Antes mesmo de ter uma filha já morria de medo disso: algum dia ela vai perceber que eu não sei de nada. Sim, porque é pra isso, em grande parte, que se tem filhos, pra que alguém no mundo acredite, nem que seja por alguns anos, que você sabe alguma coisa. E é por isso, também, que se odeia tanto os adolescentes: não é porque eles acham que os pais são idiotas, mas porque eles perceberam que os pais são idiotas. No caso da minha filha, a queda do mito paterno aconteceu um pouco mais cedo do que eu imaginava, mais precisamente aos três dias de vida.
Minha filha não chorou quando nasceu. Só choramos nós, os pais, emocionados de ter uma filha que não chora. Nasceu sorrindo, vê se pode, dizíamos nós, chorando. Depois chorei outra vez quando ela mamou na mãe, e chorei de novo quando vi os avós vendo a neta, e sendo avós pela primeira vez. Acho que foi ali que ela começou a suspeitar: quem é esse cara chorando o tempo todo? Barbudo, trinta anos na cara, chorando desse jeito? Será que ele tem algum problema?
A epifania aconteceu mesmo quando a gente chegou em casa e, pela primeira vez, ela chorou. E a partir daí não parava de chorar. Mamava e chorava e mamava. No meio da madrugada, quando a mãe dela dormia um sono merecido, peguei minha filha no colo e fomos pra sala. Achei que fosse resolver no mano a mano.
Foi ali, só nós dois, no lusco-fusco, que ela percebeu tudo. Aos três dias de vida, vi no fundo dos seus olhos que ela tinha descoberto que o seu pai não fazia a menor ideia do que tava fazendo. E foi ali que ela começou a chorar de verdade.
Desculpa, cheguei a dizer, desculpa ter feito você nascer de um pai que não sabe de nada, tanta gente escolada por aí e você veio parar logo na casa desse marinheiro de primeira viagem, esse sujeito que tá chorando mais que você, desculpa, filha, desculpa. E ela chorou mais ainda ao ver sua suspeita confirmada.
Desde então assisti milhões de vídeos no YouTube sobre como fazer um bebê parar de chorar. Vira pro lado, shh, shh, oferece o mindinho, shh, shh, balança, suinga, shh, shh, faz charutinho, shh, shh. Passou, passou, passou. Até agora não encontrei nenhum vídeo sobre como fazer um pai parar de chorar. Filha, vou precisar de você. Seu pai também, coitado, acabou de nascer. Tá perdidinho. Me ensina a parar de chorar que nisso você já tá melhor que eu.
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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13 de mai. de 2018
12 de mai. de 2018
Sonho materno de Fabrício Carpinejar
O sonho de toda mãe mais velha é segurar a mão de seu filho adulto na rua. Que seu rebento partilhe um pouco de sua pele durante cem metros.
Casado, separado, divorciado, tanto faz o estado civil, se está com cavanhaque ou penacho, se é emo ou cowboy, ela tenta reaver os preciosos momentos da infância em que o buscava na escola e não havia vergonha para entrelaçar as palmas em público.
A adolescência criou uma barreira invisível e intransponível que não permite se aproximar do filho com naturalidade. Não é fácil puxar seus cotovelos para perto. Abraço acontece em data comemorativa, e mão é somente em caso de doença.
Desde que ele arrumou mulheres e passou a voltar tarde, ele não dá mais a mão fora de casa. É um tabu, um medo de ser contagiado pela emoção, um atentado ao pudor.
Seu menino crescido pede distância nas caminhadas. No máximo, oferece a argola dos braços, como se fosse uma muleta amparando a lentidão dos passos.
O mais alto desejo é receber os dedos do filho como um anel de brilhante, que os vizinhos reconheçam os cuidados de uma vida dedicada à maternidade, que ela sirva de exemplo às próximas gerações, provoque ciúme nas escadarias das igrejas. É uma recompensa social, é retirar finalmente o Fundo de Garantia doméstico.
E não vale em faixa de segurança, onde a mãe se sentirá inválida; a aspiração depende do espaço largo das calçadas e da curiosidade indiscreta dos passantes.
Toda mãe madura tem esse sonho, que é o pesadelo do filho.
Já observei a mãe Maria Elisa de 70 anos me enganchar com suas unhas pintadas de rosa antigo. São três décadas insistindo, teimando, chega a irritar sua obsessão, que mania!, ela sabe que não gosto. Aproveita alguma distração, um riso à toa e espicha o braço. Talvez cogite que é o momento, que finalmente me abrirei de novo ao convívio. Eu recuso, fecho metade do punho, digo que esqueci o celular em casa e preciso voltar. Simulo desinteresse e que não prestei atenção. Entre eu e ela, fingimos que nunca existiu a atitude, apesar de sempre existir.
Andar de mãos dadas com ela é aceitar a pecha de filhinho da mamãe, é acolher o estigma eternamente. Não serei levado a sério. O que minha namorada vai pensar?
Não posso arriscar, é o equivalente a trocar a gravata pelo babador. Perderei a reputação no banco e o respeito das lotéricas. Alguns dirão que sofro de Complexo de Édipo, outros a chamarão de sem-vergonha abusando de jovenzinhos.
Acho que conseguiria adiar a crise diplomática para mais alguns anos, mas o maldito irmão Miguel quebrou o protocolo. Traiu a família, o acordo silencioso, o inventário dos gestos.
Além de levá-la ao cinema, percorreu o shopping inteiro apertando sua mão, inclusive na frente das lojas do Grêmio e do Inter. Eu me tornei insensível, extraviei sua herança, com nenhuma chance de retomar a posição de dileto. Vou procurar o perdão beijando meu pai no calçadão da Rua da Praia.
fonte: 12.07.2010 Jornal ZERO HORA
13 de ago. de 2017
12 de nov. de 2016
9 de ago. de 2015
3 de jul. de 2015
No meu tempo :: Helder Moura Pereira
Patrick Caulfield, 1969
No meu tempo, ah, dizer no meu
tempo é engraçado, havia pais
que levavam os filhos às putas.
Sei que houve gente que adorou
e outra que ficou traumatizada
para o resto da vida.
O meu pai não
me levou a coisa nenhuma dessas,
mas deu-me o primeiro vinho a provar
e ensinou-me a escrever. Eu
depois inventei o resto.
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