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16 de ago. de 2022

Amigos


Depois da perda da saúde, a face mais dura do envelhecimento é conviver com o desaparecimento dos personagens que construíram nossa história. Não importa quantos amigos íntimos tenhamos, cada um deles é insubstituível, os que ficam não preenchem o vazio deixado pelo que se ausentou. Alguém já comparou essa situação à de uma floresta em que cada árvore que desaba abre uma clareira. Você poderá dizer que nela nascerão outras. É verdade, mas levarão tempo para crescer; até se tornarem frondosas e acolhedoras, talvez não estejamos mais aqui. DRAUZIO VARELLA
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1308201132.htm

7 de jul. de 2016

O jogo em que nos metemos :: JUAN GELMAN

Se me deixassem escolher, eu escolheria
Esta saúde de saber que estamos muito doentes,
esta ventura de andar tão infelizes.

Se me deixassem escolher, eu escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que ando como impuro.

Se me deixassem escolher, eu escolheria
este amor com que odeio,
esta esperança que como pães desesperados.

Aqui acontece, senhores,
que eu jogo com a morte.
de "El juego en que andamos"

Tradução de Antonio Miranda

6 de ago. de 2015

Amor aos pedaços :: Ana Estaregui


às vezes a felicidade é um rótulo bonito de azeite
 que recolho em silêncio da mesa de jantar
 para que não desconfiem da minha sanidade.

17 de mar. de 2015

Não Comerei da Alface a Verde Pétala : Vinicius de Moraes ( Rio de Janeiro 19 de outubro de 1913 - de 9 de julho de 1980 )

Zacharias Wagner 

Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem maior aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

31 de dez. de 2012

Sete ondas de ANDRÉ LAURENTINO


A primeira decisão séria do Ano Novo é o que querer antes das sete ondinhas. Sete pulos e um desejo. Qual? Para as mulheres, inventaram desejos íntimos e secretos, codificados na cor da calcinha: amarela, dinheiro; vermelha, amor; branca, paz; etc. Será que as meninas podem vestir uma calcinha e desejar outra? Valerá como dois desejos, ou valerá por um terceiro, insinuado sinuosamente pelo mistério das contradições femininas?

Um bom desejo: entender as mulheres. Um desejo melhor ainda: morrer tentando.

Dos meus desejos desvairados, queria ser uma árvore, desde que fosse mangueira. Gorda, opulenta, olorosa, magnânima e magistral. Generosa, ampla. Tropical. Mangueira doce, exagerada, sensual. Mangueira mãe. Matriarcal. Ou então queria ser outra árvore, mais equilibrada: um coqueiro. Nada tem de elegante (alto demais, magro demais, com um penacho na cabeça) mas é pura elegância. Surpresa de coqueiro. Alegre durante o dia, solene durante a noite -- quando se enegrece mais do que o céu, e impõe sua negritude sobre o preto e enfrenta as tempestades. Um coqueiro jamais perde a compostura.

Ser também feliz, é claro. Mas de que modo? Não a felicidade dos que vencem, porque nunca vencem. Não quero espalhafate, nem dizer aos outros, nem fazer do meu pirão um caviar. Quero sim é comer pirão. Quero comer caviar.

Ter saúde. E se for para ficar enfermo, que seja uma gripe sem coriza, apenas a dorzinha por dentro dos ossos, dois dias de folga, uma boa febre debaixo do cobertor e alguém para trazer água de coco e perguntar se estou melhorzinho.

Queria ter algum vício que não me mate. Atividade física que não seja item de formulário. Defeito que me faça charmoso. A teimosia dos gênios. A impaciência dos gênios (o diabo é que conheço vários idiotas teimosos e impacientes). Que eu não seja idiota, meu Deus. Queria ler mais. Amar mais. Dormir mais. E cada vez que eu diga as mesmas coisas, que soe como a primeira.

Quero ver você no ano que vem. E no outro. Que possamos estar a sós, sem coisa melhor para fazer. Façamo-la.

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Feliz 2012.
fonte: Publicado no guia Divirta-se em O Estado de S. Paulo em dezembro de 2011

6 de out. de 2012

Um embrulho de papel brilhante de Eliane Brum



A espio chegando, com seus pés tortos por um milhão de problemas, uma bolsa pesada na mão e uma mala de rodinhas. É minha mãe e acabou de descer do ônibus com meu pai. Vejo que ela me procura com olhos ansiosos na rodoviária de Porto Alegre, já pronta pra reclamar que estou atrasada. Eu poderia me apressar. Em vez disso, estaciono minhas botas atrás de uma das colunas. Tento fixar esse momento. Naquele instante eu sei que aquela cena é irrepetível, e de súbito essa revelação me engolfa. Faz alguns anos, já, que a percepção da passagem do tempo se faz nítida em mim. Sinto-me como se estivesse no fundo de uma piscina, ouvindo à distância o burburinho surdo dos outros. Respiro e estou de novo na superfície. Guardo a cena inteira numa dobra do meu corpo, desprego-me da coluna e surjo sorridente diante deles.  

