magritte, 1935

O corpo e a mente
têm biografias separadas,
cada um sua memória própria,
seu próprio jogo de charadas.
Meu corpo tem lembranças
- cheiros, tiques, andanças -
que a mente não registrou,
e o corpo não tem as marcas
de metade do que a mente passou.

POESIA NUMA HORA DESSAS?! Rio de Janeiro: Objetiva, 2002

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...