Estamos todos ali, na cidade em que já não vivo há muito, para uma consulta com o médico da capital. Naquele dia, eu apalpo essa nova geografia na qual ainda preciso descobrir se sou montanha, rio, um lago. Talvez apenas uma árvore não muito grande, não muito forte. Quando a hora de cuidar dos pais nos alcança, os filhos que se importam encontram-se não apenas em território desconhecido, mas acabam por encontrar um território desconhecido dentro de si.   

Quero protegê-los, mas não sei como. Devo chamar um táxi ou esperar pelo meu pai, como sempre foi? Devo tomar a iniciativa e fazer eu as perguntas para o médico ou devo permanecer como coadjuvante? Devo andar no lado externo da calçada ou devo respeitar o lugar do meu pai, que como todo homem de sua geração sempre se manteve como um escudo entre a rua e as mulheres, na intrincada arte do footing? Ele esclarece: “Vá para o meio, para conversar com a tua mãe”. Não vá para o meio porque sou eu que protejo vocês. Eu compreendo a enormidade dessa cena banal. Mas nada digo. Apenas deslizo para dentro. 

Mais tarde, depois da consulta, levo-os para jantar num shopping em frente ao centro médico. Vou de balcão em balcão da praça de alimentação em busca de algo que meu pai possa comer. Ele agora tem muitas alergias. “Você não pode só fazer um pão com queijo mozzarella?”, eu pergunto. Logo, estarei quase implorando. Mas parece que ninguém pode fazer pão com queijo. As franquias são todas formatadas, as atendentes me olham como se eu estivesse pedindo olhos de macaco com pão de urtiga australiana. Será que eu não compreendo que não é possível sair do padrão? Comer no shopping ganha contornos de um sonho persecutório. Sinto-me incapaz de levar comida para o meu pai.  

Naquele momento, não apenas confronto a fragilidade recém-descoberta deles, mas também a minha. Ao despedir-me de meus pais, temo que algo possa acontecer porque não estarei ali para protegê-los, mas internamente duvido que possa de fato protegê-los. Imagino catástrofes, há um torniquete ao redor do meu coração quando pego o avião de volta. Sei bem agora que posso no máximo cuidar deles, como eles cuidaram de mim – e, de um modo muito particular, ainda cuidam. Ninguém pode proteger ninguém, essa é só mais uma ilusão. E, mesmo quando acreditamos compreender a vida, somos empurrados para um novo vazio e restamos às tontas. 

Antes de eu pegar o avião, eles o ônibus, minha mãe me empurra um pacotinho em papel de presente brilhante. Eu sei o que é. Minha mãe sempre me dá um pijama. Não só para mim, para todos. É um carinho e um desejo, o de nos ver na cama, aquecidos, a salvo, como num tempo em que, todos sabemos, nunca existiu. O pijama já vem lavado, devidamente desinfetado de todos os germes da loja e das mãos que o cobiçaram antes dela. O pijama vem lavado dos males do mundo, minha mãe confiante no poder redentor dos produtos modernos de limpeza. Não posso nem quero imaginar uma vida sem pacotes de papel brilhante com um pijama cheirando a amaciante dentro.  

Na semana seguinte voltamos a nos encontrar, agora para a cirurgia do meu pai. Minha mãe de novo está com sua bolsa pesada, uma mala de rodinhas e seus pés claudicantes. É um mistério como ela consegue andar tão rápido e ir a todos os lugares com aqueles pés. Mas ela sempre está uma curva adiante de nós, em vários sentidos. Qualquer um levaria o básico ao preparar a mala para uma viagem de saúde. Pijama, roupas de baixo, talvez um roupão, escova de dentes, essas coisas. Minha mãe, eu tinha certeza, carregava também uma caixa de docinhos. Docinhos mesmo, estes de aniversário de criança. Glaceados, caramelizados, trufados, bombas de glicose concentrada.  

A caixa de docinhos era ali uma garantia de que algo permanecia imutável numa vida cujo controle nos escapava. Algo doce. Era a segunda vez que nos preparávamos para a cirurgia. Na primeira, o plano de saúde avisara que não cobriria o “procedimento” na hora da internação, com o respeito habitual. Desta vez, a pressão de meu pai subia porque o esqueceram na emergência do hospital. De novo eu tentava protegê-lo. E de novo fracassava.  Minha mãe jamais viaja sem uma caixa de docinhos. Já carregou caixas de docinhos no colo por mais de mil quilômetros. Se há alguma criança nos arredores, os docinhos surgem no formato de bichos, carros, gurias de tranças. Por quê?, pergunto com a boca cheia de leite condensado. “Os doces de Ijuí são diferentes”, ela diz, com o tom das verdades absolutas. Minha mãe sempre demonstrou afeto com comida. Desisti de levar o feijão dela congelado, de Ijuí para São Paulo, quando o líquido viscoso, impregnado de linguiça caseira, escorreu pelo compartimento das bagagens de mão do avião e pingou a milímetros da cabeça do passageiro ao meu lado. Foi uma decisão difícil de comunicar a ela.  

No dia seguinte, minha mãe me sussurraria na sala de espera. Meu pai estava desacordado em algum lugar do bloco cirúrgico. E eu tentava não imaginar o corpo aberto do meu pai. Ela sussurra, então: “Nós nos despedimos, sabe. Ele disse que a vida comigo foi muito mais do que ele sonhou e que ele foi muito feliz”. Eu queria dizer que ainda seriam felizes, mas não encontrei voz. Eu sabia que eles temiam essa cirurgia com um medo novo. E que mesmo depois dela o medo talvez não fosse embora. Quase 60 anos de casamento, e o amor dos meus pais é escandalosamente vivo. Vivo a ponto de sobreviver a despedidas desse tipo. 

Algumas horas mais tarde, quando tudo já havia acabado, estremecemos ao ouvir o celular: “Ele está pedindo os óculos na UTI. Diz que precisa enxergar”. Minha mãe guardava naquela bolsa pesada dela os olhos e os dentes do meu pai. Será que é por isso que está tão pesada?, pensei. À noite, eu teria pesadelos com os dentes do meu pai na bolsa da minha mãe. Meu pai sempre pareceu usar os dentes com parcimônia, mas era apenas aparência. É verdade que ele mastiga cada bocado de comida quase tantas vezes e com tanta paciência quanto um macrobiótico, mas a vida, não. Na vida ele finca os dentes. E, desconfio eu, também em algumas partes da minha mãe, mas isso eu prefiro não investigar. 

Minha mãe devolveu primeiro os olhos do meu pai, depois os dentes. No dia seguinte ele reclamaria que ela levou tempo demais para devolver os dentes dele. E ainda depois descobriríamos que a chave do cadeado da mala dele havia se perdido, junto com todas as chaves que abrem portas na vida deles. “Eu não sei quem perdeu as chaves, se fui eu ou ele”, balbuciou minha mãe, subitamente sem saber para onde levar seus pés. “Era um molho enorme de chaves.” Eu sabia que eram muitas e sabia que seriam encontradas. Em algum momento, nós sempre precisamos voltar a encontrar as chaves. 

Dias mais tarde, meus pais estão deitados na cama do hotel. Devagar, meu pai começa a se recuperar. Ele está lendo uma biografia de Getúlio Vargas. Minha mãe lê 50 tons de cinza. Ela reclama que é tão mal escrito quanto uma daquelas novelas românticas de banca de revista, mas não cogita abandonar a leitura. Quando ela se distrai por um instante, meu pai rouba o livro dela para dar uma assuntada. Não sei se encontra o que procura, porque logo depois volta para Vargas. Eu sinto que poderia passar a vida lendo os dois.  

Sei que empreendi um caminho de volta para casa, mas essa viagem é apenas interna. Quando um filho parte, nunca há volta. Não deve mesmo haver volta. Há apenas esse tempo roubado, no qual eu posso abraçá-los e fingir que ainda sei o meu lugar. Ou que algum dia soube.  

Antes da despedida, minha mãe se aproxima com seus pés impossíveis. Me alcança um pacote embrulhado em papel brilhante. Eu sei o que é. Sei também que, por enquanto, estamos todos bem.


Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios),  A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. 

5 de jun. de 2012

Testamento de Manuel Bandeira

Portinari 

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

20 de mar. de 2012

Libertinagem de Manuel Bandeira


Não sei dançar
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!

(...) (Libertinagem, Manuel Bandeira)

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...